– por Matheus Cosmo –
“QUE NOME DAR À ESPERANÇA?
Mas se através de tudo corre a esperança, então a coisa é atingida. No entanto a esperança não é para amanhã. A esperança é este instante. Precisa-se de outro nome a certo tipo de esperança porque esta palavra significa sobretudo espera. E a esperança é já. Deve haver uma palavra que signifique o que quero dizer.”
Clarice Lispector, no Jornal do Brasil, em 26 de maio de 1973.
Ainda deveria ecoar nas salas de ensaio de boa parte dos grupos teatrais aquele que foi um diagnóstico fornecido por Augusto Boal, em pleno ano de 1968: o teatro brasileiro carece de combatividade. Contudo, para além das fronteiras de um preciso imaginário de esquerda, contando com todos os inspirados pelas práticas do teatro do oprimido, a voz de Boal não mais parece ressoar. Em um momento de profundo apagamento da historicidade, grande parte das práticas teatrais contemporâneas parece reduzida à pura experimentação de linguagem – uma experimentação que, no final do século passado, parecia ilustrar uma necessidade de reavaliação dos próprios parâmetros artísticos a fim de encontrar meios de reinventar o trabalho cênico e a forma teatral. (Mal sabia boa parte dos diretores e encenadores que a própria forma artística revela as fissuras de todas as lutas sociais…) Nesse interregno, chegava ao ápice uma longa transformação, descrita por Silvina Rodrigues Lopes em uma precisa formulação: a arte deixava a esfera de interesse para se tornar interessante. Carente de combatividade, o teatro parecia confirmar aquilo que Tristan Tzara dissera já em 1919: por vezes, a arte adormece para ver o nascimento de um mundo novo. No entanto, resta o enigmático problema: quem calcula o exato instante do despertar?
Recentemente, ouvi de um crítico e professor, a quem dedico grande respeito e admiração, que a arte não deveria estar em supostos locais de disputa de poder, uma vez que o lugar reservado ao artista deveria ser aquele baseado na criatividade e inovação. Por um instante, não foi possível saber se a discussão ainda era sobre arte ou se aquele espaço havia se transformado em uma grande conferência sobre gestão, na ordem dos paradigmas e preceitos neoliberais (diante de muitos dos discursos em voga, haveria modo de estabelecer precisas distinções?). No entanto, como bem sabe boa parte daqueles que se dedicam aos estudos artísticos, as almejadas respostas para os impasses do presente são sempre encontradas no âmago das obras analisadas – se tais obras forem dignas de tamanha empreitada, logicamente. Sendo assim, é necessário falar sobre Rózà.
Rózà é um nome que, em um simples enunciado, abarca três esferas: o nome de um coletivo teatral; o nome de um espetáculo, criado pelo mesmo coletivo, dirigido por Martha Kiss Perrone e Joana Levi; e a referência maior: Rosa Luxemburgo. Era 2012 quando começou todo o processo de criação que logo haveria de culminar em uma viagem a Berlim, no ano seguinte, a fim de buscar rastros da história daquela que se tornou um dos maiores símbolos de luta, ao longo de todo o século XX – aquela cuja memória não pode ser esquecida. Do belíssimo programa do espetáculo, entregue a cada um dos espectadores, salta aos olhos uma declaração de Michael Löwy: “o grau de humanidade de nossa sociedade será medido conforme lembrarmos de Rosa”. A lembrança, contudo, não significa ou traduz um mero impulso especulativo dirigido ao passado, mas o reconhecimento de que o tempo passa sem passar, um aprendizado que se mostrou vivo na voz de Roberto Schwarz[1]. O movimento da história permitiu que, enquanto as atrizes estivessem na Alemanha, os olhos do mundo se voltassem ao Brasil e à multidão que, naquele famigerado mês de junho, tomava conta das ruas. Foi assim que o grupo concluiu: Rosa também parecia estar por aqui. Suas cartas rabiscavam no papel a mesma tinta que, naquela ocasião, era utilizada pelas ruas na confecção de um novo quadro. Como desfecho, vale ressaltar a pena que é termos calçadas tão esburacadas…
Invadiu certas formas de crítica e teoria teatral (mas não apenas os estudos cênicos) uma investigação, quase fetichista, pautada em descobrir o que é da ordem do real e o que é da ordem da ficção em cada um dos trabalhos apresentados. Este modelo encontra seu ápice em um livro como Les théâtres du réel, escrito por Maryvonne Saison em 1998. Simplificando um dos grandes argumentos da obra, a nova qualidade estética das composições cênicas daquele fim de século, cuja extensão nessas primeiras décadas do século XXI é evidente, não decorreria mais de escolhas diretas por temas políticos, mas por meio da reivindicação de um acesso ao real. Sem entrar em considerações a respeito do que aqui se encontra denominado por real, mas aceitando a problemática e improdutiva convergência entre a ideia de real e a de realidade, um novo panorama parecia ter se traçado: firmava-se um horizonte no qual a justificativa estética das obras decorreria de sua aproximação (para não falar em termos de uma constante reprodução, que torna tudo ainda mais problemático) ao âmbito da realidade. Não havia forma mais adequada para o desfecho de um século que tanto se encantou por prerrogativas da ação, da performatividade e da presença! O resultado, embora ainda pareça estar se esboçando, já em grandes proporções contudo, não poderia ser outro senão aquele já previsto por Adorno em suas considerações acerca da duplicação dos objetos empíricos pelos meios e formas da indústria cultural: uma completa atrofia da imaginação – uma atrofia que se reflete, especialmente, no campo da política, cujo exercício é, antes de tudo, inventivo. Embora esteja imersa em tais desdobramentos – o inevitável pecado dos contemporâneos –, Rózà parece apontar a possibilidade de uma saída.
Era Foucault quem dizia que cabe à filosofia a delimitação do real da ilusão, daquela verdade que também se encontra prescrita nos interstícios de falsidade. Contudo, no que diz respeito ao teatro, seguindo os comentários do filósofo, este aparente par dicotômico revela-se estritamente falso e improdutivo, uma vez que a condição de existência da própria matéria teatral reside na alternância e na ausência de distinção entre os dois campos. Embora a investigação desse trânsito constante entre os dois âmbitos tenha gerado bons estudos ao meio acadêmico, seus encaminhamentos já se mostram puramente óbvios e pouco se avança nessa discussão que, cada vez mais, gera pilhas e pilhas de estudos de caso. Contudo, toda casa que se constrói em falsos alicerces tende ao desmoronamento. Assim sendo, talvez esteja se aproximando um esperado instante de destruição – uma dissolução da qual Rózà é um fundamental expoente. Tendo o processo de criação dialogado com movimentos como o MTST, o MST, coletivos feministas e estudantes secundaristas, o espetáculo comprova certa necessidade de alteração daquele diagnóstico fornecido por Maryvonne Saison: não é a obra, como um produto estético, que se encontra puramente vinculada à realidade, mas os próprios alicerces que erigem e fundamentam o trabalho são componentes reais de uma luta cotidiana.
Não se trata de falar sobre o real ou de buscar meios para acessá-lo, mas de fazer do próprio movimento da história a profunda substância das obras. Afinal, como já defendia Rosa Luxemburgo, é apenas na luta que suas inerentes tarefas se tornam claras: todo aprendizado e transformação decorre na e pela luta. Nesse sentido, uma palavra parece dar o tom da sinfonia deste novo século: experiência. Não há dúvida de que são muitos os acordes que tentam desviar por completo a melodia, por vezes fazendo uso dos mesmos instrumentos de composição. Contudo, neste início de século, diante das atuais configurações sócio-históricas, que seja possível apostar em um voto de confiança: “só a experiência é capaz de trazer as correções necessárias e abrir novos caminhos”, escrevia Rosa, a respeito da Revolução de Outubro de 1917, um ano antes de seu assassinato – um ano antes de seu corpo ser lançado às frias águas do Landwehrkanal, em Berlim.
“YOU WON’T TAKE MY FREEDOM!
YOU WON’T MAKE MY FREEDOM!”
(Trecho do espetáculo)
É certo que, em muitas das análises produzidas atualmente, ainda ressoam argumentos pós-estruturalistas. De certa forma, insiste-se na impossibilidade de transformação social (afinal, como bradava Margaret Thatcher, there is no alternative) para reiterar a importância de descobrir novas formas de habitar a realidade – formas que, de imediato, não implicam sua alteração, mas apenas uma adequação por outros meios. Embora em muito justifique importantes traços de distintas composições contemporâneas, é preciso não esquecer o alto teor conformista dessa empreitada, em muito apoiada por aquilo que Roberto Schwarz classificava como “trocadilhos filosóficos em moda”[1], que passam à margem da efetividade dos processos sociais. Resta, assim, a questão enunciada por Nicholas Brown, em uma irônica análise dos escritos de Žižek e Badiou: afinal, deveríamos nós esperar pelo advento de um suposto Evento, potencialmente capaz de reorganizar todos os paradigmas e de reestruturar a ordem e o possível, ou deveríamos nos organizar para que algo dessa proporção verdadeiramente aconteça?[2]
É de Tarkovsky o verso que insiste em afirmar que tem de haver mais. De fato, é necessário que se abram canais de entendimento acerca do presente como o específico resultado de determinantes históricas, a fim de que todas as ferramentas que o constroem se façam visíveis e compreensíveis. A historização do presente parece constituir uma enorme e imprescindível tarefa, cuja responsabilidade encontra-se legada aos contemporâneos. Certamente, deve compor este desafio certa necessidade de reavaliação das experiências políticas das últimas décadas. Contudo, um exame refinado do presente, se bem feito e encaminhado, tende a chegar àquela mesma sentença de Lutero, tão relembrada por Rosa, ao longo de seus escritos: “Aqui estou, não posso agir de outro modo!”.
As catastróficas configurações do presente revelam a urgência da mobilização. Por um lado, ocupações e primaveras revelam o esgotamento de certas estruturas e a necessidade de alterações radicais. Por outro, habita a imediatez de tornar real um verso de André Monteiro: “todo dia é dia de revolução”. É daqui que nasce o necessário ímpeto de transformação, do qual as reformas sociais devem ser apenas um meio – e isso era Rosa quem dizia. No final das contas, talvez seja essa a palavra que Clarice Lispector procurava para descrever aquilo que já é, ao mesmo tempo em que aponta para um devir: revolução. Por essas e outras, nós deveríamos voltar a falar nessas coisas. Na verdade, nunca devíamos ter parado… Agradeço à Rózà por lembrar-nos disso – a todas as Rosas. Que ressoem as vozes abaixo:
“E sinto que na primeira oportunidade vou cair com todos os dez dedos sobre o teclado do piano do mundo até fazê-lo tremer. Vocês sabem que tenho temperamento suficiente para incendiar tudo isso!”
RÓZÀ
“Não há tempo a perder. É preciso tomar medidas enérgicas. […] E é por isso que lhes fazemos este apelo: à luta! À ação! Passou o tempo dos manifestos vazios, das revoluções platônicas e das palavras tonitruantes: bateu a hora de agir para a Internacional!”
Rosa Luxembrugo
“Dizem os jornais que recentemente, noventa anos após sua morte, seu corpo teria sido encontrado. Haverá um novo enterro de Rosa Luxemburgo? Por mais que a enterrem uma e outra vez, não conseguirão libertar-se de seu espectro. A centelha incendiária de suas ideias ninguém conseguirá apagar.”
Michael Löwy
[1] Em especial, encontra-se referido, aqui, o texto “Cultura e política, 1964-1969”, publicado no livro O Pai de família e outros estudos, no qual, diante de supostos equívocos contidos nos argumentos desenvolvidos ao longo de todo o estudo, se encontra a famosa e precisa formulação: “O leitor verá que o tempo passou e não passou”.
[2] A expressão foi retirada do texto “Fim de século” e pode ser encontrada no livro Sequências brasileiras, publicado pela Companhia das Letras.
[3] “Do we wait for the Event, or do we organize to bring it about?” IN: BROWN, Nicholas. “{ø,S}Ɛ{$}? Or, Alain Badiou and Slavoj Žižek, waiting for something to happen”. The New Centennial Review, v. 4, n. 3, Winter 2004, pp. 289-319.’