uma possível conversa entre as artistas Cida Falabella, Glaucia Vandeveld e Rita Clemente
— por Daniel Toledo —
Cia. Sonho & Drama. Fotos: Guto Muniz
Nascida na capital mineira, Cida Falabella está presente na cena teatral de Belo Horizonte há exatos 40 anos. Auto-didata, começa no teatro infantil, aos 16. Em 1981, entra para a companhia Sonho & Drama, coletivo fundado em 1979. Em 1990, antes de completar 30 anos, passa a trabalhar também como diretora dentro – e fora – da companhia. É mais ou menos nessa altura que seu caminho se cruza com as trajetórias de Glaucia Vandeveld e Rita Clemente, que chegavam à cidade no fim da década de 1980, para estudar e trabalhar com teatro.
Natural da pequena cidade de Porto Feliz, no interior de São Paulo, Glaucia vinha de alguns lugares e já tinha certa experiência como atriz e professora. No entanto, depois de se formar na Escola de Arte Dramática da USP e passar uma temporada lecionando em Ouro Preto, chegou a Belo Horizonte sem conhecer muita gente na cidade. Rita vinha de Nova Lima, aos 20 anos, para estudar teatro na primeira turma do curso técnico do Palácio das Artes. Ao se formar, viraria professora da mesma escola. Já havia estudado música em Belo Horizonte, e tinha como importante referência artística, a Cia. Sonho & Drama, coletivo do qual passaria a fazer parte ao terminar o curso.
De lá pra cá, muita água passou por baixo da ponte. As três construíram trajetórias singulares e, decerto, bastante relevantes para a cena teatral da cidade e do país. Apesar de terem traçado caminhos e escolhas distintas, Cida, Glaucia e Rita também já se encontraram bastante, tendo em comum o trabalho continuado e um trânsito consistente entre a cena e a sala de aula, entre a criação de espetáculos e a formação de artistas, espectadores e cidadãos. Ao longo de duas conversas realizadas em abril e maio de 2016 e aqui organizadas em oito possíveis tópicos, as artistas compartilham memórias, perspectivas e reflexões do instante, sobre a vida e o teatro, sobre o que aprenderam, desaprenderam e ensinaram no decorrer de robustas trajetórias em pleno curso.
Com elas, a palavra.
Boa escuta!
I. Primeiros passos e os que vieram depois
Cida: Eu já fazia teatro na escola, no Instituto de Educação, mas fiz curso superior em História, então a minha relação com teatro teve sua base na prática, mesmo. Meu primeiro trabalho foi em 1976, quando eu tinha 16 anos, no teatro infantil, trabalhando com um diretor remanescente do grupo do Jota Dangelo, que era o Helvécio Ferreira, e dos 16 aos 21 eu fiz muita coisa solta. A coisa mudou de figura quando, em 1981, eu entrei na Sonho & Drama, companhia que se tornou, de fato, a minha escola. O Carlão (Carlos Rocha), que era meu companheiro na época, também fazia parte do grupo, e nós tivemos uma trajetória juntos, durante um tempo, na Sonho & Drama. Ele, como diretor, e eu, como atriz, mas desde o início eu também traduzia textos, produzia, me metia um pouco em tudo. E aí, algum tempo depois, quando o Carlão saiu da direção, eu tinha um pouco mais de experiência que os demais integrantes do grupo, então peguei a direção, isso em 1990. Isso significou, pra mim, uma formação muito baseada na prática e no auto-didatismo, tenho o grupo como um lugar que forja a sua formação, por meio de oficinas, por exemplo. Só mais tarde é que fui retomar a ligação com a academia: voltei à universidade, dessa vez para dar aulas, e, a partir daí, tive vontade de retomar o estudo, fiz mestrado em Artes Cênicas e fui, inclusive, a primeira pessoa a defender uma dissertação em teatro dentro da UFMG.
Glaucia: Eu comecei com teatro amador, em 1975 ou 76, na escola, em Porto Feliz, interior de São Paulo. Entrei na escola de teatro em 1978 e me formei em 1981. O curioso é que descobri esse desejo sem nunca ter visto uma peça profissional. Naquela época, a cidade tinha 30 mil habitantes, nunca passava teatro por lá, lá não tinha teatro e até hoje não tem. Mas a gente tinha um grupo que produzia alguns trabalhos dentro de uma lógica ainda muito amadora, que dialogava com a cena da cidade; minha mãe, inclusive, também fez parte de um grupo amador por lá. O teatro permeava, então, a cidade, mas de uma forma livre e intuitiva. E aí, quando eu fui fazer vestibular, fiz também para Sociologia, pois eu tinha muita incerteza em relação ao teatro. Com isso, levei os dois cursos em paralelo, tendo o teatro como atividade e a sociologia como uma espécie de respaldo, como uma espécie de olhar sobre o mundo. Formei na Escola de Arte Dramática (EAD) da USP, que era uma escola técnica. Naquele momento, se podia fazer direção dentro da Escola de Comunicação de Artes (ECA) ou, então, atuação na EAD, e a gente acaba criando muitas pontes entre os alunos de direção e atuação.
Pouco tempo depois, me casei e meu marido veio para Minas Gerais. Nós morávamos em Cachoeira do Campo, e ele era professor na UFOP. Naquele momento, eu me perguntava muito o que poderia fazer ali. Como não tinha muito jeito de atuar, eu ofereci uma oficina para o Instituto de Arte e Cultura (IAC), que foi anterior à faculdade de teatro em Ouro Preto. Até então, esse instituto oferecia muitos cursos concentrados na área de patrimônio, mas, no fim das contas, consegui oferecer uma oficina de teatro para os alunos da Universidade, geralmente ligados aos cursos de História e Letras, entre outros. Fiquei nesse instituto até 1985, sempre dando oficinas, até que voltei pra São Paulo, fiquei um ano, e logo em seguida vim para Belo Horizonte, em 1987.
Eu assistia muitos espetáculos, inclusive da Sonho & Drama, que já existia, procurava também anúncios de teste no jornal, mas parece que, aqui, essa dinâmica nunca existiu, de fato. Foi, então, pelo caminho da educação que eu consegui uma forma de me inserir na cidade, dando aulas pra crianças e adolescentes no Sesi. Isso só mudou quando, durante uma oficina, eu conheci a Marina Miranda, que era casada com Valmir José, e ela disse que o marido estava fazendo uma montagem.
Cida: Aí vem aquele currículo de paulista, com a formação completa, vários cursos, vários nomes… Porque, aqui, a escola demorou muito para acontecer.
Durante muito tempo, só existia o Teatro Universitário (TU), da UFMG, e o Tesc, da Priscila Freire. O Palácio, por exemplo, começou com uns cursos livres, conduzidos pelo Eid Ribeiro, ainda antes do Centro de Formação Artística do Palácio das Artes (Cefar). Acredito que um dos marcos desse período foi a montagem de “Macunaíma”, do Antunes Filho, que foi arraso, pois saía do texto dramático e ia para a literatura. Isso influenciou muito a Sonho e Drama, e nós passamos algum tempo trabalhando com a adaptação de clássicos da literatura mundial. A esse respeito, a montagem de “Dona Beja” foi como um Macunaíma mineiro, reunindo algumas gerações de atrizes da cidade, dentre as quais a Elisa Santana e Wilma Henriques, e essa montagem já estava de algum modo ligada a escola de formação do Cefar.
O curso universitário de Artes Cênicas vem somente em 1999, na virada para 2000. Esse surgimento tardio, na minha visão, acabou tendo impactos positivos e negativos sobre a cena da cidade. Acredito, por exemplo, que o fato de demorarmos tanto a ter um curso superior em teatro acabou atrasando também a formação de um pensamento crítico sobre o que era produzido naquela altura. Durante muito tempo, os grupos de teatro eram tratados como um bando de malucos que faziam pesquisa, tachados de “teatro ameba” ou então “teatro charada”. Se você compara com a cena da Bahia, por exemplo, vê que o lastro de 40 anos de curso superior permitiu a eles uma série de conexões com o exterior e com uma série de pensamentos sobre teatro que só foram ganhar força por aqui algum tempo depois.
Rita: Eu cresci em Nova Lima, cidade onde existe um teatro municipal muito interessante, que já passou por muitas mudanças, muitas transições, mas nunca se estabeleceu. Talvez por ser muito perto de Belo Horizonte, por sempre haver esse ir e vir, a população da cidade acabe nem sentindo tanta falta desse equipamento funcionando. E como lá não havia escola de teatro, minha primeira formação se deu basicamente a partir de cursos livres, oficinas, semanas de cultura, algo que era muito comum quando eu tinha lá meus 15 anos.
Foi nesse contexto que eu tive contato com o Paulo Lisboa, ator da Sonho & Drama, que era da minha cidade, mas já fazia teatro profissionalmente em Belo Horizonte. Ele era realmente uma referência para mim, com ele assisti pela primeira vez a montagem de um texto do Beckett, “Fim de Jogo”. Eu me lembro também que quem me apresentou “Dias Felizes” foi o Paulo, isso quando eu já estava no primeiro ano do curso do Cefar. Também naquele contexto, o Paulo me deu um livro que foi muito importante, “Processos Criativos de Robert Wilson”, no qual se falava sobre a quebra da lógica dramática, sobre espetáculos com duração de seis horas, experiências ainda muito raras por aqui.
Mas, ainda em Nova Lima, eu fiz alguns trabalhos amadores, com referências sempre muito boas. Antes de começar no teatro, eu já fazia música na Escola de Minas, do Milton Nascimento, aqui em Belo Horizonte. E Belo Horizonte, àquela altura, era para mim a única possibilidade.
Glaucia: Eu vejo que são histórias muito parecidas: eu também era do interior, fazia teatro amador, e São Paulo era a única possibilidade. Na minha cidade não tinha universidade, então os jovens terminavam o terceiro ano, e as famílias já estavam muito preparadas para essa saída.
Rita: Quando eu vim de vez para Belo Horizonte, em 1986, eu tinha 20 anos e realmente não fazia ideia de como funcionava o mercado do teatro na cidade. Mas eu já conhecia a Sonho e Drama, pelo Paulo Lisboa, e de alguma maneira aquilo me puxou, pois me parecia um teatro muito especial, muito bem cuidado.
Assim que eu entrei no Cefar, eu realmente achei tudo lindo: aquela salas, aquele lugar, aquelas pessoas falando sobre teatro. Eu me reconhecia muito ali, percebia que estava entendendo tudo. Foram três anos de muito entusiasmo, e ao longo desse período eu já encontrava alguns pedacinhos da Cida. Primeiro: o Eid Ribeiro estava lá e dirigiu uma das peças de formatura da minha turma, “Flor da Obsessão”, baseada em Nelson Rodrigues.
No fim do primeiro ano, início do segundo, eu tive aula de interpretação com o Carlão, e, para 99% das pessoas que passavam por essa aula, aquilo era revolucionário, porque ele tinha uma metodologia que vinha da Sonho & Drama. Era uma metodologia que vinha da criação, e não mais da academia, do Stanislawski, por exemplo. Ele vinha de uma experiência prática, e isso, para um escola técnica, era algo que realmente fazia sentido. Com isso, por outro lado, a gente também acabou já entendendo melhor o que era a Sonho & Drama, o que era um procedimento artístico continuado que tinha um proposta de trabalho em torno da cena, mas também do ator. Isso, hoje, talvez seja comum, mas, antes, era o ator, o texto e pronto. Eu até acho que pode ser isso também, mas às vezes acaba sendo pouco. E esses procedimentos desenvolvidos pelo Carlão acabavam nos dando uma espécie de intimidade diferente com a cena.
Glaucia: Sim, porque, durante muito tempo, o diretor era principalmente um encenador, e o ator precisava apenas funcionar, sem participar tanto dos procedimentos de concepção e criação de cada trabalho.
Rita: E é interessante perceber que, hoje, nas escolas, a pedagogia tem a ver com Stanislawski, com Brecht, mas também com as experiências destes grupos que criaram metodologias específicas, nos quais os diretores, muitas vezes, acabam se constituindo como pedagogos. Isso acaba, evidentemente, formando mais do que um ator. Isso acaba formando um artista, uma pessoa ligada na cena, um artista responsável, que realmente vai para a cena, em vez de ficar somente esperando o texto chegar.
Glaucia: Quando eu fui conhecer o Valmir, por exemplo, eles tinham acabado de fazer o “Sobrado de Santa Teresa”, e ele queria fazer uma coisa mais colaborativa. Em 1993, isso era uma coisa muito nova, e tinha como base escrever a partir de improvisações dos atores. Começamos esse processo, mais ou menos com a equipe do “Sobrado”, e era muito interessante a ideia: tratar das nossas relações com a cidade, de algo que estava muito próximo do cotidiano e da realidade local.
Ele estava muito disposto a lidar com colaborações dos atores, mas o projeto ia pra editais de incentivo com texto inacabado e nunca passava. “Como assim texto inacabado? Como assim, em processo?”, aquilo era realmente novo para a época. Dai eu me lembro de o Valmir ficar puto e falar: “Então vamos montar um clássico, ‘Tio Vânia'”, e realmente montamos a peça, com direção do (Luiz Carlos) Garrocho. Foi nesse contexto que eu voltei a atuar, depois de muito tempo me dedicando somente à formação, a condução de oficinas.
Rita: A minha primeira experiência profissional foi logo depois de sair da escola. A Cida ficou grávida, e eu recebi a missão de substituí-la num espetáculo infantil chamado “Vida de Cachorro”, com direção do Carlão.
Depois disso, a gente engatou “A Casa do Girassol Vermelho”, do Murilo Rubião, uma peça que, olhando hoje, parece ainda mais pungente do que naquela época. Aqui todo mundo metia o pau na peça, mas nós conseguimos ir para um festival na Venezuela, e a repercussão foi muito interessante, as pessoas gostaram, e eu até recebi um convite pra ficar por lá.
Cida: Essa peça foi meu primeiro trabalho de direção, em 1990, a partir de três contos do Murilo Rubião: “A Lua”, “Bárbara” e “Os três nomes de Godofredo”. Foi um momento muito marcante, logo após a saída do Carlão, em que houve uma união muito grande entre as mulheres do grupo. Nós nos apresentamos em oito regionais da cidade, isso há 26 anos, pegando carona no primeiro movimento de descentralização da cultura na cidade, sob a gestão da Berenice Menegale. Foi essa circulação que viabilizou a nossa ida para a Venezuela, numa espécie de troca mesmo. Por outro lado, esse foi um trabalho muito mal recebido por aqui, sobretudo por uma crítica muito careta, que insistia em procurar ali alguma coisa dramática.
Nesse trabalho, eu tive uma lição de vida muito grande, que acabei levando para a ZAP18 (ZAP), e tem a ver com a importância do espaço onde se cria cada trabalho. Com o tempo, entendi que o lugar é constituinte do espetáculo. “Mãe Coragem”, por exemplo, jamais teria a força que tem se não tivesse sido ensaiado e apresentado na ZAP. Falo isso porque a gente ensaiava “A Casa do Girassol” num lugar lindo, um espaço dentro de um laboratório da Escola de Engenharia da UFMG. Quando chegamos, estava tudo imundo, mais aí limpamos e ficou lindo. Foi uma pena que, na época, a gente não tinha cabeça pra apresentar lá mesmo. No fim das contas, fomos estrear no Teatro Francisco Nunes, tendo ensaiado somente um dia por lá. Com isso, de certo modo, nós só entendemos as qualidades do espetáculo quando fomos Venezuela, e, lá, ele foi um grande sucesso.
No ano seguinte, voltamos a Caracas com o “Vida de Cachorro”, que participou de um festival infantil. Depois disso, fizemos o “Caminho da Roça”, um trabalho muito bem sucedido, que fizemos em muitos lugares, com o qual passamos por muitos festivais.
Glaucia: Eu me lembro muito do “Caminho da Roça”, que assisti pouco tempo depois de chegar a Belo Horizonte, e o contato com o trabalho da Sonho & Drama sempre foi muito marcante pra mim. Hoje, olhando para trás, vejo que eu era mesmo muito tímida, pois poderia ter me aproximado mais dos grupos, das pessoas que estavam produzindo naquela época, como muita gente faz hoje em dia.
Talvez por conta dessa timidez, durante um bom tempo, as minhas experiências de grupo foram mais dentro do que era o convencional. Foi muito importante, por exemplo, a minha participação no grupo Comboio, um grupo que tinha essa preocupação com trazer público, pensar em projetos com ingressos baratos, oferecer ônibus, buscar trazer, de fato, as pessoas que ainda não estavam na plateia do teatro. A questão estética e a escolha do que dizer, por outro lado, já não passavam tanto por essa dimensão política. O Comboio funcionava como uma espécie de cooperativa de artistas, que teve início logo depois do “Mais de 30” e do “Santa Edwiges”. Nós ficamos no Teatro Sesi Holcim durante uns cinco anos, tínhamos muito público, mas de algum modo o grupo acabou ficando meio esquecido dentro da história do teatro da cidade.
Quando recebi o convite para fazer o “Congresso Internacional do Medo”, do Espanca!, eu ainda estava no Comboio, em plena atividade. Mas me lembro muito das pessoas que iam assistir ao espetáculo me perguntarem onde é que eu estava antes, e ali entendi que eram universos e públicos muito diferentes, pois eu estava em cena desde 1994, sempre trabalhando dentro do Comboio. Durante esse período, inclusive, a Cida me dirigiu em dois espetáculos, “A Vida é uma Ópera” e “Itinerário Lorca”, sempre em processos muito horizontais, muito diferentes do que eu vivenciava dentro do grupo, e eu acredito que tenha começado ali o desejo de me aproximar dessa construção mais colaborativa.
Hoje, vejo o que me fez sair desse lugar profissional onde eu estava foram justamente esses encontros com a Cida e com o Espanca!. Acredito, de fato, que os modos de produção vão se transformando, então é preciso sair do lugar, em vez de ficar esperando alguém te convidar pra um trabalho.
II. A formação de cidadãos sensíveis
Glaucia: Acho que a escola é um lugar muito importante, de acesso, de empoderamento das pessoas que fazem teatro, e isso a gente vê e vive, diariamente. Eu cheguei às escolas por meio do Garrocho, que dava aula no Einstein e me levou pra lá. Depois disso, dei aula também no Colégio Loyola e na Escola da Serra. E acho que nesse ponto nós três temos mesmo algo em comum: o desejo de pensar não só o lugar da cena e do artista, mas também da formação e do educador.
Cida: Lá na ZAP, à medida que a gente começou a acumular um material, desenvolver procedimentos criativos, a gente começou a dar oficinas. E, aos poucos, o grupo acabou se tornando mesmo um lugar de oficinas, comigo, com a Elisa (Santana) e, mais tarde, com o Gustavo (Falabella). Cada vez mais nos interessa trabalhar com quem não tem formação nenhuma, misturar idades, origens, gente de diferentes regiões da cidade. Isso, inclusive, vai para a seleção dos cursos e oficinas que oferecemos. Hoje em dia, os primeiros que chegarem e estiverem a fim de ficar, ficam. Como eu vou dispensar com uma pessoa que já é excluída de tudo, da UFMG, do Palácio, do TU? Se a gente rejeita essas pessoas, elas vão deixar de fazer teatro.
Aos poucos, entendemos a importância de conversar com os pais dos nossos estudantes, também. É importante que eles não nos confundam, por exemplo, com esse cobra caro para que o menino ou a menina vire modelo, uma expectativa que vez ou outra a gente encontra por lá. Então esclarecemos, desde o início, que o nosso trabalho não tem nada a ver com isso, que o nosso trabalho é para a criança se distrair, se divertir, viver de verdade. Nosso objetivo não é que os estudantes virem artistas, façam desfiles, é outra coisa bem diferente. A gente sempre gosta de ter essa conversa com os pais, porque muita gente chega lá achando que o curso tem que dar em alguma coisa, algum resultado profissional, e não se trata disso.
Ali, eu entendo o teatro como um lugar de expressão, um lugar que você ocupa e que te serve para a vida. Se você quiser ser artista, a gente vai te acolher, claro, mas, no geral, as pessoas passam por lá e depois vão fazer outras coisas. Mas levam, consigo, uma experiência de empoderamento, de vivência em coletivo, de respeito, de horizontalidade. De trabalhar em um lugar onde existe coordenação, mas também existe uma relação de igualdade, existe espaço para fala, algo que é pouco comum de se encontrar em outros espaços. Infelizmente o que a gente tem, hoje, são relações de trabalho muito ruins, assim como relações escolares, familiares, amorosas, então o teatro acaba funcionando como um balão de oxigênio que você aciona e, depois, volta pra vida.
Glaucia: Ao longo dessa experiência na escola, tive alguns alunos que continuaram trabalhando com teatro, mas também outros, que estão na música, ou então nas próprias plateias dos espetáculos. O que acontece, às vezes, então, é você formar também um bom espectador, uma pessoa sensível, uma pessoa que valoriza esse trabalho, porque já passou por ele. Eu acho que o teatro estimula essa educação do olhar, do sensível, esse lugar da alteridade. E você encontrar uma criança que consegue se colocar no lugar do outro é fantástico – quanto antes, melhor. O teatro tem que estar na escola desde pequeno por isso, para estimular a escuta, pra fazer com que as crianças se coloquem também. Serve, claro, para perder a timidez, mas definitivamente não é só isso.
Cida: Sem dúvida alguma, essa questão da sensibilização sempre acaba passando pelo nosso trabalho. Muitas vezes, lá na ZAP, convido os estudantes pra assistir a alguma peça de teatro e não faltam desculpas. “Ah, mas é caro!”. “Ah, mas é longe!” E eu começo, então, a desmontar todas as desculpas. “Não é caro, não é longe, não é difícil… Mas, se você quiser continuar com essa desculpa, pode continuar.”
Foi a partir disso que acabei transformando esse lugar do espectador crítico em uma matéria de avaliação, pedindo sempre que assistam a alguma peça, escrevam uma crítica e compartilhem com o grupo. Mesmo em grupos de estudantes de pedagogia, de pessoas que vão ser professores, vão ser coordenadores, eu escuto muita gente dizer que até então não tinha nenhuma relação com o teatro, nem mesmo na escola. E quando pergunto qual o lugar da arte na vida dessas pessoas, acabo vendo que ela está quase sempre ligada a alguma religião ou algum outro tipo de aparelhamento.
Rita: Eu sempre penso e digo que a gente precisava ter o direito a ser inútil, a não ajudar ninguém, não consertar nada. É importante valorizar esse lugar de apreciação do teatro, essa possibilidade de expressão. É como se a gente dissesse: “Fiz esse negócio aqui, vem apreciar”. Não precisa gostar, não precisa dar nota, é uma questão de abrir a escuta, a sensibilidade, e exercitá-la.
Cida: Como quando você vai a uma exposição de artes, vê um quadro, uma escultura e passa horas ali, apreciando.
Rita: Sem dúvida, a gente vive um momento de se abrir para uma série de questões sociais, políticas, econômicas, mas me parece muito importante salvaguardar o que existe de metafísico nessa coisa toda. Se não, daqui a pouco, a gente perde esse direito de sair do real um pouco, de criar, de ficcionalizar, de ser utópico.
Cida: Eu defendo que a arte não tem que servir pra nada, que ela precisa de uma categoria que é dela. A arte pode, mas não precisa ensinar geografia, não precisa servir para o Dia dos Pais, para o Dia da Bandeira. A arte é um campo de conhecimento e de expressão, e é preciso entender isso. É preciso entender também que, para uma aula de teatro, você precisa de uma sala sem cadeiras, de espaço, quem sabe um aparelho de som. É preciso entender que, quando você for escolher uma peça para levar as crianças, não precisa ser a peça da Pepa. E também aceitar que o pessoal do teatro vai atrapalhar tudo mesmo, vai fazer bagunça e veio para bagunçar.
Glaucia: Uma coisa que observo no núcleo de pesquisa do Galpão Cine Horto, que recebe muitas escolas, e eu geralmente acompanho, é uma associação muito estranha entre teatro e festa. Todas as oficinas, todo o discurso é esse da obrigatoriedade da coisa da festa, que muitas vezes se sobrepõe às outras camadas, às outras possibilidades do teatro. Então eu vejo que a gente precisa se empoderar, precisa conseguir justificar e defender nossa ação.
Eu preciso sempre lembrar porque é que eu estou ali, porque é que eu trabalho com arte, o que é que eu me proponho a fazer. Eu não posso ficar a mercê do que as escolas exigem ou esperam, e precisamos sempre de construir argumentos para derrubar os argumentos que vem de lá, quase sempre no sentido de impedir que as coisas aconteçam e tenham continuidade dentro da escola. E, se não tem sala, a gente pode ir pro pátio, pro jardim, pra pracinha, pro quarteirão.
Cida: Quando eu crio um espetáculo, eu sempre me coloco no lugar dos meus vizinhos, sempre me pergunto: “Por onde que eu pego esse cara? Como posso fazer com que ele se sinta pertencente a esse lugar do teatro?”. Porque eu sei que, se ele se sentir de fora, ele não vai entrar, não vai ser tocado. La na ZAP, a gente faz um trabalho muito forte com a educação de jovens e adultos, faz debates após os espetáculos, faz trabalhos com meninos que cumprem medidas sócio-educativas, meninos super educados, mas com histórico de crime pesado – e esse, geralmente, é o pessoal mais grato por estar ali.
Minha visão passa muito por essa ideia do teatro para gente comum, para o Zé de Esquina, a Dona Maria. Por isso a gente pega o Brecht, que te dá as chaves e te convida para entrar, que vai abrindo algumas portas que parecem fechadas. Ele propõe uma coisa que realmente é pedagógica. Aí o espectador vai enxergar e dizer: “Mas eu penso isso também…”, e, no fim da peça, o espectador quer dizer alguma coisa, quer dar um depoimento.
Eu fico pensando muito nisso mesmo, nessa relação com as escolas, na importância de encontrar educadores muito interessados, que também estão lutando contra a maré. A gente tem mais de 20 escolas que frequentam o espaço, e sempre abre as portas pra isso. Já que eu não estou fazendo um teatro que está estabelecido, porque ele nunca está, onde vou encontrar parcerias? Hoje vejo que essas parcerias podem acontecer com quem também está em formação, algo que nos leva muito imediatamente a esse trabalho com professores e escolas, em uma opção que está irremediavelmente ligada ao educar, ao processo educativo. Isso vai desde o espetáculo até as oficinas, assim como à escolha de quem é o nosso público preferencial nas escolas. Eu vou dirigir o espetáculo para essas pessoas, vou oferecer para elas e vou insistir.
É importante reconhecer que, talvez, se o teatro acabasse, nem todo muito sentiria falta, mas, sem dúvida alguma, isso ia fazer muita diferença. Talvez a gente não veja que a existência do teatro tenha tanto impacto, mas, se ele acabar, como fica esse lugar de resistência que o teatro, de certo modo, representa?
Ao mesmo tempo, é curioso perceber o teatro como uma coisa quase arcaica e também tão contemporânea. E tão démodé: a gente tem que se encontrar, tem que estar todo mundo junto, desligar o celular, ter que atravessar a cidade pra ver algo que, talvez, pode até me incomodar. Eu acho que o teatro está mesmo num outro tempo, noutro lugar, talvez no espaço da imaginação. Vejo também que essa dimensão política e performática do teatro estão muito próximas, uma vez que, ali, a política se dá pela presença, pela potência corporal.
III. Palco, direção e sala de aula
Cida: Depois de muito tempo concentrada na direção, nesses últimos anos estou retomando a atuação, tanto no “Domingo” quanto no trabalho que fiz com a Mônica Ribeiro (“A arte de varrer para debaixo do tapete”). Eu sempre falo que pode me chamar, pois eu adoro trabalhar com outros grupos, participar de projetos como convidada. Pra mim, acaba sendo sempre uma oportunidade diferente, porque lá na ZAP, além de todas as questões artísticas, sou eu quem passa o pano, quem faz produção, faz planilha, compra o pão… Inclusive eu não posso nem ir muito arrumada, pois na hora que vejo eu já estou suja, preciso tomar banho, trocar de roupa de novo, e essa é a realidade.
Eu comecei a dirigir no susto, com a saída do Carlão, quando a gente se olhou, e falou: “Não tem tu, vai tu mesmo”. Eu sempre fui a pessoa que estava ao lado do Carlão, ajudando, fazendo assistência, assumindo produção, então já tinha algumas responsabilidades para além da atuação. Nesse contexto, comecei a dirigir pela falta de uma pessoa com mais experiência do que eu.
Só que o lugar da direção é muito absorvente: você fica ali, e é difícil de sair. No início, inclusive, eu fazia também os textos, adaptava, escrevia. Aí, depois de um tempo, pensei: “Existe uma coisa que chama dramaturgo, que pode trabalhar com você”. No “Mãe Coragem”, que tem 10 anos, fui trabalhar com o (Antônio) Hildebrando, e foi muito bom estar com um dramaturgo do peso e a sabedoria dele, com alguém que tem um conhecimento muito grande sobre Brecht. Reeditamos a mesma parceria no “1961-2013”, e ali pude confirmar a importância e a influência dele sobre o meu trabalho e o trabalho da ZAP.
Eu costumo dizer, inclusive, que existe uma Cida antes e depois do Hildebrando, e ele também diz que meu trabalho inicialmente era ingênuo, mas, depois de ser apresentada ao teatro político, acabou a ingenuidade. Eu sempre gostei de uma coisa poética, sensível, delicada, então eu tento mesclar. Mas depois que caiu a ficha, depois que enveredei pelo caminho que estou, acaba sendo difícil fazer a curva outra vez.
Aliás, essa coisa de dirigir e escrever ao mesmo tempo, eu custei a voltar. O “Domingo”, pra mim, é um trabalho de grande radicalidade, não tem cenário, não tem figurino, é na minha própria casa, é a minha própria historia, mas dialoga muito com trajetória da ZAP, se você pensa no sentido dos depoimentos, por exemplo. Nesse momento em que o Gustavo (Falabella) está assumindo algumas oficinas de capacitação, assumindo também a direção de alguns processos, eu acabo ficando mais livre para transitar mais, para criar outros trabalhos.
Glaucia: Eu sempre trabalhei principalmente como atriz, mas estou há muitos anos trabalhando com estudantes, desde 1993, e acredito que a organização de pequenas mostras, que geralmente acontecem a cada semestre, acaba se aproximando do trabalho de direção. No geral, somos nós que propomos alguma ideia, e, a partir dessa ideia, os estudantes muitas vezes chegam a alguns lugares bem interessantes. Ao longo desses processos, há um trabalho constante com imagens, textos, com a adaptação de textos que vem da literatura, nós sempre fazemos muito isso. Então, de algum modo, às vezes penso que eu não tenho muitas questões de direção para botar pra fora, pois tenho pelo menos duas turmas por semestre, há mais de 20 anos. Talvez eu precisasse sair da sala de aula para respirar um pouco mais esse lugar da direção, me dedicar mais a isso. Mas esse não é um desejo, pra mim, agora, porque eu gosto muito da troca nas salas de aula, nas oficinas, que eu realmente entendo como um lugar potente para que eu possa sempre repensar o que estou fazendo.
Rita: Eu tive a sorte e o azar de terminar o curso do Cefar e começar, logo em seguida, a dar aulas lá. Sorte, porque eu precisava do dinheiro, e azar, porque, quando se é muito jovem, essa condição acaba forçando um pouco a barra. Você sente necessidade de dar muitas respostas quando você ainda não tem respostas, e isso, talvez, tenha sido um problema pra mim, porque eu não sabia lidar tão bem. Muitas vezes, a gente acaba se atropelando, dando o que você não tem, mesmo que na maior sinceridade, mas de certo modo ultrapassando um pouco os próprios limites. Você acaba construindo algo que faz sentido pra você e para os estudantes, mas muito mais a partir da experiência do que propriamente de um estudo, de uma sistematização. Eu comecei a dar aulas com 23 anos, e hoje vejo que isso, talvez, durante um certo período, tenha dado uma bloqueada no meu trabalho de atuação.
Glaucia: Essa é uma experiência comum entre nós, que mesmo dentro da sala de aula, nunca deixamos de atuar, de criar, de estar envolvidas em processos de criação. Minha opção foi mesmo não ir para a academia, pois achei que isso ia me levar para uma situação de pesamento excessivo, de muito volume de trabalho, por todos esses processos que são necessários quando você entra com tudo na academia. Por outro lado, dentro dessa estrutura de cursos livres, acho que acabou sendo mais fácil de equilibrar as duas atividades.
Cida: Eu também sempre tive uma relação um pouco mal resolvida com a academia: tive namoro, noivado, mas acabou não se transformando em casamento. Em algum momento, eu quis muito estar em nesse lugar, achei que isso me daria uma estabilidade, pois hoje tenho 56 anos e não sei como será o ano que vem. Mas o fato é que esse casamento não se efetivou, talvez porque o tempo que eu tinha pra dedicar à academia nunca foi suficiente. Fiz o mestrado e certamente faria o doutorado, mas muito mais pelo prazer de pesquisar do que para me tornar uma professora universitária. Costumo, inclusive, brincar que eu só volto para a academia como objeto de estudo, e, felizmente, isso tem mesmo acontecido, com a ZAP se tornando objeto de muitas pesquisas. Acho que é mesmo difícil começar a lecionar muito novo, mas isso gera um processo de elaboração incrível, que dificilmente você teria fora dali.
Rita: No meu caso, acho que foi melhor para os alunos do que para mim, porque eu sofri um pouco com toda essa responsabilidade, naquele momento.
Gláucia: Mas eu sofro com tudo, até hoje. A cada turma que começa, a cada semestre, eu penso: será que assim mesmo?
Rita: Sim, porque uma coisa é você dar aula a partir das suas experiências, e de vez em quando usar o pensamento de algum autor ou autora que já existe. Mas, com 23 anos, você até tem um universo, mas que não está sistematizado, e ao mesmo não tem tanta experiência.
Hoje eu já tenho, claro, uma tranquilidade maior, até porque ao longo do tempo vão caindo alguns mitos em relação a esse lugar do professor. Mas, no início, pelo contrário, eu mesma acaba me colocando num lugar que, hoje eu vejo, não era necessário. Por outro lado, depois de tanto tempo dando aulas, o que passou a me incomodar foi a repetição, a sensação de falar as mesmas coisas sempre, de trabalhar em uma espécie de modo automático.
Cida: A gente é muito movido por estar gostando, por estar apaixonado pelo que está fazendo. Então, quando a gente vê que está se repetindo muito, a gente se sente empobrecido. Eu me lembro de um momento, no Arena da Cultura, em que senti isso e disse que não queria iniciar mais ninguém. Ali eu senti a necessidade de trabalhar com gente mais iniciada, até para poder acionar os procedimentos, outros processos.
Isso, de algum modo, refletiu na oficina de direção que ofereci este ano, pela primeira vez. Nós trabalhamos quase tudo na prática, mas passamos também pela teoria, por princípios e procedimentos de atuação, pela origem desses princípios e pela importância de entender que cada texto, que cada trabalho requer uma metodologia diferente, e que assim se evita algumas brigas entre o texto, a direção, a iluminação etc.
Além disso, essa oficina foi uma excelente oportunidade de estudar, me organizar, perceber o meu trabalho, as fases dentro dele, me voltar também aos trabalhos com as outras companhias. Dentro do curso, inventei uma brincadeira com três abordagens que passavam pelas principais influências que eu tive: “O teatro épico salva”, em referência a Brecht, “Um pouco de Stanislavski não faz mal a ninguém”, a partir do teatro realista, e “Isso não é teatro”, mais relacionado ao teatro performativo, a movimentos mais contemporâneos dentro do teatro.
Essa oficina de direção me tirou um pouco daquele lugar que eu estava habituada, do trabalho com atores que querem se formar. Ali, eu queria trabalhar com gente que está querendo outras coisas também, e foi muito mobilizador ver que tínhamos essas outras coisa para compartilhar, ultrapassando o trabalho específico do ator.
Com isso, muitas vezes a gente não está formando somente um ator, mas, sim, um ator dentro da perspectiva do teatro político. Talvez ele não saia dali sabendo fazer um trabalho realista, mas a gente entendeu que era mais legítimo dividir com os estudantes a nossa forma de fazer teatro, que é uma dentre várias. Ao mesmo tempo, a gente vê que o trabalho tem traços performáticos, com os depoimentos, por exemplo, e aí eu convoco alguns especialistas pra falar disso: Antônio Hildebrando, Papoula Bicalho, Denise Pedron – e, aí, cada um vê o que lhe toca mais. Para mim, ter entrado na direção e poder compartilhar isso é muito rico, porque a gente, na verdade, dá o curso para a gente aproveitar também, é, também pra nós, uma grande oportunidade.
Glaucia: Sim, porque, quando você vai dar aula, você vai sistematizando experiências que você viveu, e repensar isso é sempre muito bom. Ao mesmo tempo, é também muito difícil sair de certos procedimentos que funcionam, e optar por outros, que não são tão garantidos, mas essa é uma questão que também se coloca na criação.
Rita: Talvez por isso, o iniciante, pelo menos durante um certo período, seja um estudante muito interessante, porque ele tem essa abertura maior para a experimentação e não tem tanta expectativa em relação aos resultados dos processos.
Cida: Durante o período em que trabalhei no Arena da Cultura, chegou um momento em que tive uma certa crise com iniciação, não aguentava mais começar o semestre com jogos, tudo de novo. O que me ajudou muito, nesse sentido, foi desenvolver e assumir um procedimento que relaciona teatro e realidade, talvez por ser um método, mas não ser tão fechado. Com ele nós partimos sempre da ideia de empoderar os sujeitos, e por isso mesmo não conseguimos organizar o curso antes de ver quem são as pessoas que vão participar dele. É muito importante, se você toma esse caminho, dialogar com as pessoas, provocar falas, colocá-las no lugar de fala e ajuda a elaborar o que ela pode dizer.
Por outro lado, em uma oficina de direção, você trabalha com gente muito interessada, gente que interesses diferentes entre si, diferentes tipos de conhecimento. É um tipo de encontro em que você organiza, elabora, dá uns starts, mas que um caminhar próprio também, pois as pessoas geralmente estão muito comprometidas. Então, em certo sentido, é bem diferente daquela prática da professora que precisa iniciar todos os processos.
Rita: O que me parece, às vezes, é que o iniciante acaba nos alimentando muito, mas num lugar mais pueril, que tem muito a ver com a alegria de estar junto, de estar ali. Mas quando você dialoga com pessoas mais experientes, mais interessadas, isso invariavelmente te desperta novas questões, abre espaço para outros tipos de diálogo.
IV. Descolonizando a atuação
Cida: O que mais me incomoda, talvez, seja o ator que chega com aquele cinto de utilidades, de onde ele pode sacar uma técnica ou um conhecimento, mas não necessariamente aquilo que eu considero mais importante, que seria o sentidos das coisas. É importante se preparar, se cuidar, mas não é só isso. Então me parece importante desconstruir essa ideia de o ator vai adquirindo técnicas e está tudo resolvido, até porque eu acredito muito que pessoas com experiências muito diferentes podem estar juntas em cena, e isso é muito potente. É claro que existe uma preparação, que isso pode passar por algumas técnicas, mas não pode ficar só ali. Nas escolas, por exemplo você vê atores querendo passar por vários tipos de técnica, importando práticas estrangeiras que chegam aqui por tabela, batendo em tudo quanto é trave, como se houvesse um treinamento universal que servisse para qualquer tipo de espetáculo. Mas o mais importante, pra mim, é que todo mundo precisa se comprometer.
Rita: Eu vejo que, hoje em dia, é tudo muito baseado no ator norte-americano, mas não é lá que a gente vai trabalhar. Vejo, por exemplo, a ideia de contenção, que às vezes é confundida com uma interpretação insípida e inexpressiva. São, muitas vezes, dados extraídos daqui, dali, falados da maneira mais superficial, como se esses dados fossem levar a entender o que é atuar. Qualquer ator que faz Actor’s Studio recebe uma série de metodologias, mas é ele quem precisa construir um jeito daquilo funcionar. Ele pode receber aquilo mas não usar, não transformar em nada. O mais importante é lembrar que se trata de humanidade, de seres humanos, sempre cheios de referências, mas que não devem se achar mais ou menos importantes do que os demais.
Em algum momento, a gente construiu essa ideia de que o ator é muito importante, é mais importante do que tudo, e isso gera um certo preciosismo esquisito, que faz com que o ator não se exponha de jeito nenhum. Isso, muitas vezes, gera nos atores um certo medo, um negócio esquisito, como se você precisasse estar sempre pronto, como se sempre tivesse que apresentar algo, um tipo arrasador. Depois de um tempo, no entanto, você entende que cada espetáculo vai te pedir um qualidade diferente, pode te pedir postura estranha, uma atitude que você ainda não conhece.
Cida: Eu penso que o mais importante é buscar uma certa coerência entre o que você quer dizer e como dizer isso. Mesmo com quarenta anos de trabalho, às vezes chega um texto novo, e eu fico pensando o que fazer com ele. Às vezes parece que eu não sei nada, e isso, claro, acaba gerando uma certa angústia.
Também acredito que uma coisa a se desconstruir é essa ideia de que o ator que está acima de alguma coisa, essa ideia de que o ator, no palco, é um rei. Até porque o o teatro é justamente o lugar onde bater um prego e discutir questões filosóficas tem exatamente o mesmo peso, então não adianta o ator se achar, se ele vai pra cena e não tem humanidade com o colega, por exemplo. Eu diria, inclusive, que me interesso mais pela pessoa, pelo entorno do trabalho dela, pelas questões ligadas ao seu fazer, do que propriamente pelo que ele apresenta em cena. Muitas vezes, alguém pode ser um ator maravilhoso, talentoso, mas se, pessoalmente, eu não me identifico com o que ele pensa, com suas posições, eu já dou um desconto de 50%. Considerando sempre, é claro, que estamos trabalhando com pessoas em construção, cheias de contradições, e isso me interessa muito.
Rita: Fazendo novela, por exemplo, eu comecei a pensar que a gente valoriza muito o ator, fazendo parece que você precisa ser sempre o craque de bola, precisa fazer muitos gols. Parece que existe uma estética que a gente compra, do que é bom, mas ela é absolutamente relativa. Não existe esse bom ator, não existe esse gênio, e isso é uma coisa a ser desconstruída imediatamente, sobretudo para que a gente possa ser criativo.
Cida: Uma vez, eu ouvi que o talento é a capacidade de experimentar, e isso faz muito sentido pra mim.
Glaucia: Pensando nessa questão da desconstrução, eu acho que a gente ainda tem que desconstruir o ego, porque, sem isso, não tem como trabalhar. É importante entender que o buraco é mais embaixo, que é preciso ser atravessado por aquilo que se está fazendo, é preciso se abrir, sentir, saber o que se quer dizer, pra quem se quer dizer. Entender que o teatro não é para mim, mas para o outro. Entender que eu não necessariamente vou estar onde eu quero, do jeito que eu quero. É preciso olhar para as coisas, entender onde você esta, com que pessoas você está, olhar para essas pessoas, olhar a para a rua, entender o entorno. Olhar e ver de verdade, o que é um exercício dificílimo.
Rita: Quando a gente fala de veracidade, por exemplo, a gente esta falando de quê? Da esquina, que está gritando, de mim, aqui, sozinha, nessa entrevista, o que pode ser a realidade?
Cida: Por isso, de uns tempos pra cá, eu tenho falado muito sobre teatro e realidades, e isso, pra mim, faz muito mais sentido. O que nós temos são realidades, cada encontro é uma realidade e cada ponto de vista é uma realidade. A gente não pode, então, excluir pontos de vista. Eu não tenho que excluir o teatro comercial, mas entender e dizer que estou militando do lado de cá, que eu tenho essas necessidades, e, talvez, não outras. O que está em disputa, muitas vezes, é o espaço político, de poder, de dinheiro e também de relevância.
Rita: Pensando nessa questão geracional, eu sinceramente acho as novas gerações muito melhores do que a minha, mas, por outro lado, acho mais preconceituosas também. Acho muito importante afirmar que nada que tem que ser correto, nada tem que ser contemporâneo, até porque tudo é, tudo está aqui e agora. Isso, talvez, me incomode um pouco nos jovens, que às vezes vêm como um desejo estético muito específico, supostamente muito contemporâneo, mas eu sei que a vida trata de desconstruir isso.
Quando eu penso nas coisas que assisto hoje em dia, existem, por exemplo, algumas repetições de padrões que nós também não fomos capazes de quebrar. E, de alguma maneira, quando me aproximo de gente mais jovem, eu sempre penso que ali eu posso aprender alguma coisa, que ali tem uma via mais aberta. Ao mesmo tempo, a nossa geração, de um modo geral, já está tão engajada em outras coisas, que a gente acaba se encontrando muito pouco. É claro que eu tenho desejo de trabalhar com meus pares, mas acaba sendo mais difícil estabelecer parcerias com gente da minha geração. De algum modo, realizar um projeto, desenvolver uma ideia, estabelecer uma troca com alguém de 30 anos acaba me parecendo mais fácil do que alguém da minha geração.
Cida: Talvez por a ZAP ser um lugar de trânsito, eu também sempre acabo trabalhando com pessoas bem mais novas, e as trocas também acabam sendo mais com elas, mesmo. Ao mesmo tempo, tenho um respeito e uma admiração muito grande, e mútua, pelas pessoas da minha geração. Vejo a Glaucia, vejo a Rita, por exemplo, e parece existir uma conexão astral com essas mulheres empoderadas que estão se colocando, rejeitando qualquer tipo de rótulo e de padrão em relação ao próprio trabalho, muito conscientes de que nós podemos fazer tudo o que quisermos.
Uma das minhas grandes inspirações, a esse respeito, é o João das Neves, que eu considero um dos maiores diretores do país, sobre pela abrangência do seu trabalho, que já passou por negros, índios, operários etc. Por outro lado, a gente vê muitas pessoas que acabam envelhecendo muitos nos seus lugares, pessoas que podiam estar contribuindo mais, mas que optaram por ficar no seu feudo, na sua construção. No meu caso, por outro lado, como a minha ideia de teatro é muito desconstruída, eu nunca sei como vou fazer o próximo trabalho. E eu acho que, essa liberdade que a gente tem, ninguém pode tirar da gente.
Glaucia: Para mim, essa aproximação com artistas mais jovens não veio somente com o Espanca!, mas com meus alunos, também. Eu sempre pensei que não queria envelhecer no que eu faço, na minha proposta, nas minhas questões, na minha arte. Essa aproximação com a moçada me possibilitou outras leituras do teatro e da realidade, e é lógico que isso vem de uma inquietação pessoal, de um desejo de pensar a vida, de pensar politicamente.
Quando eu saí de São Paulo, o pessoal falou que nada acontecia em Belo Horizonte. Mas eu vim mesmo assim, por uma questão pessoal, mas, ao mesmo tempo, acreditando que ia fazer acontecer aqui também. Essa visão sempre me mobilizou muito. Me mobilizou quando fui para Ouro Preto, quando vim para Belo Horizonte, em todo o meu caminho. Eu me lembro, por exemplo, de quando começamos o processo do “A noite devora seus filhos”, no qual eu fui dirigida pela Mariana Maioline, que foi minha aluna no ensino médio, e a gente se emocionou muito nessa relação. Eu acho que isso é vida, isso é estar vivo, afinal, quem sabe o quê?
V. Grupo ou não grupo, eis a questão
Cida: No que se refere a essa questão dos grupos e à importância que eles têm hoje, acho sempre bom lembrar que houve um tempo em que ninguém aceitava quem estava nos grupos, em que nós eramos vistos como porra-loucas que faziam um teatro que não interessava a ninguém. Foi nesse contexto que, durante a década de 1990, o Movimento do Teatro de Grupo surgiu aqui em Belo Horizonte. Hoje em dia é muito legal, a cidade tem mais de 50 companhias e, quando a pessoa não tem grupo, muitas vezes, é porque quer trabalhar com todos os grupos. Na minha visão, esse movimento ajudou muito a fortalecer uma ideia de continuidade que praticamente não existia, e as companhias que têm, hoje, cinco ou dez anos, mesmo não tendo participado desse momento, devem entender que são frutos dele.
Lá na década de 1990, os grupos, muito claramente, não tinham o poder que têm hoje. Naquele momento, existia um teatro comercial que tomava conta dos teatros públicos da cidade, e foi nesse contexto que os grupos começaram a se organizar. O Grupo Galpão, inclusive, foi criado um pouco depois da Sonho & Drama, pegando uma espécie de primeira leva do teatro de rua, que os levou à Europa, de onde eles voltaram com a clareza de que precisavam ter um espaço. Então, com o dinheiro que eles conseguiram acumular por lá, eles realizam esse plano, que, no caso da ZAP, por exemplo, só foi alcançado em 2002. Antes disso, no entanto, nós ocupamos vários espaços, desde centros culturais até estações de trem, e isso foi muito importante para a nossa trajetória.
Glaucia: Lá em São Paulo, por outro lado, quando eu saí da escola, bem no início da década de 1980, eu já consegui me filar à Cooperativa Paulista de Teatro. Eles ainda não tinham, claro, a Lei de Fomento, que veio depois, mas já se pensava, àquela altura, em uma forma de estimular a profissionalização dos artistas de teatro para além da ideia de um sindicato.
Cida: Já há muito tempo São Paulo tem essa fama de ser o berço do teatro moderno brasileiro, e ali começaram, de fato, uma série de discussões sobre horizontalidade, sobre a ocupação de espaços públicos. Isso surgiu, em certo sentido, como resistência mais política do que artística, mas acabou mobilizando muito o pessoal da cultura. Sobre Minas, por outro lado, a sensação que eu tenho é que a produção ainda não encontrou respaldo no mercado, mas apenas nos editais. Essa produção encontra muito pouco eco no poder público, e parece que a percepção dessa necessidade de articulação é muito lenta por aqui, onde estamos sempre uns 5 ou 6 anos atrás do fluxo que vem de lá, sobretudo por uma ignorância do poder público sobre o que é o trabalho do artista.
A opção feita pelo Movimento do Teatro de Grupo, então, passava por uma troca artística e, num segundo momento, por uma atuação política, também. A gente sempre defendeu muito a via da produção, penso muito em estratégias para empoderar essa produção coletiva, nos aproximando, de certo modo, da ideia de uma cooperativa.
Glaucia: O que eu senti quando cheguei aqui é que boa parte das mudanças se deram mesmo pelo fortalecimento dos grupos, e não por um pensamento de política cultural.
Cida: No caso da ZAP, por exemplo, os 10 primeiros anos foram bem fortes, mas, depois, nós acabamos ficando um pouco isolados na periferia. Somente agora, há pouco tempo, nós estamos percebendo que precisamos circular mais pelo centro, ocupar espaços como o Teatro Francisco Nunes, o CCBB, pois isso abre tanto possibilidades de troca quanto de sobrevivência para o grupo.
Por outro lado, se, na ZAP, a gente está no comando, quando você vai para outro espaços, parece que o artista vem no decimo lugar na lista de prioridades do teatro. Enquanto na ZAP eu faço o possível pra viabilizar o trabalho de quem se apresenta por lá, o que se tem, fora dali, muitas vezes é uma sucessão de limitações e burocracias, mas precisamos aprender a lidar com isso, a negociar com as instituições, também.
Glaucia: Talvez, um dos grandes problemas aqui da cidade é que as pessoas acabam disputando os mesmos lugares, e o ideal seria que todos batalhássemos juntos, para que todos tivessem espaço.
Rita: Por outro lado, eu acho importante questionar se não existe um pouco de supervalorização em relação ao trabalho de grupo, como se ele fosse o único que tem continuidade, o único que se institucionaliza e que, sendo assim, o único que merece respeito e apoio. Porque, às vezes, você está trabalhando a vida inteira, dizendo coisas muito coerentes sobre o que faz e o que pensa, está inclusive trabalhando e alimentando esses grupos, circulando pela cena toda, mas acaba ficando um pouco marginalizado.
O que se criou, no fim das contas, foi um quadro um pouco excludente, um pouco corporativista, no qual duas pessoas, às vezes, se juntam, e já se afirmam como um grupo. Aí eu me pergunto: o que é um grupo? É uma empresa? Porque, empresa, eu tenho. O que é um grupo? Eu acho que é injusta, muitas vezes, a forma com que se lida com outras trajetórias não vinculadas a grupos, assim como, por exemplo, um certo estigma que existe em torno do professor: se você dá aula, você não é atriz, não é nem artista, e esse, na minha visão, é um pensamento muito provinciano. O que eu acho, de verdade, é que gente precisava fazer uma cooperativa, porque, se não, vamos continuar lutando uns com os outros.
Cida: De fato, hoje em dia, toda vez que eu me refiro aos grupos, sempre procuro colocar grupos e artistas que desenvolvem trabalhos de pesquisa. Até porque esse discurso de empoderar os grupos vem de uma época em que os grupos não tinham importância nenhuma, então era importante valorizá-los, e de fato aconteceu uma espécie de mudança de paradigma na cidade. Hoje em dia, eu já penso que é importante incluir também o público no pensamento, assim como incorporar outros parceiros que não são necessariamente ligados a arte, como os movimentos sociais, por exemplo.
Infelizmente, a gente vive em uma sociedade que tende ao binarismo: homem ou mulher, direita ou esquerda, é grupo ou não é grupo, é bom ou é ruim, é atriz ou diretora, é atriz ou professora, e por aí vai. É realmente preciso aceitar outros campos e outros modos de existência, assim como os deslizamentos entre eles. É muito importante romper com essa ideia de uma sociedade em que, pra você existir, você tem que satanizar o outro.
Pensando nessas trajetórias individuais, eu acredito que o artista que tem essa força vai começar a aparecer um pouco mais tarde, e talvez por isso nós precisemos discutir isso com mais intensidade agora. Discutir, por exemplo, o artista pesquisador, que constrói sua trajetória sem necessariamente se vincular a grupos e coletivos.
Rita: Até porque as pessoas que fazem parte de grupos, antes disso, são artistas, e também estão transitando por outros lugares.
Glaucia: Além disso, eu vejo também, hoje em dia, um pensamento que se torna cada vez mais coletivo, se abrindo para a cidade, para outros colaboradores, e não mais apenas mais dentro daquele quarteto, quinteto ou sexteto.
Cida: Na ZAP, por exemplo, a gente não se chama de grupo nem de companhia: a gente é uma zona, um espaço que está muito ligado a encontros e transições. Essa ideia de grupo, dentro da qual o Galpão é certamente o nosso exemplo mais longevo, talvez esteja começando a mudar. Assim como os casamentos estão cada vez mais curtos, e nem por isso piores. Muitas vezes alguém me pergunta: “Essa menina não vai casar?”. Eu digo que sim, mas que vai ter vários casamentos, e não somente um, pela vida inteira. Penso que todos os modelos de trabalho e de união podem ser bons, não é preciso escolher entre isso ou aquilo.
Rita: Talvez seja importante somente avisar que a hora de terminar vai ser péssima, e disso é difícil de se escapar. Eu acho que, dentro desse contexto da formação de grupos, ainda prevalece uma coisa meio moralista, na qual o artista que fala por si mesmo acaba sendo entendido como alguém que quer ser uma estrela, ser mais importante, como se passasse sempre por uma certa arrogância. E eu penso que é o contrário: a gente vira diretora porque alguém tem que fazer, vira produtor, monta uma empresa, e daí a pouco, aqui na província, fica parecendo que você está se achando. Mas é você que paga suas contas, que peleja com seu negócio, que diz não para o outro que te chamou, que precisa fazer televisão entre um projeto e outro, e por aí vai.
O Galpão, por exemplo, sempre coloca o nome do grupo em primeiro plano, e o resto é resto, como se todos, ali dentro, fossem iguais. O que acontece, no entanto, é nós não somos todos iguais. Existe, claro, algo que se constitui no início, na origem, em que se apagam os artistas para constituir um coletivo, mas cada um ali é um artista, e eu não vejo problema em ter o nome da pessoa no crédito da coisa boa que ela fez. É nesse sentido que vejo algo um pouco moralista, um pouco redutor. Porque muitas vezes o coletivo acaba sendo perverso e injusto, pois apaga coisas boas que aparecem aqui e ali, põe uma pá de cal em algo de bom que você tem.
Acho que o importante é tentar ser pleno no que você faz, no que quer fazer, no que está pelejando pra fazer. Acho que isso é altamente positivo pro mundo, e pro coletivo também. Eu falo isso porque sofro de certo preconceito, sou muitas vezes taxada como pessoa esquisita, individualista, egoísta, difícil de lidar, arrogante, enfim. Aí, quando você aparece na televisão, a coisa ainda piora: “É isso que ela queria, eu sabia!”.
É claro que não tem problema algum que alguém pense e fale isso, mas quando você vê que isso resvala na política pública, nos editais, aí você acaba avaliando que a televisão pode ser um caminho, porque lá todo mundo é peão, todo mundo tem salário, todo mundo é valorizado. No teatro, às vezes, por outro lado, a gente acaba sendo associado a um certo status intelectual, supostamente superior ao das pessoas que estão na televisão, mas está todo mundo pelejando da mesma forma.
VI. A crítica da crítica
Cida: No início dos anos 1990, a gente tinha feito “Antígona”, na Sonho e Drama. O que se tinha como cena, na cidade, era um teatro mais realista, mais naturalista, só que os grupos estavam em outro tipo de pesquisa. A questão é que se tinha uma crítica que só valorizava a teatro realista, então a gente só levava cacetada. Por essas e outras, é importante que você tenha uma crítica que consiga acompanhar o que está acontecendo na cena. Porque se a crítica está presa a uma linguagem, a um tipo de teatro, a coisa não caminha. Até onde entendo, toda a formação dessa primeira geração de críticos da cidade vem da escola do Pedro Paulo Cava. É dali, por exemplo, que nasce o Marcelo Castilho Avellar, e eles estavam sempre muito mais interessados nessa linha de teatro realista. Eu sinceramente não sei como é que a gente sobreviveu. A gente fazia algum sucesso fora, mas aqui, em Belo Horizonte, era muito difícil. Naquela época havia a gente e também a Ione de Medeiros, que sempre trouxe uma estética mais moderna, mais ousada.
É relativamente recente essa ideia de que o crítico é mais um olhar sobre a cena, que ele pode acompanhar os ensaios, pode conviver com os artistas. Por algum tempo, vigorava uma noção de que o crítico iria falar bem, porque era amigo, ou mal, porque era inimigo. E quando a crítico era péssimo, muitas vezes isso acontecia com muita leviandade. Como artista, a gente já é tão crítico em relação ao que está fazendo, a gente se prepara tanto para isso, então é importante que o outro também se prepare, mas isso não é se armar.
Eu vejo com muito bons olhos essa crítica criativa, interessada, que enxerga o espetáculo como a ponta de um iceberg, entende que tem muita coisa por trás da cena. Talvez uma pessoa veja um espetáculo da ZAP, por exemplo, e diga que a interpretação é irregular, mas eu penso que os critérios, às vezes, precisam vir de outro lugar. Digo isso porque, se você estiver procurando uma interpretação no padrão Stanislavski, você vai precisar buscar em outro lugar. Alguns de nossos trabalhos têm suas imperfeições, claro, mas isso é da natureza dele. E eu acho muito importante essa crítica que dialoga com a imperfeição da artes, que vai menos para a obra fechada e mais para o contexto, para a experiência, essa crítica que se interessa também pelo público e pela recepção.
É muito importante que a crítica esteja sintonizada com esse momento rico que estamos vivendo, que saia da noção de uma obra fechada em direção a uma experiência de compartilhamento. É importante pensar os espetáculos também como processos pedagógicos, formativos, considerar que os espetáculos também formam espectadores. Então, o que é você vai ver aqui? Eu penso que não é ficar atentando à luz, àquilo que funciona ou não funciona. Daí a critica pode ser tornar outra, e eu penso que essa crise que o jornalismo vem atravessando tem sido muito interessante para a crítica, porque ela se renova com isso.
Glaucia: Existe, de fato, um olhar contemporâneo que vem dessa critica jovem, um olhar de quem vem acompanhando essas mudanças, essas transformações dentro da cena. Ainda tem, claro, muita gente que escreve crítica à moda antiga, somente para detonar alguém, exaltar alguém ou então indicar um espetáculo.
Cida: Eu vejo muito valor nessa crítica ensaística que vocês fazem. Uma crítica que dialoga com a cena, traz estudos, inclui os conhecimentos mais recentes, mas sem querer ficar muito distante dos artistas e do público. É uma crítica que encontra seu sentido em chegar nas pessoas, e ela tem um papel formativo muito grande.
A crítica, aliás, tem esse papel, mas em algum momento acabou perdendo isso, e foi virando essa coisa de mercado: gaste seu dinheiro aqui, mas aqui, não. Talvez isso funcione para os grandes espetáculos, para o main stream, em que alguém gasta 100 reais para ver um musical. Mas no nosso caso, para começar, é 10 ou 20 reais, ou então 10 e 5 reais, de modo que o espectador não vai perder dinheiro, ele pode até errar – não é esse o papel que a crítica vai fazer.
O papel é outro: formar um olhar, formar uma sensibilidade, propor uma leitura específica a partir de certos elementos, e também formar o espectador, claro. Para os artistas, também é muito importante, pois, se alguém fala alguma coisa, a gente acaba conversando depois, aquilo se desdobra. Então é muito importante quando alguém coloca questões, apresenta leituras possíveis, aponta caminhos para o próprio artista, muitas vezes coisas que a gente mesmo não está vendo. Estamos todos, artistas e críticos, nos preparando para a resistência; aliás, já estamos na resistência, e eu penso que ela vai se dar pelo pensamento, pelo afeto, pelo convívio.
Rita: É muito interessante falar sobre a crítica, ir contra esse movimento de dar notas para os espetáculos, pois não é sobre isso. É importante que o crítico entre no espetáculo aceitando que é isso que eu tenho pra dar. Eu quero muito conversar, preciso muito, acho muito necessário, mas a nota do crítico, sem dúvida alguma, já não é mais a questão. Eu vejo que a coisa está caminhando pra isso, mas é gracas a essa moçada, essa geração que veio depois e que está se fortalecendo agora.
Cida: Eu penso que estamos todos juntos na ideia de que o teatro pode ser uma coisa importante e constituinte da sociedade. São, afinal, muitas pessoas implicadas na sala de ensaio, no processo, no diálogo que envolve qualquer processo criativo.
Rita: Eu vejo que essa geração é compostas por pessoas mais inteligentes, mais interessadas, mais preparadas e, o mais importante, que gostam mais de teatro do que boa parte da geração que veio antes.
Glaucia: Quando eu estava na escola, o grande nome era o Sábato Magaldi, e era muito interessante a postura dele, que assistia e escrevia inclusive sobre os trabalhos que fazíamos na escola, sempre a partir de um olhar muito generoso.
Rita: Talvez, naquela época, em que haviam poucas escolas, poucas referências, fosse, de fato, importante existir uma crítica com a Bárbara Heliodora, para dar um balançada no teatro do Rio de Janeiro. Talvez certa arrogância até fizesse sentido naquele momento, mas, algum tempo depois, já não faz mais sentido. Hoje em dia tem muita pesquisa, muito pensamento, então eu não sei pra que serve um crítico que se limita a avaliar, a dar nota para os espetáculos.
Hoje em dia, por exemplo, parece que está na moda dizer que alguém é gênio ou gênia. Eu olho pra isso e penso: cuidado, se prepare, porque o gênio de hoje pode ser o péssimo de amanhã. Então acredito que é mesmo importante levar a discussão para outros lugares, não pra esse.
Cida: Por trás disso tudo, claro, tem esse papel dos meios de comunicação, quem está empoderando quem, onde isso acontece, como acontece, e é tudo muito falacioso. Isso de ter que escolher o melhor, isso é muito limitador.
Rita: Eu penso que esse tipo de fala, às vezes, é mais um jeito de destacar quem está falando do que aquele que foi eleito. É um jeito de quem dá o nome, quem concede o título, se fazer presente de alguma maneira. Ao mesmo tempo, existe todo um sistema que constrói esses mitos: a crítica, a curadoria, as premiações, o melhor ator, a melhor atriz e por aí vai.
Cida: Quando eu vou participo de júris ou bancas, o meu critério acaba sendo outro: em vez de chover no molhado, eu sempre tendi a defender quem teve mais dificuldade de acesso àquilo ali. Quando nem existia política de cota instaurada nas universidades, eu já colocava essas questões, valorizava mais quem tinha lutado mais pra estar ali. O povo olhava pra mim com uma cara estranha, mas, para mim, era muito claro. E quando as cotas surgiram, tive uma espécie de confirmação de que aquilo fazia mesmo sentido.
VII. Ética da persistência
Cida: O teatro que a gente escolheu fazer é esse lugar de muita liberdade, que não te deixa encostado na cadeira. Mas, ao mesmo tempo, é um lugar muito lascado em todos os sentidos, porque não tem grana, não tem estabilidade, então muita gente olha pra nós e não entende. Eu sempre acho que um artista sente que tem que fazer aquilo, se não vai morrer. E acaba sendo mesmo algo fundamental, porque é difícil achar a mesma graça em outras coisas.
Lá na ZAP, eu falo: “Gente, isso aqui, essa casa, isso é a nossa liberdade, e a gente paga caro pra fazer isso”. O custo, de fato, é alto, mas o ganho desse empoderamento do indivíduo tem uma potência muito grande, ainda mais num contexto social em que o empoderamento acaba se dando quase sempre pelo consumo, pelo ter, pela performance do sucesso, do empreendimento, do bem sucedido.
Glaucia: Ao mesmo tempo em que eu sinto esse ímpeto, eu também encontro no teatro uma paz muito grande, pois ali estou fazendo o que eu sei fazer, o que eu tenho que fazer, o que eu quero fazer. Eu nunca tive dúvida, mesmo em situações em que ficava sem dinheiro, mais cedo ou mais tarde aparecia alguma coisa, e sempre foi assim. Nunca tive a preocupação de procurar algo que me desse mais rendimento – mesmo a televisão, lá em São Paulo, que sempre me rondava de algum modo. Muita gente dizia “O que é que você vai fazer em Belo Horizonte?”, porque ninguém tinha ideia do que estava acontecendo aqui, como até hoje não sabem muito. Já naquela época vigorava essa lógica de que tudo acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas eu acho, sinceramente, que é aqui que as coisas estão fervendo. Eu nunca fui pro Rio nem pra São Paulo fazer teste, nunca quis ser celebridade, não é esse o meu lugar, o meu negocio é chão de fábrica mesmo.
Cida: A gente escolheu ser operariado, e isso é uma opção política, mesmo. Eu quero dizer isso, quero estar nesse lugar onde outras pessoas não estão.
Gláucia: Eu pensava muito nisso quando estava vindo. Em São Paulo, eu seria mais uma, corria o risco de nem ser nada, e não era isso que eu queria, não é isso que eu quero. Isso, pra mim, sempre foi uma opção. Tanto que fui fazer cinema somente no ano passado, e o que encontrei foi um lugar diferente, uma outra coisa, mas, ainda assim, é o nosso cinema, todo mundo ralando, todo mundo junto, e muitas vezes sem dinheiro também.
Cida: E é interessante como isso, de algum modo, contamina a estética dos trabalhos. Nossos cenários, muitas vezes, não são exatamente opções, mas frutos da realidade em que a gente vive. A cada espetáculo, a gente vai juntando tudo o que tem lá na ZAP, e isso, aos poucos, vai fazendo sentido, vai se alinhando com as ideias.
Glaucia: O espetáculo “A noite devora seus filhos” foi assim. Os cacarecos, as sacolas, tudo trazido da casa de um e de outro. É como se a gente se apropriasse um pouco dessa lógica do morador de rua, que vai acumulando e trabalhando com as coisas que encontra pelo caminho. Além disso, vale sempre se perguntar o que é sustentável, também. Se você faz um cenário maravilhoso, você vai enfiar ele onde, vai fazer o que com ele depois que terminar o espetáculo.
Cida: Acho que, em certo sentido, o teatro sempre acaba trazendo um pouco da realidade política que lhe dá origem. Se você tem vinte pessoas em cena, isso é uma opção estética, mas ética também. Quando comecei a fazer o “Domingo”, por exemplo, pensei na minha casa, nas minhas roupas, e em roupas escolhidas por um significado. Mas eu ainda acho que é roupa, não é figurino, é casa, não é cenário: são os meus recursos. A preparação do espetáculo, por exemplo, não era exercício ou aquecimento, mas fazer pão de queijo, varrer a casa, cuidar daquele espaço que vai receber as pessoas. De algum modo, quando você vai fazendo as escolhas, elas vão se revelando depois. Você vai sendo guiado por uma espécie de terceiro olho, de antena que diz pra onde ir.
E, cada vez mais, eu fico achando bom que a vida tenha sido sempre um pouco acidentada, pois isso faz com que a gente se dê bem nas épocas de crise. Eu vejo muita gente se formando com a única expectativa de, mais tarde, conseguir um emprego, e tenho vontade de falar: “Não é nada disso!”. O que a gente precisa é tentar ser uma pessoa melhor, aguçar os sentidos, ser mais generoso com o outro, passar pelas experiências de verdade, sem se preocupar tanto em ficar fazendo planos pra daqui a 10 anos. Isso não quer dizer, claro, que a gente não tem que sonhar. Pelo contrário: eu quero fazer, mas é porque eu quero fazer, e não para alcançar alguma coisa depois, a partir disso. O próprio devir te dá outro devir. O negócio é continuar caminhando, e, o que vai acontecer no futuro, a gente descobre depois.
VIII. Oh, Minas Gerais
Cida: Eu me lembro de que, no Rio de Janeiro, se falava muito que, para que o teatro estivesse bem, era preciso que todos caminhassem bem, desde o teatro comercial até as produções de pesquisa. Mas em Belo Horizonte nem tudo se instalou dessa maneira, então muita coisa fica de fora, muita coisa deixa de ir para frente. É claro que existe uma limitação econômica, mas também existe uma questão muito séria ligada às políticas públicas, pois nós estamos lá frente, enquanto boa parte dos gestores ainda estão chegando nos anos 1970.
Glaucia: E não é que está atrás porque não dá conta de acompanhar, mas, sim, porque não existe esse desejo.
Rita: Por outro lado, eu penso que o teatro comercial, assim como a televisão, de algum modo, são muito importantes para manter o mercado funcionando, existindo de fato. O que nós temos, aqui, é um mercado que se ressente muito de continuidade, e também por isso eu adoraria que a gente tivesse uma emissora de televisão forte e comercial por aqui. Uma emissora que nos oferecesse trabalho, que nos desse a sensação de que existe trabalho, de que nós não somos diletantes, que não precisamos criar todas as nossas oportunidades.
Acho mesmo que o fazer artístico que a gente chama de comercial tem esse papel de continuidade. É claro que isso poderia significar realizar trabalhos que talvez não tenham tanto refinamento, tanto pensamento, tanto conteúdo, mas é uma forma de afirmar esse mercado, de mantê-lo aquecido, economicamente viável, coisa que o teatro daqui ainda não conseguiu. É claro que você tem a Campanha de Popularização, com uma força enorme, mas no resto do ano é muito difícil assistir ou realizar longas temporadas.
Cida: De fato, esse mercado ainda é muito centrado no eixo Rio-São Paulo, e, enquanto isso, a gente fica nessa luta para ser reconhecido. Mas a gente fez essa opção de estar aqui, que tem seu preço, claro. Por outro lado, quando tive a oportunidade de trabalhar no Acre, foi muito bom para entender que a gente não tem a menor ideia do que é o Brasil. Eu cheguei para dar uma oficina em uma antiga usina de castanha que havia sido reformada e transformada em um teatro. Nesse teatro, eu assisti a uma ópera que tinha sido produzida lá, chamada “A lenda da mulher jacaré”. Era um espetáculo incrível, com orquestra, índio tocando flauta, e eu me questionando: “O que é que eu tenho pra ensinar pra essas pessoas?
Minha primeira ideia era agradecer pela oportunidade, dizer que tinha adorado conhecê-los e pedir que eles me mandassem de volta, porque eu realmente fiquei muito perdida. Quando comecei a oficina, nada dava certo, pois os artistas estavam todos muito alimentados pela ópera, até que a gente foi trabalhar com teatro épico, e a coisa funcionou, foi muito bom.
Eu acho que a gente tem um problema de auto-estima muito pesado, porque não podemos nos comparar com Rio e São Paulo, em termos de projeção, mas ao mesmo não temos essa autonomia que tem o Sul, o Nordeste, o Norte. A gente não valoriza tanto o que é especificamente nosso, tal qual o poder público não nos valoriza.
Glaucia: Isso fica muito claro quando você vai se apresentar em um centro cultural, por exemplo, e percebe que o gestor do espaço não assiste ao trabalho. Você passa o dia inteiro montando, apresenta, e, quando vê, a pessoa foi embora. Não ficou pra ver, pra entender o que estava acontecendo.
Rita: Quando pensamos nessa administração que vivemos há oito anos, fica muito claro que os artistas foram silenciados, como se os gestores públicos de fato não quisessem saber como a gente vive, quais são as nossas demandas, quais são as possibilidades de mudar essa história.
Cida: E quando a gente pensa no teatro infantil, então, a situação é catastrófica, pois não existe nenhuma política específica para isso. É inadmissível que você tem um teatro público no Parque Municipal, e não tenha peças gratuitas aos fins de semana, por exemplo, para atrair esse e outros públicos.
De qualquer modo, nós seguimos, e ao mesmo tempo tem coisas muito legais acontecendo aqui. Eu vejo que o campo do teatro é muito forte, mas ainda tem uma dificuldade imensa de circulação, de lidar com essa lógica chata de construir um espetáculo que se encaixe em tal festival, que agrade o curador. Eu tive uma experiência no Festival de Curitiba, por exemplo, e ali eu tive a certeza de a carne mais barata do mercado era a carne mineira, pois houve um momento em que a gente topava tudo para conseguir levar o trabalho adiante.
E aí, quando a gente volta, o panorama também é complicado. Eu me lembro sempre de um aluno que perguntou pra mim, num curso de sensibilização ao teatro: “Professora, o teatro tem muita prostituição, muitas drogas…” e por aí vai. Essa é uma pergunta tão primária, mas é uma das realidades em que a gente ainda vive. No tempo do Shakespeare, por exemplo, os atores ganhavam um carimbo para mostrar que faziam parte de grupos, porque, se não, eram confundidos com vagabundos. Já as atrizes, ainda na década de 1950, aqui no Brasil, ainda precisavam de carteirinha para garantir que não eram prostitutas.
Às vezes, alguém chega pra você e pergunta: “Você ainda está mexendo com teatro?”, e isso mostra que o campo parece nunca se estabelecer. Por um lado, claro, isso é maravilhoso, porque nos libera de uma institucionalização que pode ser muito limitadora. Mas, enquanto política, o teatro tinha, sim, que se estabelecer. Quando você dá aula, você vê que ninguém assiste nada, ninguém sabe o que está acontecendo. Você vê que tem um problema aí, mas não sou eu, como artista, que vou resolvê-lo. A gente tem que fazer as peças, trabalhar com formação de público, lidar com as demandas do espaço, se você tem um espaço, e ainda dar conta desse buraco gigante da formação educacional. Você nem existe, na verdade, para boa parte das pessoas, e talvez seja por isso a gente tente se empoderar tanto.
Por outro lado, acho que, no nosso caso, o caminho é mesmo capitalizar um pouco essas mulheres que somos. Mulheres que não vão se conformar com o papel de bela, recatada e do lar, mas que, pelo contrário, vão para a rua, para a ação, para o embate. Nós estamos, o tempo todo, colocando o nosso capital, a nossa vivência, a nossa história a serviço disso. E como a gente tem uma trajetória longa, isso ganha força, e a gente traz essa força para a cena. A partir de certo momento, parece que é a gente mesmo que fala as coisas, sem se esconder em personagens ou algo do tipo.
É muito impressionante o tanto que se pede que a mulher se conforme, se molde dentro de uma série de preocupações estéticas, de uma ideia glamourosa de mulher. Daí, ou a gente pega esse caminho e fica louca, eternamente jovem, ou a gente assume o que a gente é, a história que tem, o corpo que tem. Nós não somos de plástico, e isso tem uma força muito grande. Então, parece que o importante é tentar ir cada vez mais pra essa linha de frente, não só como diretoras, mas também atuando, levando à cena corpos que se aceitam e se afirmam, em vez de se esconder.
Isso é uma coisa que, em mim, ficou muito forte depois de alguns trabalhos mais recentes, como “Domingo”, “A arte de varrer para debaixo do tapete” e “Rosa-choque”. Acho mesmo que essa questão da mulher entrou de vez na pauta e, hoje em dia, tenho muita vontade de continuar pesquisando o universo das mulheres, entender como é a vida das mulheres da porta pra dentro, tratar dos conflitos gerados pelo amor exacerbado, por essa doação ao outro que nunca se encerra, seja para o marido, para os filhos, para os pais mais velhos.
E ando também muito interessada em trabalhar com atrizes não profissionais, em misturar pessoas com muita experiência em teatro a outras, com nenhuma. Eu fico vendo que a discussão feminista está super avançada, mas, às vezes, a gente está convencendo os convencidos. E eu gostaria muito de chegar naquela mulher que ainda tem que fazer almoço para o marido, pros filhos, que precisa dos netos, do filho que separa e volta pra casa, do filho que tem filhos e leva pra ela cuidar. Muitas vezes, quando você vê uma conversa entre outras mulheres, você vê que algumas discussões ainda estão muito longe de chegar nessas pessoas, apesar de, às vezes, termos a impressão de que a discussão esta super avançada.
Gláucia: E ao mesmo tempo em que existem essas mulheres de uma vida mais dura e voltada para o outro, também tem outras que circulam em um mundo de completa futilidade. Eu vejo muito claramente que estou completamente fora do padrão das mulheres que circulam na região onde vivo. Quando vou ao salão para fazer unha, por exemplo, as conversas são sobre botox, dieta, a vida da filha e por aí vai. Às vezes, você vê filhas e mães que são iguais. Muitas vezes, vê mãe que copiam as filhas, e isso é muito doloroso. Porque a filha se espelhar na mãe é mais comum, e você sabe que em algum momento ela vai rasgar esse modelo e chutar o balde. O que me preocupa mais são as mães que ficam eternamente lutando para serem jovens, muito submetidas a essa ditadura em que a gente vive.
Cida: Felizmente, a cena teatral de Belo Horizonte tem vivido um momento de muita politização, de muita gente reivindicando direitos, falando de fobias sociais, e eu acho muito interessante que o teatro seja, de certo modo, essa caixa de ressonância da sociedade.