– Por Clóvis Domingos e Daniel Toledo –
Crítica a partir do espetáculo “Pipas”, do Grupo Contra Bando de Teatro (RJ), apresentado no Festto 2024 no Sesc Palladium (Belo Horizonte/MG).
Dizem que as pipas, ou papagaios, foram criadas na China há cerca de 2.500 anos. Naquele tempo, as pipas não eram coisa de criança, mas instrumentos de guerra. Os chineses as usavam militarmente para transmitir sinais diversos com suas cores, desenhos e movimentos no ar. Às vezes, por outro lado, escutamos que determinadas pessoas são como “pipas voadas”, sendo levadas o tempo todo pela direção dos ventos. A mesma expressão pode também remeter a uma pessoa livre, que não se prende a nada a ninguém.
Há séculos presente no universo das crianças, as pipas são objetos feitos de bambu e seda, associados a uma prática francamente artesanal. São brinquedos democráticos e acessíveis, associados a vivências coletivas, à ocupação de espaços abertos e à integração social de crianças – e também adultos. Na prática, o ato lúdico de “soltar uma pipa” amplia a relação dos corpos com os espaços de vida, abrindo novas perspectivas e também a possibilidade de testemunhar giros e movimentos de uma dança imprevisível que conecta terra e céu.
“Pipas” é o nome de um espetáculo criado em 2023 pelo grupo Contra Bando de Teatro, fundado ainda em 2010 por moradores e moradoras do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Nilda Andrade, integrante do grupo, é quem atua no espetáculo e também assina sua dramaturgia. A montagem é dirigida por Rohan Baruck, artista, pesquisador e professor que atua em São João do Meriti, cidade localizada na Baixada Fluminense. “Pipas” é um trabalho que põe a periferia em cena, seja em termos de origem, de enredo, de linguagem ou de seus aspectos visuais.
Assistimos a “Pipas” em maio de 2024, na abertura da 13ª edição do Festival Nacional de Teatro de Teófilo Otoni (Festto), realizado pelo Grupo e Instituto In-Cena, sediados na mesma cidade mineira. Com o tema Mulheres, o festival aconteceu de forma itinerante, começando por Belo Horizonte, onde “Pipas” foi apresentada no Teatro de Bolso do Sesc Palladium, depois seguindo para Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, até finalizar na cidade de Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri.
O espetáculo chegou a Belo Horizonte, portanto, a partir de uma articulação realizada por um grupo de teatro do interior de Minas Gerais. Nessa importante aproximação entre periferias, podemos enxergar deslocamentos, pontes, desvios, subversões e também uma tentativa – bem-sucedida – de reconfigurar os modos de circulação de obras artísticas, favorecendo intercâmbios ainda raros e viabilizando o reconhecimento de produções muitas vezes marginalizadas, com pouca chance de alcançarem outros públicos.
Realidade e ficção
Logo nos primeiros instantes do espetáculo, antes mesmo que as luzes do teatro se apaguem, somos convidados a conhecer e habitar uma barraca de rua onde se vende esses leves e frágeis objetos voadores. As pipas e a barraca nos são apresentadas por Cláudia, personagem central e também narradora da história, a quem vamos acompanhar durante ao menos uma década de vida. Rapidamente entendemos que Cláudia é filha do dono da barraca de rua, situada no próprio Complexo do Alemão. Em cena, parecem se misturar elementos de ficção e de realidade, articuladas em uma narrativa ficcional produzida a partir da observação crítica da vida e de entrevistas com dezenas de mulheres que habitam o Complexo do Alemão.
As múltiplas temáticas que atravessam “Pipas” são ao mesmo tempo universais e também bastante específicas: a obra reflete sobre as expectativas e as faltas na infância e na adolescência; sobre a violência contra a menina e a mulher, em suas diversas instâncias; traz ainda a delicada e urgente discussão sobre o aborto (ou sobre a impossibilidade dele); denuncia a truculência policial nas periferias; e toca, por fim, nas vidas abreviadas pela ausência de direitos básicos, como a segurança de ir e vir.
Temos no palco um solo cênico, mas a evocação é coletiva. Além de se voltar à violência contra a mulher, “Pipas” trata da desconstrução do romantismo e do amadurecimento que costuma vir a partir da maternidade. O espetáculo tece paralelos entre a trajetória fictícia da personagem e uma série de experiências concretas que o público pode associar a memórias, relatos ou notícias de jornal. A história de Cláudia é também a história de muitas mulheres periféricas, uma espécie de “voz da comunidade”.
A mão do menino que segura a linha da pipa; a mão da mãe do menino, que segura a linha da vida, da memória e das perdas – uma após a outra. São certamente muitas as metáforas criadas pelo espetáculo a partir da pipa que tem sua linha cortada: a infância roubada, a instabilidade da existência humana, a dor do luto por vidas encerradas antes da hora. Transitando livremente entre o drama e a comédia, “Pipas” chama atenção, com franqueza e sensibilidade, à leveza e à dureza das vidas periféricas.
Cláudia e suas linhas de fuga
Apesar do inegável brilho que permeia a personagem, Cláudia se apresenta como uma menina ofuscada pelas histórias dos homens ao seu redor: primeiro o pai, dono da barraca de pipas; depois o jovem namorado, reconhecido como herói ao assumir a precoce paternidade do filho; e finalmente o filho, Joaquim, para quem se voltam todos os olhares da família a partir do seu nascimento. Cláudia é uma mulher em busca de um lugar para si: em busca de protagonismo, visibilidade e autonomia, num contexto onde parece haver pouco espaço para alguém como ela.
É uma pessoa que continuamente reivindica o direito de arbitrar sobre o próprio corpo, a própria vida e o próprio destino. Que denuncia, sem meias palavras, a submissão do próprio corpo a um sistema patriarcal e capitalista. Que vê os próprios planos de vida serem cortados, algumas vezes, por esse sistema, e que busca, a partir de uma visão aguçada e crítica, estremecer também as linhas que a prendem ao mesmo sistema.
Ao longo da narrativa compartilhada, a personagem nos enlaça e nos embaraça em sua busca por tornar-se dona da própria história. Entre cisões e realinhamentos, diferentes registros se fazem presentes na encenação: o jogo cômico na relação com o público, com a barraca de pipas e com suas dinâmicas de trabalho; o épico, no desenrolar de uma narrativa crítica que se estende no tempo, envolvendo a passagem da adolescência para o início da vida adulta de Cláudia; e o dramático, ao destacar, por exemplo, algumas situações vividas pela personagem após a maternidade.
A partir de múltiplos registros e atmosferas, em “Pipas” se sobressai a atuação segura e convincente de uma atriz que, em permanente estado performativo, mantém-se atenta às curvas do espetáculo e à comunicação com o público, buscando estabelecer desde o primeiro momento laços de cumplicidade, relaxamento, escuta e respeito.
Durante a apresentação no Sesc Palladium, a atriz foi aplaudida em cena aberta no momento em que a personagem narra, em clima de samba e tom de deboche, a triste e covarde fuga de seu namorado. Os campos épico e performático aqui se tensionam, nos aproximando e nos afastando da narrativa, em uma teatralidade atravessada pelo fronteiriço e o instável.
O imprevisível e o imponderável
A dramaturgia de “Pipas” nos surpreende em muitos momentos e aspectos: experimenta variadas alturas, propõe interrupções, altera rotas, nos tira do chão. Possui ainda a notável habilidade de fazer rir e chorar. Como um todo, a obra nos oferece histórias complexas, personagens com defeitos e qualidades, relações tortuosas onde o afeto nem sempre se manifesta da forma mais esperada. “Pipas” reconhece que o amor é mais uma construção do que uma imposição, e traz em sua essência a perplexidade do ser humano diante da vida concreta.
“Soltar uma pipa” parece algo fácil de se fazer, mas há muita artesania envolvida nesse intento – e também uma espécie de aprendizado. As histórias contadas por Cláudia são frequentemente interligadas ao imprevisível voo das pipas, e a poética dessas histórias nos provoca a perceber a assimétrica geometria de nossas vidas e trajetórias, reconhecendo a frequente distância entre nossos desejos, sonhos e planos em relação às realidades que efetivamente alcançamos viver.
Por mais que calculemos rotas e riscos, outros polígonos, ângulos e vértices frequentemente nos escapam, revelando que estão menos sob o nosso controle do que francamente gostaríamos. O imponderável, afinal, está sempre no horizonte.
Ficha-técnica
Texto e atuação: Nilda Andrade
Direção artística: Rohan Baruck
Cenário: Tiago Costa
Figurino: Cátia Vianna
Iluminação: Ana Luzia Molinari De Simoni
Assistente de iluminação: Rafa Domi
Operador de luz: Rodrigo Santos
Operador de som: Rafa Domi
Produção musical: Dândi
Composições: Dândi E Wallace Valadão
Fotografia: Nathalia Menezes
Gestão de redes sociais: Curtas Produções | Gérsica Telles\
Assessoria de impressa: Caio Barbosa
Direção de produção: Rbaruck | Rohan Baruck
Produção executiva: Leandro Fazolla
Assistente de produção: Fran Dutra
Idealização e Gestão de Projeto: Nilda Andrade e Contra Bando de Teatro e Outras Patifarias