— por Luciana Romagnolli —
Crítica de “Os Pálidos”, da CiaSenhas (PR).
Há mais de uma década, a CiaSenhas de Teatro vem criando espetáculos capazes de provocar o espectador por meio do estranhamento infiltrado dentro de um território familiar, num gesto de aproximação não ingênuo pelo qual esse espectador é atraído e traído, no melhor dos sentidos: o da instauração de uma zona de afeto não complacente, preocupada em considerá-lo em sua alteridade, em reconhecer sua presença e cativar sua atenção, tanto quanto indisposta a satisfazê-lo em seus desejos de validação.
Muito dessa ambiguidade entre a afeição e a antipatia, entre a ternura e a crueza, tem se construído pelos olhares sustentados pelos atores diretamente para cada espectador, que se vê reconhecido e individualizado. Um olhar que é de sedução e, como tal, pode ser cúmplice, persuasivo, misterioso, manipulador, traiçoeiro, desafiador. Imbui os personagens das fábulas cindidas de uma vida além do texto, como um rio subterrâneo de emoções não codificadas, que atravessam a distância comunicacional entre ator e espectador numa afetação para além dos sentidos. São criaturas ariscas: as que olham e as que são olhadas, a lembrar-nos do irracional, do incontido e do indomesticável do humano.
Já se via esse movimento de persuasão do espectador, por exemplo, em “Homem Piano – Uma Instalação para a Memória” (2010). Os olhares do ator Luiz Bertazzo capturam cada espectador, individualmente, pela sedução das expressões faciais e dos tons de voz cordiais do discurso, pontuado por diminutivos afetivos e verbos de súplica e promessa. Assim, instauram uma intimidade temporária, propícia para dilatar as subjetividades e deflagrar os testemunhos pessoais. Ainda antes dessa incursão do grupo curitibano por uma dramaturgia híbrida das artes visuais e fortemente espacial, “Delicadas Embalagens” (2008) e “Bicho Corre Hoje” (2004) [1] apontavam já a ambiguidade agridoce das relações convocando elementos do grotesco, como o contraste entre as embalagens higienizadas dos produtos laticínios e a animalidade da carne humana.
Em “Circo Negro” (2013), a atmosfera de estranhamento se acentua no cenário e, por meio de olhares, do abaixar de calças e da distribuição de tomates para serem arremessados, a relação incômoda que o elenco estabelece com o espectador evidencia condições de manipulação, exposição e sujeição inerentes à arte do ator. “Obscura Fuga da Menina Apertando sobre o Peito um Lenço de Renda” (2014), conforme observou a crítica Soraya Belusi, apresenta uma família marcada pelo sinistro freudiano. Tal traçado de amadurecimento de uma poética própria resulta de um trabalho continuado de pesquisa de linguagem que o grupo curitibano vem praticando desde 1999, sob orientação da diretora Sueli Araújo.
Estes dois últimos espetáculos citados têm em comum textos de Daniel Veronese. Se couber apontar paralelos com o Espanca! nessa coincidência do dramaturgo argentino (autor também de “Líquido Tátil”), na fábula perturbada pelo estranhamento e na ocupação de um espaço estratégico no baixo centro de uma capital, que seja somente para exaltar o quanto a CiaSenhas merece ampliar sua projeção nacional, tal como a conquistou o grupo mineiro, mas é nas diferenças que se faz essencial que a companhia paranaense percorra mais o país e chegue a mais espectadores.
E Curitiba, em si, é uma diferença. Sem restringir o grupo ao seu local de origem, interessa considerar o contexto e sua relação com ele, uma vez que a região Sul mostrou, em tempos recentes, a intensificação de uma face conservadora e fascista que existe no país como um todo. Na rua São Francisco, onde a CiaSenhas habita, o processo é simbólico: antes deserta e mal-iluminada, com prédios abandonados e tráfico, pouca vida sobrevivia. Com uma reforma urbanística, a apropriação por moradores e a criação da praça do ciclista, atraiu bares e gente na rua como não se costuma ver na cidade fria. Pouco tempo depois, o conflito entre as classes sociais que ocupam o espaço e a polícia está acirrado, e o medo já dispersa o convívio com o outro.
Perturbações e desimportâncias
É nessa zona de diálogo direto com a realidade que a Senhas criou “Os Pálidos”, espetáculo que estreou em agosto, em sua sede, deixando que os ruídos literais e metafóricos vindos das vizinhanças atravessem a dramaturgia. O texto é assinado por Sueli, também diretora e presença excêntrica em cena. A atmosfera do espetáculo evoca um filme de Luis Buñuel (“O Anjo Exterminador” e “O Discreto Charme da Burguesia” são referências) a olhar para o nonsense de uma burguesia presa em si mesma, enredada pelo consumo e rouca de protestar nas redes sociais. O estranhamento do universo surrealista alinha-se à poética da companhia na criação de um não acontecimento constante, que expõe um cotidiano vivido sem muito propósito.
Com uma dramaturgia fortemente convivial, que convoca um a um os espectadores pelos nomes e os redistribui pelo espaço, atribuindo-lhes um lugar e a responsabilidade de estar ali, a CiaSenhas realiza um trabalho extremamente sensível às vibrações políticas, culturais e discursivas dos últimos três anos, e transforma em experiência cênica as contradições que há muito subjazem no modo de vida ocidental, mas que desde junho de 2013 eclodiram no território brasileiro como um vulcão em ebulição.
Como arte não se faz só de tema, o que impressiona na criação do espetáculo são os modos como essa matéria toma forma, desde o movimento de autocrítica, que faz com que a enunciação sempre parta de um “nós”, incluindo atores e espectadores nas mesmas potências e impotências; à oscilação entre a cegueira e a lucidez, construídas no trânsito entre o ficcional e o real, na tensão entre a caricatura e o ator-performer, entre a metáfora e aquilo que se nomeia sem rodeios: “Nós temos só mais 70 palavras que são nossas de verdade para falar para vocês”, anuncia Bertazzo.
Ele, Anne Celli, Ciliane Vendruscolo, Greice Barros e Rafa di Lari apresentam-se como figuras restantes de algum baile decadente e anacrônico, investidos de estranhamento nos figurinos, corpos e olhares, a buscar os olhos dos espectadores criando uma cumplicidade possível no desconhecido. A certa altura, Greice questiona: “Acha mesmo que podemos confiar?”. A dúvida é sobre nós, a plateia. Há uma silenciosa dramaturgia do olhar construída durante todo espetáculo em paralelo às palavras, como se o bicho humano buscasse no outro, além da linguagem, aquilo que os assemelha, os aproxima. Uma confiança possível. Um comum possível. Qual o comum possível além da apatia e da superficialidade?
Os atores comportam-se como uma espécie de coro cujas falas ecoam entre si e instauram uma atmosfera peculiar. O discurso opera conforme estratégias reconhecíveis da comunicação em tempos de redes sociais, de modo que as frases vão se repetindo, sendo manipuladas, contaminam umas às outras, os sentidos deslizam, são convertidos, invertidos, esvaziados. Uma das cenas emblemáticas pelo humor, ironia e desconcerto é um duelo de “blablablás” desempenhado com energia máxima, que culmina numa versão de “Aquarela do Brasil”, plena de irreverência e crítica. O tom de deboche sobre nosso modo de reação às injustiças sociais é dado pelo refrão de “Protesto”, de Blubell.
A necessidade de ação para mudar o mundo é iminente e onipresente, mas permanece encoberta por amenidades. O barulho da rua adentra o ambiente, por meio do sistema de som, estabelecendo o cruzamento residual entre um dentro e um fora. O fora, esse lugar de risco; o dentro, supostamente protegido. O risco, o descontentamento e a necessidade de mudar o mundo são distraídos pelas amenidades, pelas garatujas. Os atores falam entre risos, pela necessidade de amaciar e escapar das perturbações, de tornar o convívio mais leve, mais agradável, mais inofensivo e impotente.
Um trocadilho banal escapa e ressoa: “Algo para mudar o mundo?” “Álcool para mudar o mundo!”. Está nomeado o nosso escapismo legalizado numa sociedade convencida a permanecer dopada. De que convívio estamos usufruindo? O que nos é comum? O que nos une ou para que nos unimos? A Senhas joga com nossas fraquezas, com a indignação seletiva e as ignorâncias plurais, com nosso patético e com nossos cosméticos – a superfície sempre a desviar o olhar da vulnerabilidade da carne, enquanto o álcool liberta de enfrentar os problemas sociais mais graves.
A cena que se apresenta é o paroxismo de nossas contradições e implica o espectador ao pedir-lhe, por exemplo, que contribua com uma vaquinha ou ao oferecer-lhe vinho. Aquilo que se aceita por hábito comporta quais implicações incalculadas? A que serve o encontro e o convívio que não sejam urgentes, que não sejam tomada de ação, que não sejam políticos?
[1] Menciono somente os espetáculo aos quais assisti.
Conheça aqui o repertório completo da CiaSenhas.
*Espetáculo visto em agosto de 2015, na sede da CiaSenhas, em Curitiba.