– Por Victor Guimarães –
[Imagem de capa: Georges Seurat, “Femme lisant”, circa 1883].
Na tentativa de imaginar qual seria o meu projeto de crítica, ao invés de pensar no futuro, o que fiz foi um exercício retrospectivo a partir da memória dos textos que publiquei aqui no Horizonte da Cena e dos impulsos que os motivaram. Dois traços me saltaram aos olhos nessa rememoração: minha posição estrangeira em relação ao meio teatral e minha insistência em escrever sempre a partir de uma experiência transformadora – o que não significa necessariamente escrever motivado pelo que me arrebatou, mas começar do que me instalou num estado de inquietude e incerteza.
Diferente da maioria das colegas daqui, nunca fui “do teatro”. Não tenho formação acadêmica em artes cênicas, nunca as pratiquei, não acompanho o circuito regularmente, não conheço a maioria das pessoas do meio. Há muitos contras nessa condição: a falta de repertório, o receio frequente de falar do que não sei, a sensação constante de estar dando palpite onde não fui chamado. Mas há também vantagens neste ponto de desvantagem: não pertencer é também não ser excessivamente vigiado. A liberdade de movimento propiciada por uma posição “de fora” pode ser preciosa. Além disso, escrever sobre o que não se sabe e meter o bedelho onde não se é chamado não é o motor de toda crítica que preste?
A crítica é sempre intrusa. Chega ali onde não é chamada. Ninguém a solicita, ninguém está muito confortável em sua presença – a menos que ela se confunda com a publicidade ou a assessoria de imprensa (que é a regra). E, no entanto, nenhuma arte sobrevive sem ela, e não há melhor indício da vitalidade de uma arte do que o estado de sua crítica (e não falo aqui de veículos ou de instituições, mas da intensidade de uma conversa pública livre, franca e aberta).
Quanto ao olhar estrangeiro, poucos textos são tão importantes na minha formação como crítico de cinema como os ensaios que Susan Sontag e Gilda de Mello e Souza dedicaram aos filmes. A rigor, elas também não eram “do cinema”. Ensaístas de interesse amplo e vário, seu encontro com as obras cinematográficas é sempre surpreendente e estimulante, pois nunca há a sensação de ler alguém que arromba portas abertas (impressão tão comum quando leio crítica especializada hoje, no cinema ou no teatro). Ao contrário: elas entram sempre pela janela dos filmes. Quando Gilda compara os passos de dança de Fred Astaire ao traço de Seurat em seus desenhos, é justamente esse chegar de fora, essa não-especialização que fala alto e formula uma imagem inesperadamente precisa. Quando Sontag encontra a bactéria fascista não apenas nos filmes hitleristas, mas nas fotografias africanas de Leni Riefenstahl, é também o olhar estrangeiro que opera. É como Nuno Ramos escrevendo sobre futebol: nenhum comentarista de bola foi capaz de encontrar o germe do sete a um naquele quatro a zero do Barcelona sobre o Santos. Foi preciso um artista para ratificar o que hoje parece óbvio, mas que à época ninguém queria enxergar: “É preciso situar este jogo como um trauma, um antes e um depois, um sinal de que alguma coisa estranha está acontecendo com o futebol brasileiro”.
Sobre escrever a partir do que não se sabe: quando leio um texto crítico, nada me é mais tedioso do que perceber, logo nas primeiras linhas, que quem escreve já tem a oficina toda montada para lidar com aquele acontecimento ou aquela obra. Quando escrevo, nada me é mais desestimulante do que ter o texto inteiro na cabeça antes de sentar para escrever. Crítica é movimento, é deslocamento, é partilha de uma energia inquieta. Nada mais fácil do que perceber quando, num texto, há encontro real entre quem escreve e a experiência a partir da qual se escreve. Há escritas onde há desafio, deslocamento mútuo, fricção. E há aquelas em que há uma continuidade total entre obra e gesto crítico, um casamento tão perfeito entre uma coisa e outra que não sobra espaço algum para a descoberta, o passo para fora do que já se sabe, a respiração do leitor ou da leitora. Recupero aqui algo que escrevi a partir do Macunaíma de Bia Lessa: também na crítica é preciso oxigênio para a combustão.
Não pertencer ao meio do teatro é também não ter uma agenda pré-formatada. Assim, cada texto meu aqui no Horizonte partiu, muito simplesmente, de uma espécie de comichão ao me deparar com uma experiência cênica (e elas foram variadas: peças, performances, um show de rock, um acontecimento na rua que ainda não sei como definir…). Diante da inquietude física, emocional e intelectual provocada por aquele encontro, era preciso deixar que aquela experiência não se esvaísse no cotidiano, que ela encontrasse uma maneira de continuar, transmutada, noutro lugar e noutra forma – a da escrita. É bem possível que essa seja uma posição conservadora hoje, um tanto datada, mas ainda acredito na crítica como um encontro fecundo entre um espectador e uma obra. No caso do teatro, então, essa arte irreprodutível por excelência, não há melhor forma de engarrafar experiências e destiná-las ao futuro do que dar forma a esse encontro entre uma subjetividade e um acontecimento. O sedimento final desse processo é sempre uma nova experiência, dessa vez de escrita, mas acredito que há algo valioso nessa fricção entre algo que está no mundo – e que, portanto, não sou eu – e meu próprio corpo.
Por um lado, não consigo aderir à tendência contemporânea da crítica como criação, porque ainda acredito na fecundidade desse jogo com o fora. Ainda acredito na velha posição adorniana sobre o ensaio, esse texto que “espelha a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram”. Por outro lado, não subscrevo à posição de quem enxerga a crítica como juízo desimplicado, como crivo excessivamente apegado à racionalidade. Por isso, há algum tempo, tenho trabalhado com uma ideia da socióloga da imagem boliviana Silvia Rivera Cusicanqui, que chegou até mim durante um laboratório de crítica de cinema do qual participei. Em sua reflexão junto às mulheres tecelãs andinas e em diálogo com padrões visuais de suas obras, ela encontrou uma fórmula teórica que tem me intrigado: “a mão sabe”. Na contramão do oculocentrismo ocidental, é uma tentativa de reintegrar o olhar ao corpo, de imaginar um conhecimento que não se desvincule de uma experiência corpórea.
Na escrita crítica, imagino que esse saber das mãos tem a ver com um trabalho que não se confunde com a transmissão de um saber pré-fabricado, mas que descobre, no próprio ato da escrita, uma maneira inesperada de dar forma ao encontro e ir em direção ao que não se sabe. Um texto crítico não é o resultado de uma transmissão entre a cabeça e o algoritmo, mas algo que acontece no corpo inteiro, num jogo intenso entre a memória e a invenção, entre o olhar e as mãos, entre o que se move e o que se sedimenta. Uma centelha surge na experiência, encontra combustível no ato da escrita e se incendeia no encontro com a leitura.
A tarefa primeira é a de alimentar esse fogo. Partir sempre do espanto. Só começar um texto quando não se sabe como ele vai terminar. Escrever exclusivamente sobre o que não se tem certeza. Soltar o olhar, soltar o corpo, soltar a mão.