– por Soraya Martins e Anderson Feliciano * –
crítica a partir das apresentações da segundaPRETA
I
No início, a segundaPRETA era um desejo. Era a vontade de – vários artistas pretas e pretos – criar um espaço onde pudéssemos, além de nos fortalecer e nos cuidar, mostrar nossas produções artísticas e gerar conhecimentos sobre nós mesmos. Um espaço de fabulação onde pudéssemos nos inventar constantemente. A segundaPRETA como lugar de diálogo tenso e necessário sobre a produção de estéticas contemporâneas negras, para além do entendimento equivocado daquilo que se denomina arte negra, associada somente à religiosidade e às mazelas sociais.
Somos aquelas sementes plantadas por Abdias do Nascimento brotando e gerando estranhos frutos. Aquele bando de gente preta descobriu que junto é mais forte e armou-se o quilombo. segundaPRETA – espalhada aos quatro cantos pelos ventos de Iansã – que vem reconfigurando material e simbolicamente o espaço comum das artes em Belo Horizonte.
O projeto se encaminha para a quarta temporada no início do próximo ano. Sua data de estreia foi no dia 20 de janeiro de 2017 no Teatro Espanca!, parceiro direito de luta e ideais da segunda, e teve como homenageada a atriz Ruth de Souza, estrela do teatro negro brasileiro que fez história ao ser a primeira atriz negra a se apresentar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Do dia 20 de janeiro a 20 de fevereiro, durante as segundas-feiras, passaram pelo terreiro-teatro espanca! artistas de várias gerações da cidade de Belo Horizonte, do novíssimo grupo de teatro Espaço Preto a Rui Moreira, Adyr Assumpção e Gil Amâncio.
E somos sementes! A segunda temporada, que ocorreu entre maio e junho, teve de novo um diálogo entre artistas que vieram antes e artistas que vieram agora, com a força, o conhecimento e o tempo espiralar, que mistura o antes, o agora, o depois e o depois ainda. Do Teatro Negro e Atitude, grupo de teatro negro histórico da cidade, passando por artistas e performances como Elisa Nunes e Sabrina Rauta novas na cena, chegando a Ricardo Aleixo e desaguando na multiartista Zora Santos que, entre açúcar e afeto, a beleza de uma tigresa, teatro, boate e cinema, resistência e recriação, foi a homenageada da segunda temporada.
E somos sementes. Brotamos. A terceira temporada da segundaPRETA, assim como as outras, apoderou-se dos canhões, desmontou-os peça a peça, os refez e extraiu deles a parte que nos agride. Escolhemos elaborar as guerras, as violências e os racismos em linguagem estética. Escolhemos tecer uma contra narrativa, fazer arte e ser artista o ano todo. Maio e novembro não dão conta. Escolhemos uma tecnologia de gestão horizontal. E a poeta, pesquisadora e intelectual Leda Maria Martins, alimentando nossas íris pretas, tecendo teoria e conhecimento junto com a nossa gente de mão colorida, foi a homenageada da edição que aconteceu entre setembro e outubro de 2017.
E como falar da formação de público de um projeto que está na cena artística de Belo Horizonte há tão pouco tempo?
Desse questionamento surge um dos aspectos fundamentais da segundaPRETA, que é o diálogo que ela mantém com os projetos que vieram antes, e a partir daí a necessidade de problematizarmos a invisibilidade das produções artísticas que, em sua concepção, apresentam uma estética negra. Somos artistas e espectadores e, por não nos sentirmos contemplados nos espaços destinados às artes no geral, criamos o projeto. Nesse sentido, a segundaPRETA se instaura como um novo Quilombo e abre frestas para pensarmos outras possibilidades de sensibilização por e através das artes.
II
É importante, antes de iniciarmos nossas considerações acerca da formação de público na segundaPRETA, problematizarmos a noção mesma de espectador. Para Margaret Wilkerson:
O teatro na comunidade negra é um evento, cujo significado advém, em grande parte, da sua interação com a plateia. […] Nesse sentido, o que caracterizaria um teatro negro seria sua atenção para com a plateia, na medida em que os elementos teatrais refletissem as esperanças, sonhos, sistemas de valores e padrões culturais do público a que se dirige. (WILKERSON apud MARTINS, p.86, 1995).
Estabelecida a ideia de teatro como evento, é importante ressaltar que nessa proposta, como aponta Leda Maria Martins, “o espectador torna-se um dos signos motores da representação, que reflete e é refletido em um discurso que, simultaneamente, o evoca e é por ele evocado, pois a linguagem cênico-dramática movimenta a experiência e a memória coletiva”. Partindo desta perspectiva de que o espectador é um dos signos motores, que ele reflete e é também refletido, que evoca e é evocado, nos parece interessante então problematizarmos: quem forma quem? De que memória coletiva estamos falando? Como essa memória coletiva tem sido elaborada esteticamente? E de que forma ela tem levado em conta nossa multiplicidade?
segundaPreta. Dia de Exu. Princípio dinâmico de individualização e comunicação. A instância propulsora de interpretação, a ambivalência e a multiplicidade fazem desse orixá um topos discursivo que intervém na formulação de sentido da cultura negra. Exu é metáfora da própria encruzilhada das culturas da diáspora.
Aqui, na segundaPRETA, na encruzilhada de discursos, lugar de contato e contaminações, de encontro e desencontro, da mediação e da mudança, a relação entre artista e espectador se confunde. Se confunde porque essa relação é forjada na e a partir de uma mesma memória traumática (que ressignificada se transforma em potência criadora) que nos aproxima e, ao mesmo tempo, nos distancia. É nas fissuras que nascem desse jogo de aproximação e distanciamento que surgem novas formas de estarmos negras e negros no mundo e a possibilidade de elaboração de outras linguagens.
Este equilíbrio precário nos permite refletir e bordar outras possibilidades éticas e estéticas que, articuladas a um pensamento que ressoa nossa complexidade, gera uma atividade primária de fabulação, ou seja, nós nos inventando e nos construindo o tempo todo como sujeito-artista-espectador preta/o.
III
De fato a segundaPRETA tem se tornado um importante movimento para nós artistas-investigadores negras/negros. Além de abrir espaço para nossas apresentações tem, com os debates, possibilitado a construção de um diálogo, muitas vezes frágil, mas importante para se pensar a denominada arte contemporânea negra. É espaço de agenciamento no qual podemos olhar para trás, e para nós mesmos, ressignificando e nomeando o que vemos.
Em sua terceira edição, a segundaPRETA trouxe uma programação que expande as possibilidades de se pensar a representação do corpo negro e suas particularidades em cena e, mais uma vez, firma-se como espaço de sensibilização onde, num processo intenso de intercâmbios, nos formamos.
Em nosso Quilombo particular, a arte assume seu papel principal na organização do sensível, estabelecendo uma nova ordem, outros discursos e a possibilidade de elaboração de uma afro-perspectiva que potencialize nossas produções estéticas.
Unidos, cientes de nossas complexidades, devagar devagarinho vamos criando novas configurações de conhecimento e poder.
* Anderson Feliciano é Mestrando em Dramaturgia (Universidad Nacional de las Artes – Buenos Aires) e Pós – graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (2009) pela PUC – Minas, além de Performer e Dramaturgo.
Referências:
FANON, Frank. Los Condenados de la Tierra. México D.F., México: Fondo de Cultura Económica, 1980.
FOUCAULT, Michel. La microfisica del poder. Madrid, España: La Piqueta, 1976.
FOUCAULT, Michel. Vigilar y castigar. Buenos Aires, Argentina: Siglo Veintiuno Ediciones, 2005.
MARTINS, Leda Maria. A Cena em Sombras. Belo Horizonte: Ed. Perspectiva, 1995.
MBEMBE, Achile. Necropolítica. Barcelona, España: Editorial Melusina, 2011.
MBEMBE, Achile. Critica a la Razón Negra. Buenos Aires, Argentina: Editorial Futuro Anterior, 2016.
RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
Entrevista a Grada Quilomba realizada por Suely Rolnik: http://brasileiros.com.br/2016/09/o-conhecimento-e-colonizacao/
Decolonizar el conocimento. Grada Quilomba. http://gradakilomba.com/decolonizing-knowledge-a-lecture-performance-by-grada-kilomba-at-the-event-right-to-move-goethe-institut-barcelona-25-may-2016-2100/