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Crítica a partir do espetáculo Engenho de histórias de Dona Passa, apresentado por Renata Ferreira na programação da ALDEIA JIQUITAIA – MOSTRA CULTURAL DO SESC TOCANTINS em 23 de novembro de 2022 na cidade de Gurupi/TO.
– por Clóvis Domingos –
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seus lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir e
sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.
(Momento. Adélia Prado)
Adentrar no engenho de histórias de Dona Passa é vivenciar uma experiência fantasmática. Destaco nesse solo da atriz Renata Ferreira a iluminação com seu tom sépia que nos convida a testemunhar algo do campo do inacreditável: é como se de uma fotografia muito antiga saltasse do papel envelhecido uma figura com voz, movimento, presença e vida. Uma espécie de aparição que nos rouba o sossego, causa estranhamento e familiaridade, uma sensação de estarmos diante de alguém que conhecemos, como se nossas avós ali estivessem encarnadas. Dona Passa metaforiza o arquétipo coletivo das nossas anciãs com suas rezas, conselhos, provérbios, ladainhas e causos. Nesse espetáculo de alta voltagem mítica e emocional construímos juntos um engenho das memórias.
A encenação é minimalista e confidencial e o foco recai na atuação precisa e minuciosa da intérprete que, através dos recursos de mímesis corpórea, diante de nós se transforma numa mulher cujo tempo do corpo passou, mas a imaginação não passa, resiste. A construção da personagem em cena revela a capacidade que o artista de teatro tem de se tornar outro e fabular mundos diferentes e impensáveis. Pelo exercício da ficção podemos por alguns momentos descansar de nossas identificações e experimentarmos nos vestir com outras narrativas. Renata Ferreira utiliza um dispositivo poderoso e que depois produz o efeito desejado: primeiro temos a entrada no palco de uma mulher jovem usando sua roupa cotidiana para depois testemunharmos sua transformação na simpática idosa. Não há truque de magia, mas técnica. Assim Dona Passa nasce através desse parto cênico e umbilicalmente nos envolve com suas histórias.
“Tudo passa”, mas Dona Passa ainda continua aqui comigo e com ela pude aprender que o excesso de luz também cega (“não existem mais bruxas e assombrações, tudo é explicado hoje”), que é preciso habitar a escuridão da vida e do mundo, abraçar as sombras, amar o desconhecido, sustentar os mistérios. Uma réstia de luz também é farol capaz de abrir caminhos através de pequenos lampejos.
Engenho de histórias de Dona Passa é puro jogo, conversa boa, palavra dançada, cantiga ancestral, velhice e infância, lucidez e inocência. Aguça nossa escuta e amplia nossa sensibilidade. Apresentada no palco do Centro Cultural Mauro Cunha (na cidade de Gurupi, Tocantins), encontrou nas crianças ali presentes a cumplicidade necessária para a criação e manutenção de uma brincadeira de quintal. Era bonito ver a criançada disputando um lugar para estar junto daquela velha senhora, cuidando dela e também por ela sendo cuidada. Porque onde há fragilidade se convoca nosso gesto de responsabilidade.
O tempo de duração de uma vela flamejante
Fotos: Amanda Leite
De alguma forma o espetáculo aborda o tema da solidão e em seu bojo alterna rigorosa pesquisa de interpretação com modos de improviso e interação com a plateia. Em nosso contexto atual marcado pela aceleração do tempo e pela pobreza das experiências, o trabalho nos provoca ao instaurar uma comunidade de ouvintes mediada pela força da oralidade. Dona Passa resgata a arte da narrativa cada vez mais extinta em nossa sociedade obcecada por imagens. São sussurros e vestígios do humano.
Por trás dos engraçados contos ofertados por aquela mulher de coluna envergada, uma dor trágica e fina vibrava, um arrepio de morte, um prenúncio do fim que a todos nós, está destinado. Mas com Dona Passa a vida insiste, pois ela é um pouco gente e também um pouco bruxa. Tem lá suas artimanhas e armadilhas para germinar belezas e colher delicadezas. Moradora de outros tempos, lá na Aldeia Jiquitaia deu o ar de sua graça. E graças a ela saímos do teatro mais aliviados e como ela dizia: “abençoados”. Penso na literatura do escritor moçambicano Mia Couto: “abensonhados”. Voltei para o hotel trazendo algumas folhas de chá de melissa que ela gentilmente nos ofertou para acalmar os nervos.
Para finalizar: Engenho de histórias de Dona Passa parece alcançar o “grau zero” do teatro: uma história, uma personagem, uma atriz, o palco e o público. Uma forma singela de celebrar os encontros. Pois enquanto Dona Morte não vem a Dona Vida segue com essa dona que nos “passa”, nos ultrapassa: Dona Palavra.