– por Diogo Horta –
“São dias felizes os dias em que ouço sons. (…) É assim que se vence o tempo”. Samuel Beckett martela em minha cabeça dia após dia com seu texto “Dias Felizes”, que estreou em 1961 em Nova York intitulada em inglês “Happy days”. A obra traz o isolamento, o silêncio, a pausa milimetricamente exigida pelo autor nas rubricas, o olhar para as banalidades (a escova de dentes, a formiga, a sombrinha) e uma protagonista enterrada (da cintura para baixo no primeiro ato e do pescoço para baixo no segundo), sobrevivendo isolada em algum lugar no tempo-espaço – Winnie. (Longa pausa). Seu marido, Willie, se mostra em pequenos momentos, mas sua trajetória serve muito mais para reforçar a ausência do que para ser uma companhia efetiva para ela.
Tenho alguns trechos de “Dias felizes” decorado por conta da montagem do espetáculo “À espera”, com direção de Marcelo Veronez, em que participei como ator nos idos de 2005/2006[1]. Nunca mais me esqueci destes trechos do texto de Beckett. Interrompo a escrita para procurar em algum lugar o texto para tentar algumas citações, mas só o que encontrei foi a versão francesa. “Oh les beaux jours” foi a tradução de “Happy Days” dada pelo autor quando da estreia da peça em Paris em 1963 (até onde pude apurar em rasas pesquisas na internet). (Pausa).
“Dias felizes” pode ser visto por diversas lentes, perspectivas e contextos. Convido você a (re)ler com os olhos de 2020. (Pausa). “É isso que eu acho maravilhoso. (Pausa)”: como os artistas são capazes de cruzar tempos e espaços, de romper barreiras, de atravessar mares, de salvar existências… (Longa pausa). Quantos estão, nesse momento, sendo o pilar de salvação do confinamento do planeta por meios dos livros, dos filmes, das séries, das músicas, para ficar nos mais óbvios. Quanto valor aos desvalorizados! (Pausa). Achei bonito esse paradoxo (pausa), mas a realidade talvez seja mais cruel uma vez que grande parte dessa indústria artística e cultural, por assim dizer, recebe bastante $valor$ ao mesmo tempo em que outra grande parte vive em condições absolutamente precárias diante de uma instabilidade econômica aterrorizante. (Longa pausa). Sobretudo nestes tempos… (pausa) a desigualdade segue firme seu curso.
Winnie diz: _“Mais um dia divino”. Mas o que será que ela sente? O que você sentiria enterrado da cintura para baixo no meio do nada com uma bolsa, alguns objetos talvez, um revólver, uma sombrinha, uma escova de dente, um marido debilmente rastejante em algum ponto que você não consegue ver? Winnie tenta esconder seus medos e ensaia sua revolução. Ela encara os dias de frente com a força do hábito, do silêncio, da palavra e do olhar do outro (Pausa). Sempre o outro. (Pausa). Aquele que mesmo que não esteja, você finge que está para comprovar sua existência. (Longa pausa). Foi o mesmo Beckett que escreveu isso em “Esperando Godot”, algo assim: _você precisa de mim para comprovar a sua existência.
Há pouco li uma carta que Ana Luísa Santos escreveu no site do Horizonte da Cena. Acredito que podemos comprovar nossas existências escrevendo cartas, mas não só comprovar (pausa) podemos transcender nossas existências por meio delas. (Longa pausa). Segue a minha.
Belo Horizonte, meados de abril de 2020.
Irmãos quarenteners (sempre achei bonita essa forma de iniciar uma carta, embora nunca tenha utilizado tal recurso estético – Irmãos),
Fui ao supermercado. Que passeio! Que luz! Que delírios de infância surgindo em meu peito diante das recordações de assistir SuperMarket na Rede Bandeirantes (https://www.youtube.com/watch?v=ygGaDoFz2qU). (Longa pausa. Talvez de 20 min se você optar por assistir o programa inteiro.) Tenho revivido alguns momentos da minha infância a partir da experiência do isolamento. Muitos, na verdade. Mas não era isso que eu queria dizer… (Pausa).
Eu queria dizer que enquanto analisava de longe as melhores maçãs (não toco mais nas frutas para escolhê-las – desde então – escolho apenas com criteriosa análise visual), fui me aproximando de forma leve sobre a superfície em que se encontravam. Notei que as maçãs se iluminaram com minha aproximação e foram se ajeitando de maneira quase imperceptível, petit à petit, abrindo um buraco no qual fui entrando quase sem perceber. Primeiro os olhos, sempre eles adiante, num emaranhado vermelho de luz forte, cegando de certa forma a visão. E assim fui puxando os braços para tapar os olhos que precisaram trazer o tronco para acompanhar e por consequência os quadris e as pernas me transportando para dentro de um universo novo.
Tal qual Littlefoot chegando no Vale Encantado (talvez você queira relembrar um pequeno momento: https://www.youtube.com/watch?v=kRwsqO7Knh4), me deparo com uma aglomeração de seres humanos em completa aglutinação amorosa, cuja descrição não seria capaz de fazer, mas certamente muito parecida com a já feita pelo senhor Patrick Süskind no livro “O Perfume” – meu desejo aqui era que você fosse correndo re(ler) este trecho do livro. “Quantos sóis”! – é a exclamação que me vem da obra prima Lavoura Arcaica de Raduan Nassar. É possível distinguir Ana e Pedro na multidão. (Pausa). Sou logo adensado pela massa de corpos, arrancando máscara, peito e vísceras. São vermelhas as maçãs. Meu movimento recolhe três ou quatro delas. (Pausa). Já não me lembro bem. (Pausa). Percorrem cabelos, ventres, coxas, axilas, bocas e pés até serem colocadas na sacola de plástico que estava, porventura, em minhas mãos. (Pausa). As maçãs, elas, foram as primeiras coisas que coloquei no carrinho do supermercado neste dia. A lista de compras marcava outros 11 itens – vales encantados.
Segui observando a mim mesmo e aos demais. Sejam lentos ou rápidos, nervosos ou tranquilos, há qualidade no movimento dessa gente. Alguns mestres do teatro talvez chamariam isso de estado de atenção (ou seria estado de alerta?). Há inclusive treinamento de ator com este fim. (Pausa). Observo. (Pausa). Movimentos calculados, figurinos arrumados, objetos a postos, gestos repetitivos, olhares compartilhados, o olhar do outro… minha existência… (Longa pausa).
Que banho! (Pausa). Que alma isolada! (Pausa). Que equanimidade! (Pausa). Que sabedoria existir e não existir! (Pausa). Que conhecimento a consciência da impermanência! (Longa pausa). Podem ser dias felizes, Winnie, você tinha razão, apesar de tudo. Todos os dias podem ser dias como aqueles em que eu vou ao supermercado. São dias felizes os dias em que vou ao supermercado. É isso que eu acho maravilhoso. (Longuíssima pausa).
Um espirro anuncia o final desta carta. Digo apenas que observem, meus caros. A observação é o cuidado que você merece diariamente. E um pouco de sol na fresta do quarto, talvez. E cuidado com a alimentação nestes tempos… ah! Ouvi dizer que maçã faz bem.
Que este encontro (literário, teatral, virtual, onírico) te encontre bem e que o teatro nos encontre mais vezes para nos fazer imaginar cenas, histórias e mundos.
Com amor,
@diogohorta
[1] Há 15 anos atrás, do tempo em que havia um governo municipal, em Contagem, bastante atento a cultura e foi responsável pela base na formação de muitos artistas. O espetáculo “À espera” foi a conclusão do curso de teatro da Coordenadoria de Cultura de Contagem – Grupo Roda Viva 2005. A montagem foi realizada no Cine Teatro de Contagem (espaço cultural fechado há pelo menos 8 anos) e contava com cenas criadas a partir de “Piquenique no front” de Fernando Arrabal, “A cantora careca” de Eugène Ionesco e “Dias felizes” e “Esperando Godot” de Samuel Beckett. FICHA TÉCNICA – Direção: Marcelo Veronez. Assistente de direção: Rafael Villar. Elenco: Rafael Lucas Bacelar, Daniela Graciere, Malu D’Angelo, Fellipe Marcondes, Lucio Honorato, Randolpho Lamonier, Diogo Horta, Cleyton Fagundes, Letícia Santos, Ana Carolina Tavares e Natália Moreira. Ator substituto: Thales Brenner.