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Ressonâncias a partir dos trabalhos Três Fadas Moribundas (Cia. Bufadas/MG) e Iracema (da artista Rosa Primo/CE) apresentados na programação do FENAPI 2023 em Belo Horizonte.
– por Clóvis Domingos –
A terceira edição do FENAPI – ARTE ENTRE INFÂNCIAS – vem acontecendo agora entre novembro e dezembro nas cidades de Belo Horizonte e Betim. Idealizado e realizado pela Insensata Cia de Teatro (MG), sua proposta continua sendo a de apresentar um recorte específico de trabalhos cênicos e ações formativas (debates e oficinas) que visam provocar e instigar artistas, grupos, pesquisadores e públicos para a elaboração e fruição de obras poéticas que contemplem e abarquem, em seu bojo, as infâncias plurais (presentes em crianças e adultos) através de espetáculos com as mais variadas temáticas e linguagens.
Vale ainda destacar a importância do conjunto de ações realizado pela Insensata Cia de Teatro, que há mais de uma década vem compartilhando suas inquietações através de projetos cênicos autorais e fomentando significativas pesquisas e proposições para se pensar os caminhos atuais do chamado “teatro infantil”, numa aposta pela diversidade de cenas e na necessidade de se enfrentar os temas considerados tabus. Além do FENAPI, a Cia também realizou em 2022 a MOSTRA CURIÓ ARTES E INFÂNCIAS e atualmente desenvolve a segunda edição do projeto ENTRE – FESTIVAL DE INFÂNCIAS GERDAU. A intensa circulação de artistas, obras e experiências oriundas das mais diferentes regiões do país nos permite mapear um pouco do que vem sendo produzido hoje no que se refere ao campo expandido e variado das artes voltadas para as infâncias numa articulação e problematização das questões geográficas, sociais, étnicas e políticas.
Participei como debatedor dos dois espetáculos apresentados na programação do dia 15 de novembro: Três Fadas Moribundas (Cia. Bufadas/MG) e Iracema (da artista Rosa Primo/CE). Guardadas as devidas particularidades de cada trabalho, pude perceber algumas linhas avizinhando ambas as obras: cenas de infâncias atravessadas por gestos de errância e insurgência.
Perder as asas para ganhar o chão
Três Fadas Moribundas é um espetáculo cênico-musical com forte apelo popular e imediata interação com a plateia. Apresentado numa manhã ensolarada e quente na Praça do Trenzinho no Parque Municipal, estabeleceu cumplicidade com crianças e adultos, além de atrair os visitantes e passantes que se viram capturados pela insólita presença daquele trio de figuras “esquisitas” e engraçadas. Unindo teatro de rua com bufonaria, a comicidade (marca principal do trabalho) caminha lado a lado com o refinamento poético (tanto no texto como na encenação) e se equilibra frente ao desafio de se abordar transversalmente assuntos urgentes e dolorosos como a marginalização e exclusão dos corpos dos loucos e dos pobres; o lugar da mulher diante das opressões; o roubo e captura do tempo nosso de cada dia num mundo cada vez mais dominado pela tecnologia, velocidade e produtivismo; além do lugar do fracasso como expressão risível e possível do humano.
A história das três fadas que surgem de um lugar bem longe (“antesmundo”) também remete a ideia de uma ancestralidade numa outra cosmopercepção do mundo, um convite a fabulações redentoras que, por alguns instantes, podem nos fazer descansar e repousar perante a um excesso de realidade asfixiante. Em sua jornada rumo às estrelas, o trio de fadas procura por uma asa perdida, se vê forçado a uma parada, aí se dando a primazia do encontro nesse lugar mediado pela força da ficção, nos fazendo rir e chorar, estabelecendo um “espaço potencial”, abrindo uma f(r)esta.
Foto de Miri Lacerda
São personagens errantes e que estão à margem da sociedade. Lembro-me do geógrafo Milton Santos: “são esses homens lentos que de fato experimentam à fundo a vida na cidade”. Três Fadas Moribundas também se aproxima de um espetáculo da Trilogia Andarilha do grupo Teatro & Cidade (UFMG/TU): Seis Personagens à Procura de um Lugar. Trata-se de propostas que intentam questionar as geografias dos excluídos e o direito ao uso da cidade. São vidas anônimas que pelo jogo cênico ganham relevo, voz, moldam espaços de visibilização e forçam pertencimentos simbólicos e materiais.
Há uma “política do menor” que pulsa nesse trabalho. Uma minoridade. Um despojamento que convoca nossos sentidos e os convida para brincar, prestar atenção nas coisas e fatos considerados pequenos. As três fadas não são seres diáfanos, pelo contrário, são demasiadamente humanas. Afirmam o medo, as dúvidas, a solidão, o corpo como campo de batalha, há uma mistura e tensionamento entre o sublime e o grotesco (arte da bufonaria). As personagens brigam, falam palavrões, reivindicam o “livre direito ao peido”, nos mostram como o corpo pode ser um território de aventuras e descobertas. O infantil aqui se atualiza e confronta as boas maneiras ditadas pela tradicional educação burguesa e religiosa.
O texto de Byron O’Neill traz em vários momentos o jogo das associações livres com as palavras (uma sofisticada tecnologia infantil). Assim as palavras “erram” e pululam seus sentidos dados, como, por exemplo, no início do espetáculo quando ouvimos “moribundo”, depois “marimbondo” e lá na frente “marombado”. A infância tem essa astúcia de inventar palavras outras, colocar a língua em estado de crise, variação, gagueira, delírio e suspensão de sua gramática robustamente estabelecida. A gente passa uma vida inteira se havendo com as palavras, significantes, sons e ruídos que herdamos e repetimos. Colocar as palavras num centrifugador pode ser bem perigoso. Fiquei pensando em tal questão depois de assistir ao espetáculo: “ter asa também pode ser um azar”. Nada é totalmente bom, ruim, certo, errado, provisório ou definitivo. A vida oscila, vacila e vagueia.
A Cia. Bufadas com esse trabalho também fala de contrações, partos, renascimentos, o feminino como alternativa a um mundo falocêntrico e hegemonicamente masculino. Aborda os afetos que curam, celebra a amizade como modo de vida coletiva e o amor como capacidade de superar as diferenças. Exercício de alteridade radical. Traz no texto um alerta para pensarmos a nossa existência entre duas temporalidades: um tempo pequeno (empobrecido e refém dos imperativos da felicidade, do sucesso e da obediência alienada ao sistema neoliberal); e outro, grande (aqui no sentido de ampliado): tempo de esperança ativa e combativa. Tempo de silêncio. Tempo de consciência de nossa lista de “desimportâncias cotidianas” (Manoel de Barros), mas que são aquelas que na verdade tecem nossas histórias e fazem laço com a vida.
A direção de Joyce Malta imprime um pouco de sua pesquisa sobre a arte da bufonaria e colabora de forma afetiva e efetiva para o excelente desempenho dos atores Carol Oliveira, Gustavo Djalva e Paloma Mackeldy. É possível identificar momentos que se alternam entre marcação e improvisação, mas a dinamicidade da encenação não fica de modo algum “engessada”, pelo contrário, sua estrutura se abre para certa instabilidade e numa dimensão liminar também experimenta uma abertura para movimentos errantes, numa espécie de antiestrutura que alarga as possibilidades de um acontecimento vivo.
Cecília Meireles, em seu poema Para ir à Lua, nos conta sobre um grupo de meninos que, impossibilitado de pisar na lua, desliza de patinete pelas calçadas da rua. Uma política do chão. E a autora defende que caso eles tivessem asas, não se transformariam em anjos, pois são “marmanjos”. Três Fadas Moribundas é também um pouco sobre isso: assumir nossa carnalidade, nossa extrema vulnerabilidade, esse corpo que ama, brinca, sofre, envelhece, tem fome, fica moribundo, mas tudo isso também é produção de saúde e é a vida acontecendo. Existem outras alternativas frente à ideologia de uma vida marombada: a alegria ingênua, gastar tempo com as bobagens, comer pão com manteiga derretida, o cultivo da curiosidade para perceber a preciosidade dos tesouros escondidos numa vida marimbondo, isto é, existência minúscula. Se deixar picar pelo inesperado.
Quando a Ira dança
A pesquisadora, professora e bailarina Rosa Primo buscou na famosa personagem do cearense Jose de Alencar a possibilidade de discutir questões que atravessam a figura da mulher, bem como o sentido de sua presença como parte dos povos originários do Brasil, seja no passado ou no presente. Iracema, espetáculo de dança contemporânea destinado para crianças, foi apresentado à tarde no Teatro Espanca, região central da cidade.
O trabalho apresenta uma rica conversa entre artes plásticas, performance, brincadeira de rua e denúncia social. Iracema é um emaranhado de imagens e sensações, um presente para nossa percepção. Uma encenação minimalista na qual testemunhamos a erótica das formas, a dança com os objetos cênicos, o corpo da performer produzindo inusitadas paisagens, fragmentando as partes num jogo entre esconderijo e revelação. Nesse trabalho o tempo se apresenta lento e dilatado, fazendo uma curva e uma pausa na aceleração que vivemos, permitindo assim certo desconforto e estranhamento diante daquilo que vai se construindo à nossa frente. Aquilo que se forma, deforma e reforma.
A Iracema de Rosa Primo rompe uma caixa de papelão para dançar outras possibilidades de ser lida ou referenciada, explodindo as amarrações e leituras viciadas. Assim, rompe de alguma forma também com o silenciamento imposto pelo seu autor (já que na obra a personagem é falada o tempo todo pelos homens), destrói as muitas caixas que aprisionam as artes, a visão estereotipada dessa personagem, do Nordeste, as caixas-rótulos que esmagam a subjetividade das mulheres. Enfim, rasga metaforicamente as páginas de um livro romanceado e idealizado.
A Iracema aqui “grita” e se rebela num outro registro fora do discurso falante, mas dançando, lutando, resistindo em não morrer (na cena de brincadeira infantil: “morto-vivo”), se metamorfoseando em muitas outras mulheres, coisas, bichos, mundos. Uma insurgência contra a colonização e a manutenção da história única e universal. Um trabalho corajoso por não desejar explicar ou informar nada, nem transmitir nenhuma mensagem, mas criar um espaço aberto e poroso para muitas fabulações ou ainda poder sustentar o “não entender”, permanecendo no vazio das significações.
Iracema é uma dança errante. Muitos sons e ritmos atravessam Rosa, o espaço e o tempo. Ela erra brincante em meio a objetos e rompe lógicas, normas, bagunça o campo estabelecido das identificações. São muitas Iracemas ali fabuladas e dançadas. Há alguns devires na corporeidade da performer: um devir-criança, um devir-animal e um devir-indígena. Um corpo de passagens de forças e formas. São vestígios ali deixados naquele espaço cenográfico coerente com a proposta: um quadrilátero de papel madeira afixado ao chão com fita crepe. Lembra um grande livro que não se abre, mas se atua em cima dele.
A precariedade dos materiais utilizados em cena e a opção por uma dança amante dos “planos baixos” lembra não somente o agachar das crianças pequenas como também o acocorar das anciãs indígenas. Ao final, com o espaço cênico destruído, logo transformado, o que se aponta é para essa necessidade de luta, de acreditar que é possível mudar o rumo das coisas.
Uma dramaturgia da ira poderia ser pensada como uma das chaves de leitura do trabalho. Diferente da violência, o que parece se presentificar ali é um corpo guerreiro, com seu arco e flecha apontado para os poderes necropolíticos que sangram e dizimam as minorias no Brasil. Iracema, trabalho que atiça e aguça a sensibilidade e inteligência de crianças e adultos, ganhou para mim mais consistência ao ser apresentado no baixo centro da cidade. Ao caminhar por ali, após o espetáculo, fui abordado por inúmeras Iracemas me pedindo ajuda para comprar comida e remédio. Esse povo “índio”, esses “involuntários da Pátria” (segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro) não param de se multiplicar e sua insurgência se faz ao escancarar a vergonhosa acumulação de bens e riquezas de uma classe privilegiada e autocentrada. Não há nada mais obsceno do que a fome e a miséria.
O projeto contou com uma equipe formada apenas por mulheres: Rosa Primo, Clarice Lima (direção e dramaturgia), Carolina Wiehoff (cenografia e figurino), Raisa Christina (pesquisa de movimento). Iracema é insurgência feminina, infantil e artística: “Quem é Iracema para você”? Essa pergunta só pode ser respondida um a um, uma a uma.
Experiências de perda
Três Fadas Moribundas e Iracema se configuram como poéticas da insurgência. Num contexto marcado por tanta banalidade que mira nas crianças potenciais objetos para o consumo, tais espetáculos funcionam como pequenas e efêmeras “rebeliões cênicas” que se recusam a corroborar com essas lógicas perversas. Num mundo repleto de fardos e fardas (que pesam e pisam) e esvaziado de fadas (fantasia e imaginação), impossível não se tornar moribundo. Os espetáculos aqui analisados convidam-nos a confrontar e passear pelo infantil, pelo feminino e pela loucura que habitam em cada um de nós, e essas paisagens se encontram presentes na linguagem dos trabalhos.
Infâncias, insurgências, errâncias, forças femininas e políticas do chão foram algumas linhas que me auxiliaram na construção dessa escrita. Ela, também errante, brincante, mobilizando todo meu corpo.
Ela, a escrita, que nasceu depois da perda (fim) dos trabalhos assistidos.
A estória da fada que perdeu suas asas.
Uma personagem indígena clássica que perdeu sua dimensão mítica.
Há quedas que também podem ser voos?
Fichas técnicas:
Três Fadas Moribundas
Idealização: Carol Oliveira
Direção: Joyce Malta
Produção: Carol Oliveira, Joyce Malta e Maria Mourão
Dramaturgia: Byron O´Neill
Elenco: Carol Oliveira, Gustavo Djalva e Paloma Mackeldy
Produção Musical: Barulhista
Voz em Off: Iara e Joyce
Composição do ‘Reagaton Fadástico’: Carol Oliveira, Gustavo Djalva e Paloma Mackeldy
Provocação musical: Joyce Malta e Gustavo Djalva
Figurino: Grupo Oficcina Multimédia e Jonnatha Horta Fortes
Próteses: Pigmalião Escultura que Mexe
Costura: Irene Cavalieri e Vitória Cavalieri – Ateliê Decustume
Oficina de maquiagem: Cacá Zech
Touca de crochê : Izabela Lopes
Cenotecnia: Café Móveis
Fotografia: Bianca Aun
Vídeo: Byron O’Neill
IRACEMA
Conceito e Performance: Rosa Primo
Direção e Dramaturgia: Clarice Lima
Assistente de Pesquisa e Movimentos: Carolina Wiehoff
Pesquisa de imagem e i lustração: Raisa Christina
Criação, Cenografia e Figurino: Carolina Wiehoff, Clarice Lima, Raisa Christina e Rosa Primo
Assessoria em Figurino: Marina Carleial
Trilha sonora: Thiago Almeida
Iluminação: Walter Façanha
Operação luz: Nelson Albuquerque
Fotos: D n Seixas, Guilherme Silva e Luiz Alves
Produção: Som e Fúria Produções Artísticas
Produtor Executivo: Jota Júnior Santos
Parceiros: Karthaz Studio, Universidade Federal do Ceará Instituto de Cultura e Ar te e Escola de Artes de Porto Iracema
Representação Internacional: Amazonas Network