Embora “Mary’s Baby – Frankenstein 2018” parta da escrita do romance gótico “Frankenstein: ou o Prometeu Moderno” (1818), eis um espetáculo em que a obra literária prévia é honrada em suas vísceras sem que a literatura precise dominar a cena ou repetir as linhas narrativas inventadas por Mary Shelley (1797-1851) tais e quais. A liberdade criativa diante de um clássico não é outra senão apropriar-se daquilo que pulsa numa obra e amplificar para outros tempos e lugares e sensibilidades.
Diretora e única atriz em cena, Esther Mollo mostra saber exatamente o que pretende da história de Frankenstein e sua criadora. Em uma palavra, dita por ela mesma: “imago”. A construção de um imaginário. E se é de imagem que se fala, é como cinema que a cena se arma. As primeiras imagens trabalham com clichês desse universo, as palavras sendo escritas em projeção contra o fundo do palco, a atriz que se retorce em uma dança de angústia e mutação. Esboçam uma concepção estetizante distanciada de espetáculo, que no entanto será rompida num momento de quebra da quarta parede e diálogo direto com os espectadores (em inglês sem legendas, a nódoa desse FIT-BH, que em mais de uma ocasião presumiu a compreensão da plateia para uma segunda língua a qual nem todos têm acesso, um gesto na contramão da democratização que o festival defende).
A ruptura é um momento de virada e de ressignificação do espetáculo, quando o pacto com os espectadores redefine expectativas a respeito do que será uma peça “sobre Mary Shelley”. Um arroubo de real, a interromper a ficção, a questionar e reconduzir o olhar, essencial para convidar o espectador a uma apreciação mais crítica e consciente e para que o trabalho salte além da ilustração da vida ou da obra da escritora britânica e faça com que as alegorias tecidas no romance reverberem sobre outras dimensões.
De volta à cena cinematográfica, desenha-se no e sobre corpo o da atriz a armadilha inescapável da finitude humana. O monstro montado pelo dr. Vitor Frankenstein aviva a reflexão sobre o ideal de perfeição humano, como um ideal de eternidade, ao qual os progressos científicos poderiam conduzir à medida que libertem o corpo de suas insuficiências, libertem a identidade da putrefação da carne, libertem a mente da precariedade do corpo, até que ela se pareça com uma energia, imaterial, anímica, espiritual; exatamente como aquilo que o gesto inicial evitava, justamente como a morte.
“Mary’s Baby” é uma peça de tese, de fundo filosófico metafísico, que convida a seguir o raciocínio poético existencial de Esther Mollo e a fazer associações com ideias preconcebidas sobre Mary Shelley e sua criação – um exercício de pensamento que depende de algum conhecimento prévio do clássico gótico, algo que nem 200 anos de história podem garantir se até hoje criador e criatura, Vitor Frankenstein e seu monstro, se embaralham no imaginário de tantos.
Mas a afetação produzida por Esther Mollo não é somente racional nem sua poética prende-se ao textual. Muito da beleza desse solo francês está no modo como corpo e discurso se encontram. É raro ver um trabalho cênico em que as projeções de imagem contracenem realmente com a atriz, já não mais sozinha no palco, e criem sentidos dramatúrgicos determinantes para o espetáculo. Em “Mary’s Baby”, as projeções são essa camada estruturante, indissociável da proposição cênica como um todo, fundamental para a concretização da alegoria sobrevida e morte.
Em linhas gerais, a peça se inspira livremente na vida e obra de Caio Fernando Abreu para abordar ditaduras de ontem e de hoje. Tanto essa que já está instalada em cotidianos atos de repressão da Polícia Militar, quanto outra, recentemente convocada por manifestantes a revisitar nos nossos dias e por aqui se instaurar.
Exatamente por isso, traçar vínculos históricos para sacudir memórias perdidas parece ser um motor fundante e coerente do espetáculo. Não foi à toa, aliás, que o trabalho nasceu de testemunhos do ator e do diretor em relação às recentes manifestações do país. Não por acaso, de igual modo, as pesquisas que empreenderam caíram nas letras do escritor gaúcho. Os elos e as linhas paralelas, no entanto, ganham certo aspecto didático, sendo narrados por gritos de um militar que ora posiciona o público nos históricos anos 1960, ora nos deixa no aqui e agora.
Os paralelos entre ontem e hoje, ator e personagem, real e ficção também se estabelecem, logo no princípio do espetáculo, como ferramentas ou estratégias de aproximação. “Quem foi às ruas se manifestar recentemente? O que achou e o que sentiu?”, pergunta, sem solenidades, o ator, a quem o público responde com suas impressões. A proposta se faz contundente em um trabalho que busca na performance o norte de uma criação marcada pela presença de corpos, tanto o do ator quanto os do público. Ao fim da conversa, no entanto, a chave vira-se abruptamente. O ator torna-se personagem, a ficção se instala, e o distanciamento é promovido sem que isso pareça ser uma estratégia ou opção estética. A conversa até então compartilhada quase ao pé do ouvido converte-se em texto decorado até encontrar novo ritmo.
Com exceção dos momentos em que a narrativa ganha tom direto e convida o público a estabelecer conexões entre distintos períodos históricos, todo o resto está afirmado no corpo, e, mesmo quando as palavras são ditas, é a angustia psicológica retratada na voz que nos faz refletir, ou, ainda melhor, nos faz sentir o que é viver em tempos de opressão e censura.
O corpo torna-se, portanto, o principal elemento cênico, frente a outros poucos que são trazidos à cena e que carregam na “pele”, de modo comum, o sentido e a sensação da opressão. O palco pode até ser amplo, mas o espaço do ator/personagem é um pequeno círculo formado e coberto por carvões, e esse é todo o espaço que tem para passar os próximos minutos – ou dias de uma vida.
Sem mais nada para ver, pegar ou se apegar além da tormenta de seus pensamentos, resta ao personagem apenas o seu próprio corpo, que ganha relevo pela pouca luz de uma lanterna. São, assim, iluminadas algumas partes dos braços, das pernas e do tronco do ator, trazendo à tona a experiência de uma pele que se suja e não se intimida às pontiagudas arestas do carvão. Ali, o corpo passeia, caminha, cai, pula, pisa, com medo e com coragem, em momentos de grande vigor e indignação, ao mesmo tempo em que se percebem mínimos gestos de medo, saudade e cansaço.
Quase completamente em torno de si, em uma das cenas mais belas do espetáculo, Caio está no breu claustrofóbico de um porão onde se esconde. Ali, ele toca o próprio corpo para sentir que ainda existe, que a materialidade ainda resiste e que a pele consegue sentir alguma coisa.
Em “EuCaio”, o corpo também é elemento de transposição de papeis e lugares sociais. Por exemplo: um mesmo homem de braços atados para trás, trazendo portanto o mesmo gesto e a mesma postura, pode gerar sentidos bastante distintos. Um é o oprimido, e o outro, o opressor – o único que consegue fugir aos limites do círculo. O que determina essas posições? O que determina essas relações?
De Caio Fernando, além de reflexões sobre o fazer artístico e as formas de se manifestar por meio desse fazer, vem a inquietação psicológica, o tormento de uma mente que tem medo até dos próprios pensamentos, assim como de imaginar o que estaria acontecendo fora do porão em que se esconde.
O que parece, no entanto, ser local de proteção e segurança é o retrato de tantos outros círculos, hierarquias e regras determinadas que reprimem, engessam e tolhem individualidades, liberdades e diferenças. São os porões do preconceitos e da intolerância, dos jogos de poder que circulam fora do bem comum.
Dentro desse espaço de isolamento que fecha e aprisiona, que apequena e atormenta, resta o mergulho vertical em um drama psicológico sem espaços abertos para o respiro. Não se respira, afinal, com a faca da censura na garganta.
De Caio Fernando vem também, em uma espécie de segundo plano, a questão da homossexualidade (assumida pelo escritor). E a partir desse tema, a reflexão se estende a outras dimensões: não guardariam o preconceito e a intolerância semelhanças àquela tortura que persegue, inibe, impede e mata? Não teríamos, já, alguns elementos da ditadura atuando na sociedade do século XXI?
Se “viver é constantemente construir e não derrubar”, como diz a frase de Caio Fernando citada ao fim do espetáculo, retumba aos ouvidos que há muito caminho para se retirar da sociedade os vestígios da dita ditadura, e essa é a construção a se dedicar, penso eu.