— por Matheus Cosmo —
Crítica a partir do espetáculo “AquiDentro”, do grupo Opovoempé (SP).
Fotos de Rodrigo Peguin, Felipe Cohen e Matheus José Maria.
Em 1978, Roberto Schwarz escreveu uma nota introdutória a um de seus textos mais conhecidos, escrito logo nos anos iniciais da ditadura militar. Sua simples e enxuta declaração abria um peculiar paradigma que apenas grandes pensadores seriam capazes de enunciar: “O leitor verá que o tempo passou e não passou”. É provável que seja essa a razão pela qual um trabalho criado no final da década passada ainda seja tão significativo – um resultado direto da profunda investigação e aguçada percepção de um grupo de mulheres que, atualmente, vive e celebra seus onze anos de existência. Refiro-me, aqui, ao Grupo OPOVOEMPÉ.
Era 2009 quando nascia o projeto AquiDentro AquiFora. A proposta era investigar possíveis especificidades e cruzamentos entre aquilo que acontece dentro de uma sala teatral e aquilo que envolve a amplitude dos espaços públicos, criando dramaturgias que fossem, ao mesmo tempo, análogas e distintas. Certamente, tamanha investigação não nascia de um mero acaso, mas respondia a algumas das questões deixadas em aberto pelos trabalhos e intervenções anteriores. Firmava-se um grupo com um específico projeto de pesquisa continuada que, não por menos, na ocasião, foi contemplado com o Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, um apoio que se mostrou crucial para a execução de todo o processo.
Se “AquiFora” firmava a primeira experiência cênica audiotour presenciada na cidade de São Paulo, escolhendo a rua como ponto de partida para o estabelecimento de uma nova relação com cada um dos espectadores, revestidos por capas amarelas, “AquiDentro” encontra, no próprio espaço teatral, as possibilidades múltiplas de mudar de perspectiva – um convite feito pelas próprias intérpretes ao longo de todo o trabalho. A total equivalência entre o número de cadeiras e o número de espectadores remonta aquelas que eram algumas das palavras iniciais do trabalho que tomou as ruas do centro da cidade: “A partir deste momento você não está mais sozinho. A partir deste momento nós estamos juntos! […] É importante que nós nos mantenhamos unidos!”.
Desenha-se, assim, o movimento próprio à grande parte das composições do grupo: o reconhecimento das singularidades e a instauração de uma potencial comunidade. Deslocam-se fronteiras quando se entende que as subjetividades são meros resultados de estruturas coletivas que só existem a partir de agenciamentos subjetivos. É que as alterações objetivas demandam transformações subjetivas e novas subjetividades só se mostram possíveis com radicais mudanças na ordem político-social. Eis um jogo razoavelmente paradoxal e complementar – e não é justamente a existência de um jogo e de uma relação que edifica o teatro?
“AquiDentro” é um trabalho marcado pela ambiguidade. Não cabe ao espectador resolver os jogos de linguagem para fixar um sentido possível: cabe a ele um espaço no qual é sempre necessário mudar de perspectiva, a fim de apreender uma possível totalidade do fenômeno que sempre será composto de inesgotáveis partículas poéticas. Colocar-se no centro do acontecimento torna-se mais importante do que encontrar improváveis significações. O significado encontra-se no próprio fazer. Ele não desliza entre superfícies planas, como quiseram os pós-estruturalistas, nem se encontra circunscrito por modelos semióticos, mas se aprofunda na coletividade da experiência.
Certamente, a constatação da emergência de variados planos de sentido não impede o registro daquilo que se traduz por meio do discurso. Cinco mulheres colocam-se no centro de uma pequena arena, construída pelos próprios espectadores, tentando descobrir por que estamos tão tristes. Ninguém sabe de onde vem tamanha tristeza. Esse abatimento eu aqui chamo melancolia, apenas para enfatizar que, embora a psicanálise tenha encerrado tamanha angústia ao âmbito de uma inespecífica subjetividade, na tradição ocidental a melancolia sempre foi uma das marcas do artista. Antes de tudo, o melancólico carrega uma experiência de verdade que não é passível de registro nos atuais esquemas de reconhecimento do sofrimento. Sua verdade ultrapassa nossos modelos de representação, de modo tal que foi Julia Kristeva quem reconheceu que não existe imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica. A dor do melancólico é também o laço criativo que modela novas estruturas. Neste sentido, fiquemos com Nietzsche: “Duvido que tal dor nos deixe melhor, mas eu sei que ela nos aprofunda”.
Contudo, também é preciso reconhecer: as configurações das sociedades modernas proporcionaram a proliferação de subjetividades melancólicas. Com o avanço da técnica e do sistema capitalista, perdeu-se algo, mas não se sabe muito bem o que foi – ou até se sabe, mas não se consegue vislumbrar a possibilidade de uma nova alternativa. Resta apenas a eterna sensação da perda e o gosto constante da falta e da ausência. “Quando é que vamos rir?”, perguntam-se as intérpretes. “Nós vamos rir?” – e será que alguém sabe a resposta dessa pergunta? Para que o riso fosse possível, uma total transformação seria necessária, em todos os níveis. Feita esta constatação, por ora caberia apenas perguntar: “Está tudo bem?” – sem esquecer a brilhante análise feita pelo Comitê Invisível, em 2007: “Todos os ‘tudo bem?’ que trocamos ao longo do dia sugerem uma sociedade de pacientes sempre a medir a temperatura uns dos outros”. De fato, viver sob o estatuto da modernidade implica a renúncia à plenitude das experiências e o estabelecimento de uma subjetividade marcada pela perda. Tendo a imaginar que já não sabemos viver neste paradigma. Contudo, era Marx quem dizia que é dentro da modernidade que temos de buscar suas saídas imediatas. Havemos de suportar.
Nessas condições, uma mensagem é lançada aos cosmos: “Estamos tentando sobreviver ao nosso tempo para viver no de vocês”. Há quem chame esta vida reduzida à mera sobrevivência de vida nua. O sobrevivente torna-se o paradigma da existência moderna. O poder não age eliminando o corpo, mas mantendo-o em um espaço intervalar entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano, entre a potência e a impotência. O choque se torna a norma: a catástrofe está instalada no cotidiano. Aos gritos de uma das atrizes, “C’est la catastrophe!”, uma outra, singelamente, em diálogo com os espectadores, responde: “Está tudo bem. Eu estou satisfeita!”. Nas sutilezas da apresentação encontram-se graus de complexidade incomensuráveis.
No que diz respeito à ideia de uma suposta catástrofe, em especial, seria importante relembrar que, no início deste ano, a Editora Iluminuras publicou um livro intitulado “O sentimento da catástrofe: entre o real e o imaginário”, escrito por Annie Le Brun. Das esclarecedoras palavras de Eliane Robert Moraes, registradas na apresentação da obra, destaca-se: “O sonho de devastação passou do infinito para a finitude, a ponto de privar a catástrofe do devir imaginário que ela sempre teve e de suprimir ‘aquela parte de desconhecido implícito de que ela era a portadora’. Como consequência, ficamos privados da possibilidade de representar os perigos que de fato nos ameaçam e, impotentes para sonhar com o que nos excede, tornamo-nos resignados diante dos excessos que nos sujeitam”. Talvez seja por esse motivo que, em entrevista a Frank M. Raddatz, publicada em 1990, Heiner Müller tenha afirmado que “sem perigo, não existe desenvolvimento. A catástrofe precisa ser arriscada, senão nada mais será possível”. Como poderia o teatro desabar antigas estruturas e produzir uma verdadeira catástrofe? Aliás, o que significa ‘produzir uma catástrofe’? Desejo boa sorte àqueles que se propuserem a resolver tais questionamentos, cujas respostas são urgentes – e insurgentes.
Logo no início de todo o evento, as intérpretes revelam aquele que era um dos propósitos do trabalho: era preciso criar “um experimento que confirmasse aquilo que nós já sabemos”. Sabemos que sabemos, mas de que sabemos, afinal? Nós, justamente nós, que levamos o mundo tão a sério e que, ansiosamente, esperamos grandes resultados da demarcação de terras indígenas e da democracia participativa: de que sabemos? Nós, que tanto nos entristecemos com a violência contra a mulher, com a restrição de direitos e, principalmente, com o Congresso Nacional, sabemos algo? Conhecemos o sonho da Terra? Podemos dizer o que é apaixonar-se? Talvez não. Talvez porque ainda esperamos coisas demais do mundo – e exatamente deste mundo no qual aquilo que agora é tudo pode agora mesmo ser nada. Um mundo no qual tudo que é sólido desmancha no ar. É provável que estejamos carregando peso demais sobre nossas cabeças. Seria preciso conferir. Doses de Aspirina, Tylenol, Dorflex, Neosaldina e Rivotril podem nos ajudar, ao menos enquanto ainda preferirmos medicar os efeitos, ao invés de solucionar por completo as causas.
Dois aspectos não poderiam passar despercebidos por este texto. Dirigindo-se aos espectadores, as intérpretes ressaltam a importância de buscar “uma visão de mundo menos reduzida”, “uma outra perspectiva”. A quem ainda não encontrou seu respectivo lugar no mundo (em suma, todos nós), as atrizes propõem um lugar. Descrita desse modo, alguém poderia julgar tal ação como extremamente problemática, como se coubesse ao grupo dizer aos espectadores aquilo que eles devem ser ou, ainda, como devem agir. De longe, não é disso que se trata aqui. Encontra-se em jogo uma perspectiva que aposta na potência de uma (in)específica comunidade. Um coletivo que se renova a cada apresentação e que, por isso, está sempre a descobrir novos lugares. “Há cinco bilhões de anos éramos animais. O que seremos em cinco bilhões de anos, a partir de agora?”. Ninguém se arrisca a vislumbrar uma possível resposta. Importa apenas perceber que aquilo que seremos já se encontra presente aqui. Os caminhos do futuro já estão abertos no presente, por mais complexas e obscuras que sejam suas entradas. Interessa-nos o devir, porque aquilo que pode vir-a-ser já é. O devir acontece neste momento e se transfigura em uma das salas de teatro da grande São Paulo.
No trabalho “W Polsce, Czyli Gozie? (Na Polônia, isso é onde?)”, criado em 2015, uma das atrizes destacava que esta é a “época do consumo universal e ninguém mais pensa sobre a morte”. Em “AquiDentro” enuncia-se a certeza: “Nós vamos todos morrer”. Contudo, “não há motivo para pânico”. De fato, não há. Não é porque a morte demarca o fim da vida que ela deva também ser sua finalidade: a finalidade da vida deve ser a vida mesma. A vida que acontece fora do teatro, mas sobre a qual podemos nos debruçar de dentro da sala. O sentido da vida é ficcional: é por isso que o mundo é um palco. E, para nossa sorte, por vezes, do centro da cena emergem grupos como OPOVOEMPÉ, com toda a delicadeza que só seus trabalhos possuem. A vida se torna mais doce.