Crítica a partir do espetáculo “Mata rasteira” do Grupo Caras Pintadas (Belo Horizonte/MG)
– por Diogo Horta –
Os artistas da capital mineira vêm explorando cada vez mais as encenações negras, como pode ser observado por outros textos apresentados, sobretudo, por Soraya Martins e Marcos Alexandre no Horizonte da Cena. Com minha voz de homem branco, pretendo refletir sobre o espetáculo “Mata rasteira” do Grupo Caras Pintadas com concepção e atuação de Rodrigo Negão e direção e dramaturgia de Gabriel Coupe que estreou no projeto Criações de Bolso do Sesc Palladium em 08 de março de 2019.
O espetáculo é inspirado no romance “Mata rasteira – A origem da resistência” do paulista Abner Laurindo e traz para a cena um momento crucial da história do Brasil por meio de uma narrativa que revela as origens da capoeira e a criação do primeiro quilombo no Brasil colonial e escravocrata. O espetáculo se conecta com as demais vozes que fortalecem o teatro negro brasileiro oferecendo ao público uma reafirmação dos valores, das lutas e das resistências do povo preto a começar na sua origem no Brasil Colônia.
Acredito que há cinco anos eu não seria capaz de me reconhecer branco e com os privilégios que me fazem estar fora da triste estatística de que a cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil. Aos 30 anos hoje, me assusta saber que durante anos eu não tenha podido entender as diferenças entre o que é ser branco e o que é ser negro. Muitas conversas, debates e algumas leituras foram importantes para este escurecimento. No entanto, a produção de um teatro negro engajado foi o que mais me conduziu para uma percepção da sociedade com outros olhos no que diz respeito ao racismo em suas diversas faces na sociedade atual. É relevante citar um espetáculo que foi importante nesta minha trajetória: violento. de Preto Amparo. (https://www.horizontedacena.com/sobre-presenca-cheiros-estilhacos-e-pipocas/ e também: https://www.horizontedacena.com/trabalho-do-corpo-trabalho-dos-sentidos/ ). Outros trabalhos mais recentes, como os apresentados na última edição do FIT-BH (2018), com destaque para “Merci Beaucoup, Blanco” da Musa Michelle Mattiuzzi também fortalecem minha consciência branca sobre a realidade dura do povo negro ainda hoje.
“Mata rasteira” acrescenta mais uma camada neste tecido de entendimentos e partilhas ao nos oferecer um pouco de história. Um pouco da história que eu nunca estudei na escola, da história apagada dos livros como canta o samba-enredo da Mangueira de 2019:
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
“A história que a história não conta” é, no caso de “Mata Rasteira”, a história de Nlongi, menino nascido em Angola que é retirado de suas terras para vir ao Brasil como escravo. Rebatizado André pelos jesuítas, o menino cresce sem aceitar as misérias a que seu povo está submetido e luta pela sua libertação. Para contar essa história, Rodrigo Negão e Gabriel Coupe propõem uma aproximação entre ator e público, levando 23 pessoas para o palco do Teatro de Bolso do Sesc Palladium. Este número serve de mote para que o ator cite a estatística que aponta que jovens negros, como ele, morrem a cada 23 minutos no Brasil.
O restante do público é instalado na plateia do teatro, mantendo a relação frontal proporcionada pelo palco italiano. Talvez seja este um dos poucos pontos ainda não acertados da encenação, uma vez que o ator compartilha o espetáculo com quem está no palco e acaba esquecendo do público que assiste da plateia, como eu estava. Sem dúvida, o trabalho poderá ganhar mais força em um espaço alternativo singular que permita ao ator construir um semicírculo com todo o público. Isso porque a plateia é solicitada a participar da montagem em alguns momentos por meio do canto, do ritmo com as palmas e até da dança, necessitando de um espaço outro que não o pequeno palco italiano do Teatro de Bolso do Sesc Palladium.
A musicalidade e a corporeidade da capoeira costuram a narrativa e envolvem o público, ancoradas no domínio do ator sobre estes elementos. O artista também se destaca na execução dos diferentes personagens criados para narrar os fatos apresentados na montagem. Sinto, no entanto, que a construção do Padre Jesuíta destoa da obra como um todo. Apesar da força e execução marcantes, a escolha por uma meia máscara expressiva robusta faz com que o registro de interpretação deste personagem se distancie muito dos demais. Por este motivo, a construção deste personagem leva o espetáculo para um caminho oposto àquele da intimidade e proximidade com o público criado nos demais momentos.
No que tange ainda o desenvolvimento das cenas, gostaria de destacar que a manipulação das bonecas Abayomi, criadas por Marcela Alexandre, poderia ter nuances e movimentos que envolvessem ainda mais o espectador. Alguns momentos, como por exemplo, o nascimento do irmão de Nlongi, não aproveitam toda a poesia que a manipulação dos bonecos poderia oferecer ao público.
Apesar de algumas informações e reflexões sobre o povo preto atualmente, como a citação das estatísticas a que me referi, a dramaturgia se centra na narração da história e vejo isso como algo muito positivo. Exploramos nos últimos anos diversas maneiras de recortar a cena e trazer dados e informações para o espectador, com relatos pessoais inclusive, e, por isso, acredito que o espetáculo se diferencia e ganha ao se centrar novamente em uma história. À medida em que conta os momentos mais importantes da vida de Nlongi é que o ator também envolve o público, (pelo menos em parte), fazendo com que este se sinta integrante das dificuldades do personagem bem como de sua vitória ao final.
Apesar da força que a narrativa já tem na montagem, o ato de narrar poderia ser ainda mais explorado tanto na forma como no conteúdo. Neste sentido, falta demarcar com mais clareza para o espectador que se trata de um fato histórico e, assim, conseguir valorizar cada vez mais esta história singular que marca o início da resistência negra no Brasil. Conduzir o público para um período marcante da história e envolve-lo com a força de uma figura emblemática são os dois eixos mais potentes do espetáculo na comunicação com os espectadores.
Também há que se valorizar o conteúdo desta narrativa que com uma história de lutas e conquistas é capaz de dar ao espectador ânimo e coragem para os desafios que se apresentam hoje. Essa é uma opção que deve ser considerada no teatro atualmente: engajar-se por meio de histórias que possam valorizar e inspirar vitórias. Ao invés de somente apresentar denúncias e casos de violência ou de trazer para a cena falas racistas, homofóbicas, transfóbicas e misóginas, por exemplo, o espetáculo opta por uma narrativa de superação apesar das adversidades do período escravocrata. Que o espetáculo possa instigar outras criações com esta mesma percepção e que a força de Nlongi nos inspire a vencer e sobreviver nestes tempos sombrios.
Espetáculo visto no dia 15 de março de 2019 no Sesc Palladium.
Ficha técnica:
Baseado no romance “Mata rasteira – A origem da resitência” de Abner Laurindo
Produção e realização: Grupo Caras Pintadas
Concepção e atuação: Rodrigo Negão
Direção e dramaturgia: Gabriel Coupe
Figurino: Domitila de Paulo
Bonecas Abayomi: Marcela Alexandre
Arte gráfica: Douglas Din
Assessoria de imprensa: Active Comunicação
Fotos: Flávio Patrocínio
Vídeo: Daniel Cosso