– por Luciana Romagnolli[1] –
Escrever é beirar o buraco que faz a gente faltar no mundo.
Escrever cava um pouco mais o buraco do buraco.
Uma frase para minha mãe
Crítica escrita a partir das peças “Uma frase para minha mãe”, “O quadro de todos juntos”, “Quando quebra, queima”, “Fúria”, “Odisseia”, “Dezembro” e “Tráfico”, apresentados no Festival de Curitiba 2019
Fúria, de Lia Rodrigues
I
Cena 1. As palavras da mulher inventam danças da materialidade da língua com a imaterialidade do sentido. Invocam uma mãe dominadora e indomável. O corpo da cena permanece tão estável quanto as páginas de papel escrito deitadas sobre o chão.
Cena 2: Imagens animalizadas para o retrato das pulsões de sexo e morte no seio familiar. Dóceis e asquerosos, infames e apetitosos, inocentes e perversos, adultos e crianças, os porcos expõem a contraface do irracional no humano. Com o artifício das máscaras, desmascaram a agressividade e tocam o tabu.
Cena 3: Estamos dentro de uma escola, alguém ao lado começa um movimento. Corpos jovens reivindicam seu lugar, com força e delicadeza. Quebram as normas que padronizam as exclusões. A ocupação contamina o espaço com uma energia de transformação e transborda para a rua. Estamos vivas e no mundo.
Cena 4: Pirâmides de corpos em fazimento e desfazimento. Uma dança de dissoluções composta por quadros humanos em trânsito, sob a fúria do ritmo tribal. A subjugação do escravizado pelo senhor é sucedida pela subjugação do senhor pelo escravizado. Diante da frontalidade de imagens racistas e misóginas, a impossível simetria na inversão das relações de poder.
Cena 5: Uma mulher conta a história do abandono paterno. Ao longo dos cantos da Odisseia, atrizes e atores se enredam com narrativas análogas às de Odisseu e daqueles que ele encontra no seu longo caminho de volta ara casa. Por fora, o jogo com os espectadores assume distâncias variáveis, do íntimo agora ao mítico atemporal.
Cena 6: Irmãs gêmeas discutem política à mesa da família, ao competir pelo destino na guerra. O espelhamento dos discursos progressista e conservador, matizado pelos afetos fraternos, é embaçado pela impossibilidade da escuta.
Cena 7: Um rapaz e sua moto sob o claro-escuro da luz cênica. As seduções sombrias: do sexo pago ao assassinato pago. Uma masculinidade sustentada no fascínio pela potência. A violência banalizada, vivida na condição de personagem da história alheia.
II
Nas sete cenas embaralhadas acima, sobrevivem vestígios do percurso crítico percorrido nesta edição do Festival de Curitiba, realizada entre março e abril. Sem a ambição de esgotar a complexidade dos espetáculos nas margens deste texto, lanço aqui um olhar sobre a dramaturgia que constituem juntos e algumas indagações sobre as discussões que provocam no território fronteiriço da estética e da ética.
Dos quadros que querem expor as feridas humanas àqueles que desejariam, talvez, quebrar as molduras, emerge uma pergunta comum: Como os corpos em cena se relacionam com o que já existe e como imaginam o que ainda não existe?
E outras mais: Qual é o corpo da palavra libertária? Imagens de degradação podem gerar sujeitos? A violência é um prazer estético? O embate de ideias ainda é possível?
III
Ana Kfouri em “Uma frase para minha mãe”. Foto de Humberto Araujo
Habitar um corpo vivaz como a palavra
Se a língua materna é uma das primeiras estruturas a dar forma ao nosso pensamento, é também uma das primeiras prisões que nos limitam. E a poesia, um modo de rebelião contra a servidão à norma. Em “Uma frase para minha mãe”, a atriz Ana Kfouri preenche o espaço sonoro com a fluidez poética das palavras de outro, tomadas como sua. Este outro é Christian Prigent, escritor, poeta e crítico literário francês; e sua rebeldia escrita contra a língua-mãe e a mãe-na-língua é recriada pelo tradutor Marcelo Jacques de Moraes.
Furtadas deles, as palavras chegam à boca de Ana completamente encarnadas. Vivazes na voz que modula os tempos, os ritmos, os pesos, os sentidos, os ecos. Como espectadora, a vontade é de fechar os olhos e deixar-se invadir pelas ondas sonoras, que ora quebram como um tropeço na materialidade da palavra, ora como a imaterial ruptura dos sentidos previsíveis. Deixar-se invadir pela luz e pelas sombras de um discurso sobre a mãe, feito de imagens e metáforas que se deslocam e metamorfoseiam ampliando os seus sentidos.
[…] tua mãe, tua mamãe, extremamãe, tua imensamentemãe, amorosamãemente, odiosamãemente mamãe, de mais ubiquamente aqui e agora sempre pra sempre senhora no pequeno presente bem enervante […]
Dessa densa floresta de significantes e significações, onde (aqui numa citação imprecisa como a memória) “minha mãe é nome de mim quando não sei o que fazer de mim” e “mãe é mundo com direito a garfo sobre meu prato”, aos poucos essa presença dominante da mãe tentacular vai dando combustível à explosão da sexualidade da mãe, desafiando os tabus da norma familiar para encontrar a vida secreta da língua-materna.
“[…] tua mãe, tua onimãe, tua hipermater, tua oximorimãe, tua maternamãeterna, tua super-semãe, você-pensa, minha mãe, sim, ora, ela goza, sim por horas, sim sim” […].
Tal orquestração vocal, de um domínio fonético, semântico e prosódico nada menos do que impressionante, resulta de um trabalho de longa data da atriz sobre a qualidade de presença e de ação das palavras, que já atravessou textos de Valerie Novarina e Samuel Beckett em outras encenações.
Há também, nessa pesquisa, uma escolha por um tipo de enunciação performática dessas palavras que pressupõe um tipo de corpo que parece se conceber como instrumento musical, a vibrar sutilmente com as trepidações sonoras. Ana se desloca entre blocos de frases, permanece parada num e noutro ponto do espaço, por vezes fecha os olhos e fala com mínimo movimento dos membros, outras faz dos braços abertos amplificadores das palavras, talvez retidas nas mãos espalmadas.
O maremoto vocal então contrasta com a estabilidade do espaço cênico. A rebeldia das palavras, com o corpo obediente aos padrões de movimento. As folhas do texto espalhadas sobre o chão convidam a uma leitura solitária, enquanto os olhos do público se encontram na organização espacial em grandes blocos distribuídos no salão da Casa Hoffmann, concorrendo pela atenção que os jogos de palavras exigem. Como conceber as perturbações das palavras no corpo da cena? Como ecoar a rebeldia poética do corpo das palavras no corpo da atriz? Um espaço que não impeça, um corpo que não contenha.
IV
“O quadro de todos juntos”. Foto de Annelize Tozetto
Emoldurar a violência para o prazer estético
Diante da profusão da produção e da circulação de imagens violentas no meio social, como olhar para “O quadro de todos juntos” e “Fúria” e “Tráfico”? Cada uma ao seu modo, essas peças tomam o teatro como espaço de re-enquadramento da violência, o que permite questionamentos sobre a própria função da arte no entrecruzar do mostrar e do transformar, do revelar e do reinventar.
“O quadro de todos juntos” (leia outra crítica aqui) se apresenta como uma sucessão de instantâneos fotográficos familiares comportados, como reza a tradição, entremeados pela dança das pulsões sexuais e de morte com que os integrantes desses núcleos íntimos se ferem. O que vem à luz é a crueldade da contraface irracional mascarada pelo processo civilizatório.
Por isso mesmo, o que move o grupo Pigmalião escultura que mexe é mascarar para desmascarar. E as máscaras de porcos pais, mães e filhos carregam a polissemia dos afetos despertados pelo bicho. “Sujo”, “moralmente baixo”, “obsceno”, lê-se no Houaiss. As feições dos porquinhos bonecos convocam sentimentos ternos. É animal frequente na culinária típica mineira, diretamente associada à identidade do estado de origem do grupo. Somem-se, aí, as acepções do verbo comer. E, a isso tudo, a música sacra, evocando a tradição cristã fundadora da moral vigente. Eis o quadro, todo pintado nos tons sombrios de um Goya.
No debate que se seguiu à apresentação, os e as artistas do Pigmalião contaram que todas as histórias de agressão encenadas derivam de relatos ouvidos em um hospital psiquiátrico durante a pesquisa para a peça. A composição cênica pela lógica fotográfica condiz, então, com o gesto artístico de revelação do lado obscuro do animal humano. Arte como re-elaboração do que existe.
Se esse gesto se encerra nos limites imaginários de uma dinâmica familiar patriarcal e antropocêntrica consagrada pela tradição – conforme sugerido pelo crítico Henrique Saidel –, o abalo perceptivo é fruto do mascaramento animal/inanimado que age como uma licença para olharmos de frente aquilo que seria, talvez, insuportável entre pessoas de carne e osso: o tabu. Curioso constatar um paralelo entre a aproximação que aqui se faz pela visão e, na peça de Ana Kfouri, pela audição, dos nossos interditos morais.
Cinco anos após a criação do espetáculo, sua contundência se reaviva pelo recrudescimento do conservadorismo e do moralismo no Brasil pós-golpe. Num cenário em que a arte e os artistas são tratados como ameaças sociais que encarnam a imoralidade e a indecência das quais crianças e adultos só estariam protegidos se resguardados pela família e pela igreja, “O quadro de todos juntos” nos convida a olhar sem pudor para essa mesma família abençoada para encontrarmos, nela, o ninho da crueldade. A experiência é de um acentuado mal-estar da civilização.
“Tráfico”. Foto de Annelize Tozetto
Êxtase. O sentimento ambivalente de prazer estético x desprazer sensorial e existencial provém de uma ética na produção de imagens de violência que nos coloca tanto diante do gesto agressor quanto da dor do agredido. Essa contradição é inexistente em “Tráfico” e no discurso de seu autor, Sergio Blanco, dramaturgo e diretor uruguaio radicado na França. Na conversa pós-peça, ele defendeu uma concepção de arte como campo estético e poético, mas não ético. Território de deslimite moral onde nos permitiríamos o extasiar com a violência.
Um ator e uma moto ocupam o centro da cena de “Tráfico”, iluminados por um poste de luz e cercados pelos olhos do público, a quem ele se dirige insinuante. Provoca o olhar sobre seu corpo, brada o avantajado da carne, clama que paguem o que vale. Sob o escudo do Capitão América no boné, pretende-se um anti-herói a contar sua história de queda com a autoconsciência de quem se sabe personagem em obra alheia.
Apesar da bissexualidade professada, sua performance de gênero se investe de uma masculinidade tóxica, obcecada pela potência e seduzida pela violência. Das aventuras nos quartos de hotéis de clientes que pagam por sexo aos que pagam por sangue, seu discurso é marcadamente falocêntrico e misógino. O caminho do abismo – tornar-se um assassino de aluguel – é seguido sem conflito moral, quase como uma atração irresistível.
O parco contraponto que a narrativa dele permite são os traços metateatrais, como o anúncio dos atos e a percepção da música que invade momentos decisivos como trilha sonora. A autoficção, comum na obra de Blanco, se esgueira em detalhes que evocam a relação autor-personagem como análoga à do cliente-michê. Ou a do diretor-ator – conforme apareceu na conversa pós-peça.
É na fricção entre estética e ética – justamente esta negado pelo autor – que se localizam alguns dos pontos a discutir no trabalho, sobretudo, pelo modo como a encenação adota uma narrativa em primeira pessoa, sedutora e destituída de contradições, e se vale da estetização da violência. Embora o autor aluda à estética do barroco como referência para a encenação, a construção plana do personagem é refratária ao contraste de um jogo de luz e sombras.
Ao debater esse aspecto, Blanco sustentou que toda obra sobre violência pratica uma estetização e traçou comparações com o Raskolnikov, de Dostoiévski. O que distingue vertiginosamente esses personagens, entretanto, é o profundo conflito moral detalhado em “Crime e Castigo” e a banalidade de sua ausência em “Tráfico”. Ainda assim, se a estetização é uma forma controlada de gozo da violência, há de se questionar quem goza sob o efeito do discurso de ódio à mulher proferido pelo personagem da peça. Aquela que é feita objeto desse ódio igualmente na sala de teatro e na rua, sem uma elaboração artística que efetive uma diferença sensível, uma disrupção qualquer, entre esses discursos?
Como a repetição de um discurso ou uma imagem de violência, comum no mundo social, dentro do enquadramento cênica pode realmente perturbar uma estrutura simbólica opressiva, e não somente reiterá-la? Qual tratamento estético para qual efeito ético?
“Fúria”.
Saturação. Tal discussão se estende à “Fúria”, de Lia Rodrigues com a companhia que a diretora mantém no Complexo da Maré. Enquanto o anterior “Para que o céu não caia” partia de uma cosmologia indígena para criação de um espetáculo sensorial e imersivo, este novo trabalho assumiu o palco italiano e a relação frontal e distanciada com a plateia no Teatro da Reitoria para a produção de imagens alegóricas das relações de poder e subjugação entre povos.
Os corpos dos bailarinos se redesenham em novos volumes seguindo a materialidade dos acessórios que se acoplam e as cores das tintas que os revestem, como um empuxo a outra humanidade fora das figurações ordinárias.
Ao som de um batuque, talvez gritos abafados, de um disco de world music resgatado do acervo da diretora, elas e eles se arrastam e engatinham, exploram níveis baixo e médio do movimento, e alcançam o alto em formações piramidais que se dispersam e ressurgem alternando as posições dos integrantes, configurando distintas relações de hierarquia.
Uma espécie de ensaio em movimento sobre o poder – ou melhor, sobre a dialética do senhor e do escravo.
Em meio a tanto, determinadas imagens se interpõem furiosamente ante a apreciação do espetáculo. Indagam sobre as implicações ética de somar imagens degradantes de sujeitos historicamente subjugados a um imaginário social já saturado delas.
Um corpo de mulher branca nu, segurado como uma rã, pelas pernas, de cabeça para baixo, pelas mãos de dois homens. Quatro corpos negros de quatro, sustentando corpo(s) branco(s). Um corpo de mulher negra puxado pelos cabelos por um homem. O corpo da mulher de pele mais escura, recoberto de tinta preta, com uma banana na mão e uma vassoura na cabeça.
Sob qual tratamento uma imagem historicamente racista como essa pode subverter seu teor violento ou alterar o destinatário de sua violência e romper com uma construção simbólica de impacto genocida? No debate pós-peça, a bailarina contou que, instigada pela diretora a usar um acessório, escolheu a vassoura com a qual tinha os cabelos comparados na infância. Tal relato diz da intenção de reagir a uma imagem depreciativa apropriando-se de sua força expressiva. O que é preciso, então, para que essa virada no sentido ocorra?
Numa dança dialética, à tese se sucede a antítese, à espera de outra solução pela síntese. Talvez seja essa a dinâmica pressuposta nas metamorfoses das pirâmides humanas, ora com brancos, ora com negros na base. Também variam as cores das peles de quem sustenta nas costas outro corpo que se porta com realeza.
Tal alternância – de poder – sugere uma falsa simetria no campo imagético. Uma equiparação impossível. A imagem de pessoas brancas ajoelhadas como quadrúpedes carregando um “rei” negro não tem o mesmo peso subjetivo de pessoas negras ajoelhadas como quadrúpedes carregando um “rei” branco, porque as antecedem séculos de subjugação da população negra. Incalculáveis imagens de racismo. Não se trata só de mais uma imagem de violência, mas de uma imagem violenta, uma imagem que violenta.
O que ainda provoca, hoje, mais uma imagem-denúncia? A degradação repetida?
E qual a forma de repetição que faz a diferença?
[1] Entre os dias 2 e 8 de abril, retornei ao Festival de Curitiba para participar pela terceira vez das Interlocuções com a ação Encontros Críticos: mediar conversas com artistas e público após apresentações de peças. Acompanho o festival desde 2003 como espectadora e 2006 como jornalista.