* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
Reflexões e expansões a partir da remontagem de Sortilégio: mistério negro.
Por Soraya Martins
A peça Sortilégio: mistério negro, escrita por Abdias Nascimento, em 1951, é um marco na literatura dramática nacional, visto que coroa a criação de uma dramaturgia que valoriza a cultura afro-brasileira, sem perder de vista a busca por elaborar uma estética negra no teatro. Escrita para ser encenada pelas atrizes e atores que compunham o elenco do Teatro Experimental do Negro, Sortilégio focaliza o negro como protagonista e sua cultura como matriz significante no universo simbólico e na sociedade.
Tecer discussões e reflexões sobre e a partir de textos dramáticos/peças comprometidas em levar para o palco o locus de enunciação negro, é a possibilidade de não só discutir sobre análises mais críticas e outros operadores epistemológicos implicados em repensar as maneiras pelas quais são construídas as narrativas sobre os povos, as culturas, os lugares, as linguagens e sobre as produções culturais e artísticas, como também, fundamentalmente, de ampliar e consolidar a própria ideia de um sistema de teatro brasileiro, em que se tem, também, a presença do corpo negro, restituído e constituído no palco, evidenciando outros saberes e formas de sociabilidade em cena. É a partir dessa conjuntura po[ética] que esse texto crítico se enuncia, se anuncia e pulsa.
A Comédia de Costumes, surgida no final do século XIX, inaugura a construção de estereótipos raciais que permanecerão inscritos na dramaturgia e no imaginário social brasileiro: a mulata desonesta, o moleque de recados, o trabalhador servil. Ou seja, inaugura a construção dramática e a fixação de um retrato deformado da/o negra/o. Leda Maria Martins, em “A Cena em Sombras” (1995), argumenta que os modelos de representação cênica que criaram e veicularam imagens deformadas das/os negras/os se apoiam numa visão de mundo eurocêntrica, em que o outro – o negro – só é reconhecível e identificável por meio de uma analogia com o branco, este, encenado como sujeito universal, uno e absoluto. Nesse sentido, o percurso da personagem negra define sua invisibilidade e indizibilidade.
Invisível, porque percebido e elaborado pelo olhar do branco, através de uma série de marcas discursivas estereotipadas, que negam sua individualidade e diferença; indizível, porque a fala que o constitui gera-se à sua revelia, reduzindo-o a um corpo e uma voz alienantes, convencionalizados pela tradição teatral brasileira (MARTINS, 1995, p.40).
É nesse contexto de racismo institucionalizado também nos palcos dos teatros brasileiros que a dramaturgia de Nascimento emerge, buscando desmistificar a imagem negativa da/o negra/o. A reflexão sobre essa questão se torna recorrente para as/os integrantes do TEN e se abre como forma de analisar criticamente os efeitos devastadores do racismo na constituição do indivíduo. Assim, contrapondo-se aos modos essencialistas de enxergar negras/os, foi se tecendo uma dramaturgia/um teatro que realça a diferença como traço distintivo.
Arquivo: O Globo
Em sua concepção formal e sugestão ritual, Sortilégio se apresenta ao espectador como uma trilha por meio da qual se dramatiza um rito de passagem. O protagonista da peça, Emanuel, busca se adequar ao mundo branco, passa por um processo de “embranquecimento” dos hábitos, renega seu passado e seus antigos costumes e trata de forma desdenhosa tudo relativo à cultura negra. A personagem quer a aceitação de um mundo que subjuga as formas de expressão da cultura afrodescendente, um mundo à parte do seu, no qual para ser aceito deve se “invalidar”, num movimento de aparente anulação das referências anteriores. Assim, partir da análise crítica sobre como o racismo incide na constituição do sujeito, no contexto da chamada “democracia racial”, Abdias, em seu teatro, busca: veicular uma série de imagens que traduzem a experiência e a memória das/os negras/os no Brasil, desconstruir os estereótipos que reproduzem os preconceitos raciais e processar a reposição da/o negra/o de objeto enunciado a sujeito enunciador. Ao semear um formato artístico com tais propósitos, por meio da criação de uma dramaturgia que ultrapassasse, dizendo com Nascimento, “o primarismo repetitivo do folclore, dos autos e folguedos remanescentes do período escravocrata”, o TEN instaura, à época, uma perspectiva negra na forma de fazer teatro, constrói uma linguagem dramática alternativa, através da qual a negrura se erigi como tropos figurativo relevante e distinto em sua visibilidade.
É dentro dessa arena de luta estética e política que o diretor mineiro Adyr Assumpção, 66 anos depois da estreia de Sortilégio, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, remonta a peça, no contexto do “Projeto Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”, com a parceria do Inhotim e o Ipeafro. Agora, mais do que descontruir estereótipos racistas (isso, por si só, é fundamental), o diretor parece querer radicalmente inscrever, junto com artistas comprometidos com a multiplicidade do fazeres artísticos negros, o [cor]po como texto que encena a cor [preta] como discurso plural que, em suas articulações, produz seus efeitos de linguagem.
Fotos de Daniela Paoliello
Os corpos-textos de Zora Santos (Yá), Reibatuque (Emanuel), Elisa de Sena (Ogum), Iasmin Alice (Oxum), Michele Sá (Oyá), Camilo Gan (Exú), Heberte Almeida (violeiro) são corpos revisionistas, semióticos e de produção semiótica. Corpos produtores de uma performance que assume uma dramaturgia do pensamento, interessada tanto na elaboração de uma estética crítica-criativa sobre como apresentar a totalidade singular das negras e dos negros, quanto na “conexão inegociável entre espírito-corpo-experiência-coletividade-arte”. A interlocução entre o texto e a performance potencializa os gestos e os movimentos como possibilidade de construção dramatúrgica, realçando no texto dramático sua natureza performática. Nesse sentido, o que se vê em cena são corpos-encruzilhada que, a cada palavra performada na voz e no corpo, mantém ativas, de acordo com Leda, “as possibilidades de outras formas de veridicção e percepção do real que problematizam as formas e os modelos de pensamento privilegiados”. Vemos corpos-vidas que, ao mesmo tempo, é espetáculo, candomblé e dramaturgia tecida por várias dobras discursivas.
Assim, nessa remontagem, é preciso escurecer e evidenciar o trabalho corporal realizado por Camilo Gan-Exú, que, como preparador corporal, dá a ver os aspectos estilísticos e mnemônicos inscritos na grafia dos corpos em movimento. Como Exú, perpassa toda a cena poética, mediando todos os atos de criação e interpretação do conhecimento. É Exú o responsável não pela morte de Emanuel, mas pela sua continuidade dinâmica no axé, aquele que performatiza o rito de passagem do protagonista e recompõe equilíbrio pessoal e coletivo.
É a partir de Exú – princípio dinâmico de individualização e comunicação, instância propulsora de interpretação, portas e fronteiras, metáfora da própria encruzilhada das culturas da diáspora – que o rito de passagem de Emanuel é pintado com a cor da negrura. Para isso, Adyr, assim como Abdias, lança mão de práticas performativas – ritual, música e movimento – para recuperar o ethos negro. É no terreiro de candomblé que, perto da meia-noite, hora em que em todas as encruzilhadas do tempo e do espaço reinam Exu, Emanuel vai se despindo das máscaras da brancura. O terreiro de candomblé se constitui, assim, como o lugar onde o negro funda os bolsões culturais de sua diferença, onde articula vários signos cênicos – rítmicos, gestos e cor – que o permitem resistir à violência e preservar sua alteridade. O Terreiro é o lócus de enunciação que marca a passagem ritual do protagonista do drama como uma prática performática que funciona, acima de tudo, como uma epistemologia, como elemento socializador que revela a história de um corpo social e cultural.
A remontagem de Sortilégio propõe reconfigurar a existência negra e fazer dela concepção formal. Pensa os corpos da negrura como textos implicados em uma estética interessada em implodir os imaginários forjados dentro de estruturas racializadas, cujo objetivo é proibir as/os negras/os de participarem da história como força independente, sensível e livre. Essa implosão tensiona, a partir do palco, as melancolias, as alegrias e as relações. E é nesse espaço de cena que a não separação nítida entre a realidade e a ficção representa a possibilidade de elaborar a experiência negra do tempo na busca por superar o racismo (passado que não passa) e recriar os modos como as pessoas negras vivem e são resultado dessa experiência. Logo, a remontagem elabora as violências e os racismos em linguagem fabular e de recriação das histórias através de saberes e estéticas contra hegemônicas e dos corpos da negrura, dando a ver um processo de fabulação estética comprometido em mudar os padrões coloniais do poder, do ser e do saber em ato estético-performativo.
Ficha técnica
Concepção, Adaptação e Direção Geral
Adyr Assumpção
Assistente de Direção
Sylvana Ferreira
Consultoria
Letícia Castilho
Elenco
Zora Santos – Yá
Reibatuque – Emanuel
Elisa de Sena – Ogum
Iasmim Alice – Oxum
Michelle Sá – Oyá
Heberte Almeida – Homem do Violão
Camilo Gan – Exu
Preparador Corporal
Camilo Gan
Preparador Vocal
Ernani Maletta
Estagiário Preparação Vocal
Athos Ferreira
Direção Musical e Trilha Original
Heberte Almeida
Trilha sonora original
Heberte Almeida, a partir de canções de Nei Lopes e músicas de domínio público
Direção de Arte (cenário, figurino, identidade visual)
Cristiano Cezarino
Tereza Bruzzi
Ed Andrade
Aderecista
Anderson Ferreira
Luz
Eliezer Sampaio
Identidade visual
Dejota
Sapataria
Virginia Barros
Making of
TremdoBalaio Filmes
Cida Reis
Joacelio Batista
Produção
T’AI Criação e Produção
Maíz d’Assumpção
Tâmara Braga Ribeiro