– por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras – UFMG/CNPq – e Soraya Martins
Crítica a partir do espetáculo Preto, da Cia Brasileira de Teatro.
Fotos de Nana Moraes
Preto é a nova peça da Cia. Brasileira de Teatro, de Curitiba, estreada no dia 9 de novembro de 2017 no Sesc Campo Limpo, em São Paulo. O espetáculo tem direção de Marcio Abreu e dramaturgia escrita em coautoria com as dramaturgas e também atrizes, que integram o elenco da montagem, Grace Passô e Nadja Naira, junto com os parceiros de cena Cássia Damasceno, Felipe Soares, Rodrigo Bolzan – substituído por Rafael Lucas Bacelar recentemente desde a estreia do grupo no Festival de Curitiba – e Renata Sorrah, que participa pela terceira vez de uma produção da Cia., renovando a parceria artística com o grupo. Um elenco tecnicamente muito competente e entrosado, e sobretudo, comprometido com a proposta de montagem.
Na página da companhia são disponibilizadas algumas informações relevantes sobre o processo da concepção do texto espetacular:
O PROJETO
[…] Um trabalho no teatro que promove uma investigação sobre racismo e negação das diferenças a partir da vivência [sic] brasileira e em perspectiva com o mundo. Uma experiência que busca expandir através da arte as percepções sobre o outro e sobre os espaços de convivência e de formação das sensibilidades.
A DRAMATURGIA
O diálogo com o real sem o propósito de reproduzir a realidade é uma das instâncias da linguagem experimentada em PRETO.
Falar a partir de um tema e não sobre um tema. Se deixar afetar por um assunto e reagir artisticamente a ele ao invés de apenas descreve-lo teatralmente ou transpô-lo para a cena.
Desta maneira entendemos o teatro como campo de jogo e invenção. A dramaturgia como lugar de articulação e acesso ao desconhecido, à experiência única do encontro, a ativação das presenças dos intérpretes e das pessoas do público na dimensão relacional, potencializando o “entre”, o lugar invisível que existe ligando as pessoas quando entende-se o teatro como um acontecimento inscrito no tempo real, concreto.[1]
Os aspectos descritos no site podem ser observados no resultado apresentado, levando-nos a afirmação de que não há dúvidas de que a peça trata com mérito a temática da invisibilidade e das imagens sociais às quais os pretos (negros, negras) são, e estão submetidos.
A estrutura dramatúrgica e espetacular se articula, em princípio, a partir de uma suposta conferência ministrada por uma persona/personagem/mulher/negra, interpretada por Grace Passô, que, de forma performativa, vai trabalhando e trazendo para discussão, a partir de seu discurso/performance, inúmeras situações – cenas, vivências, “realidades” – com as quais o preto se vê, e/ou se sente envolvido socialmente. Em sintonia e a partir de “diálogos” e de cenas, nem sempre conexos e em muitos momentos propostos por esta persona/atriz/personagem/performer/ mulher/negra[2], os outros atores/personas/personagens vão se integrando ao discurso/conferência de formas distintas e, por sua vez, integram suas e outras vozes aos subtextos que vão sendo criados e que passam a desvelar ora estratégias do racismo (social e racial), ora posicionamentos ideológicos e, em vários momentos, estereótipos que costumam ser dirigidos aos pretos. A direção de Abreu cria jogos cênicos que incorporam à peça momentos que remetem os espectadores não só a uma conferência, mas também a uma dança, a um número musical, a um cine-documentário, demonstrando como são fluídas as linguagens cênicas trazidas para as cenas e, ao mesmo tempo, como são tênues os lugares de representação – discursiva e/ou social – pelos quais os pretos transitam. Os artistas envolvidos são submetidos a um jogo de troca de papéis em que, em vários momentos, são emitidas “frases soltas” que determinam (ou vão determinar) como cada qual vai lidar com a presença do Outro em cena e nas cenas:
Alguém pode me ajudar a colocar esta mesa um pouco mais pra frente, por favor? Esta mesa, esta mesa aqui… um pouco mais pra frente… Alguém? […] a cadeira e o microfone também. Alguém? (a pergunta se repete até que alguém da plateia, auxiliado por um integrante do elenco, se prontifica a ajudar, adentrando o espaço cênico e participando da cena) Isso um pouco mais pra frente… melhor seria esta mesa, esta cadeira, sem esta parede entre nós… (o espectador começa a se dirigir para o seu assento) Espera! Espera, por favor, senta! Olha só, daí há um calor… Agora um pouco mais pra frente, por favor?… Melhor seria se estivéssemos em roda, bem melhor, seria bem melhor… Vamos gente… aí está bom… um pouco mais pra frente… aí… Senta, fica à vontade! Água? Aceita? Água! Faça um gesto, um gesto inesquecível (o espectador mostra o pênis, todos riem e aplaudem[3]) Muito bom, muito obrigado, muito obrigado! Pode ficar à vontade. É que aí é outro calor, né? (todos riem) E continuando o que eu falava antes, o que nos importa agora é perguntar o que fazer para que o enegrecimento seja cada vez maior, cada vez mais potente no lugar onde estamos? Como vocês estão vendo aí, eu estou sem papel, eu entendi que hoje aqui seria como uma conversa, depois fiquei sabendo que seria uma fala, mas fala sobre o quê, né gente? (ri) falar sobre o quê? (ri), falar sobre o quê? (ri)… Imaginei também uma bela noite de sono, mas eu tive, assim, alguns pesadelos. Então, na verdade o que estou fazendo aqui é exercitando a improvisação no sentido mais rico da palavra. O título é muito interessante: PRETO. Então, eu vou partir daí, da PRETURA, pra gente conversar um pouquinho. Eu pensei em como a sociedade age sobre nós e é interessante pensar isso no momento atual, neste momento tão sombrio, né? Aliás, mais um momento sombrio, cheio de sombras, mas assim… sombras no mau sentido, porque as sombras dionisíacas, por exemplo, são maravilhosas, mas não é sobre este sentido de sombra que estamos falando, então eu vou partir daí, do PRETO, da PRETURA, de como a sociedade age sobre nós, de como nós reagimos e neste sentido a noção de preto é muito interessante porque o Brasil é PRETO, né? (silêncio intenso – uns trinta segundos ou mais) Embora aja quem não reconheça isso, a PRETURA como um modo civilizatório, a PRETURA como um modo civilizatório, a PRETURA como um modo civilizatório (repetindo a frase inúmeras vezes em diversos tons vocais e ritmos) eu poderia falar sobre diversos assuntos, mas eles me jogam para falar sobre esse, né gente (rir sarcasticamente) então eu vou partir daí, do PRETO, da PRETURA, da sín-co-pe, da vertigem, do fogo (explode o microfone e se dá a repetição desta última palavra, “fogo”, e inicia um discurso sobre o “fogo”, o tempo, a temperatura, o fogo interno. Ações e frase são repetidas, os tons e a musicalidade das palavras são explorados pela atriz)…[4]
Assim, dá-se início o espetáculo Preto, mostrando imediatamente a que veio. Desde a primeira cena a peça reverbera no inconsciente do espectador, demostrando uma perspectiva de falar sobre o aspecto da invisibilidade e fazer desse um mote recorrente da peça. O preto, neste caso, é um vetor temático da montagem, mas não se converte no único ponto tratado. Na verdade, o tema-título acaba se convertendo em um macrossigno que se desdobra e traz consigo várias outras “feridas” abertas e latentes em nossas sociedades contemporâneas, com tudo que este significante – contemporâneo – representa ou pode representar.
Preto. Preto! Preto?
A qual[is] Preto[s] nos referimos?
Qual é o lugar do Preto? Quais lugares Preto representa? A quem se destina Preto?
Afirmações e perguntas não tão simples de responder e, quando voltamos o nosso olhar para a montagem da Cia Brasileira de Teatro, a inquietação diante de nossos próprios questionamentos não deixa de ser diferente. Não dá para nos isentarmos de nosso lugar de fala (eu, Marcos, homem negro, e Soraya, mulher negra) para fazer uma leitura que não esteja atenta aos olhares analíticos e críticos. O tom de pele não nos deixa – ou nos deixaria – imune aos vários questionamentos propostos pelo espetáculo, ratificando a premissa de que assim como o nosso olhar, a nossa crítica também é comprometida.
Muito se fala atualmente sobre “lugar de fala” e nos parece importante destacar que o diretor e a Cia. não estiveram alheios a esse posicionamento crítico no processo de produção da montagem. Tal assertiva pode ser corroborada a partir da concepção dramatúrgica com a integração do olhar “de dentro” da atriz e dramaturga – mulher negra – Grace Passô e na composição do elenco que também conta com outros artistas negros – Cássia Damasceno e Felipe Soares – que também imprimem em suas respectivas performances uma perspectiva “engajada” e consonante com o ponto de vista interno do negro[a].
Atento às discussões contemporâneas, a direção de Marcio Abreu explora as particularidades de seu elenco fazendo com que todos estejam em sintonia em cena, mas evidencia-se o protagonismo de Grace Passô e Renata Sorrah no espetáculo. Grace imprime na montagem um discurso comprometido e, por sua vez, Renata “empresta” a sua imagem e se permite entrar nas tessituras dramático-narrativas e provocativas trazidas para o jogo. Diante de nosso olhar também “engajado”, observamos e evidenciamos que ainda Renata Sorrah não tenha – e jamais terá – a vivência de uma mulher negra, a sua presença cênica é extremamente forte e fica claro que a direção soube colocar os “discursos” certos em sua boca e, em momento algum, ela sai do jogo.
Como em outras peças da Cia Brasileira de Teatro, a repetição é um recurso de linguagem cênica e dramatúrgica que vai dando “liga” à montagem. Fazer com que as repetições sejam retomadas pelos atores/personas/personagens permite que o público vá construindo as ações dramático-performativas e, por sua vez, possa ir reconstruindo suas expectativas em relação à recepção dos discursos que vão sendo apresentados. De igual maneira, os recursos da intermidialidade – o vídeo em sintonia com a cena ao vivo e em gravação – também são evidenciados na montagem. A imagem de todo elenco é trazida para as cenas em vídeo em vários momentos desvelando um traço específico de algum aspecto que está sendo discutido na peça. Esta estratégia possibilita que os espectadores se vejam em reflexão, no jogo e em jogo com as cenas, por meio das imagens dos atores/performers.
O espetáculo vai sendo construindo a partir de um mosaico de cenas. Assim como em uma conferência em que o proponente vai expondo as suas reflexões, argumentos e pontos de vista, Preto também vai se construindo a partir de discursos fragmentados (históricos, ideológicos, sociopolíticos) que se concatenam ao passo que o público vai estabelecendo, cada qual a sua maneira, os pontos de confluências entre as cenas, entre as quais destacamos:
- um encontro de duas mulheres lésbicas, em que uma vai se revelando e se entregando aos poucos para outra. Num primeiro momento, a cena poderia ser lida apenas como um encontro amoroso entre duas mulheres. No entanto, não podemos omitir a ideia de discussão de gênero e etnia. Trata-se de um corpo de uma mulher negra – Grace Passô – e de uma mulher branca – Renata Sorrah, que se entregam uma para outra, mas apenas no nível discursivo. Não obstante, as palavras vão tomando forma, desvelando as zonas obscuras e livres dos corpos femininos, daqueles corpos que ali se evidenciam, o sexo e a sexualidade, os desejos que são trazidos para o palco como um ato de gozo, em que cada parte do corpo das duas vai sendo esmiuçada diante do olhar do espectador, chegando inclusive a fazer parte de um só corpo, isto é, um corpo em “fogo” – metáfora que será retomada em outros momentos do espetáculo;
- um revival de uma cena específica do espetáculo As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, peça protagonizada por Renata Sorrah e Fernanda Montenegro e cuja cena é ressignificada pelas atrizes Grace Passô, Renata Sorrah e Nadja Naira. Apesar de muito bem executada e interpretada, consideramos a cena meio deslocada da temática proposta na conferência/espetáculo. Acreditamos que sua supressão não implicaria em nenhum prejuízo à recepção da proposta espetacular em relação ao tema das invisibilidades sociais;
- Uma cena que nos remete à dança, a uma noite na balada ou a um ato performativo de dança-teatro. Ao som de um batidão típico de um baile funk (executado ao vivo e com maestria pelo músico Felipe Storino), ou mesmo de um duelo de vogue, os atores-performers Felipe Soares e Rodrigo Bolzan emprestam as suas corporeidades e “representam” (dançam, se jogam e “dão pinta”) na pista – um corpo negro e um corpo queer, ambos executam os mesmos passos, mas imprimindo as suas especificidades. Jogando com a sexualidade, eles se exibem diante do público com o objetivo de conquistá-lo e para provar quem é o melhor no desempenho de sua performance. É uma dança se estabelece como em um work in progress levando os dois atores ao limite físico. Em um dado momento, os atores vestem uma máscara (uma cabeça enorme moldada com a face de cada um deles) e repetem, repetem, e repetem o jogo performativo da exibição de corpos até que em um dado momento eles se atacam, se pegam, se agridem fisicamente na dança/duelo até a exaustão, para enfim se entregarem a um longo beijo.
Em vários momentos durante a peça, indagações são dirigidas à plateia após as intervenções performativas, sempre mediadas pelo uso de um microfone, muitas vezes utilizando os recursos da microfonia, como também os vídeo-discursos em off, gravados e ao vivo. Pela profundidade dos questionamentos diretos e indiretos propostos, julgamos pertinente discorrer sobre as duas cenas que consideramos potentes. A primeira se dá logo após o desfecho da dança-duelo, que se converte em mote para que Grace Passô, ou melhor a conferencista/atriz/persona/personagem, a partir de um vídeo gravado e exibido ao vivo se dirigir ao público para acionar as memórias individuais e coletivas de cada um:
Tem alguma coisa que não cabe na pauta. O que não cabe na pauta? Em geral, o que não cabe na pauta advém de uma espécie de musicalidade preta, principalmente a síncope, essa queda, esse intervalo onde parece que o tempo desaparece e o som derrapa em um aparente vazio, no caso do corpo a mesma coisa, o corpo que derrapa em um aparente vazio, a síncope, a ginga estão em tudo (o discurso é repetido diversas vezes de forma rápida e atropelando as palavras até que acompanhada pelo músico e repetindo várias a palavra “derrapa” pergunta o público:) Alguma pergunta. Alguém? (Breve silêncio e começa a cantar “Faz uma loucura por mim”, de Alcione)
Em um momento de ruptura, não é mais a conferencista, mas sim a personagem/persona, a mulher que deseja e é desejada, que abandona o palco e ganha a plateia, conduzindo-a com a força da palavra (letra, música, discurso) a cantar com ela e, ao mesmo tempo, os outros atores/personas/personagem entram no jogo musical repetindo o refrão da música: “Nós dois se é pra recomeçar que seja até o fim/ Nós dois se não é pra ficar não gaste o teu latim/ Nós dois só posso te aceitar ao ver que você faz/ Uma loucura por mim… Esta estratégia possibilita que todos se distanciam por alguns momentos antes que a cena-discurso seja retomada: “Esta é uma paisagem, esta é uma paisagem, esta é uma paisagem!”
O que se segue é um aparente discurso sobre a paisagem, sobre a pretura, sobre a negrura e sobre como a sociedade age sobre os pretos. Coloca-se em discussão a ideia de formato circular, da construção e desconstrução dos discursos sociais, das “verdades” absolutas. Traz à tona a ideia de amor, sobre as “imagens” e as suas facetas. São impressos discursos sociais e imagens/fatos “reais” que aconteceram no Brasil: jovens metralhados, um corpo de uma mulher que é arrastada pela rua… Diante dos discursos colocados nas cenas, perguntamo-nos: Quais imagens que são vistas? Como elas são vistas? Como são contadas? Como são reproduzidas?… “É uma verdade! É uma verdade”. A resposta-afirmação enunciada em alto e bom tom pela personagem/persona/conferencista ecoa nos sentidos de cada uma e a afirmação passa a ser ressignificada de várias formas.
A outra cena marcante é a protagonizada por Cássia Damasceno que se agiganta em cena com seu corpo-discurso de atriz/persona/mulher negra:
Olá! Tudo bem? Eu vou sambar para vocês (ao som de uma música ao ritmo de samba) Não eu não vou sambar, eu vou cantar! (a atriz entra e sai de cena depois de cada proposta/ provocação com o tempo que isso implica) Hoje, 10 de janeiro de 2018, eu vou cantar para vocês (sai e vem música), Eu vou posar para vocês! Eu vou posar para vocês! Eu vou posar para vocês (sai) Eu vou ficar sozinha pra vocês! (sai e quando retorna canta com se estivesse gritando, mas apenas gesticulando e sem emitir um som) Eu queria sambar para vocês! Sabe o samba? Eu vou fazer um samba pra gente! (sai e volta) E aí gente linda?! E aí gente linda e maravilhosa, eu vou cantar para vocês a última canção desta noite! E tem aqui uma canção muito significativa pra mim e que bate forte aqui no peito… Quem sabe, vem comigo!… Não, não, não, não, não!!! (repetindo a palavra de diversas formas e ritmos) Não, eu não vou! Eu não vou sambar pra vocês! Não, não, não! Eu não vou cantar pra vocês. Eu não quero cantar pra vocês! Eu vou dar um rolê pra vocês! Eu vou entender tudo isso aqui! Tudo isso aqui é pra vocês! É pra vocês! […] Eu vou amamentar o meu filho pra vocês! Eu vou representar o Brasil pra vocês! Não, não nãoooooo!!! […] Eu vou entender tudo isso aqui! Eu vou escrever um livro pra vocês! Eu vou começar tudo de novo pra vocês! É pra vocês! Vou ocupar o seu lugar! (A partir deste momento, Grace Passô de fora de cena, começa a intervir no discurso e repete as frases com a atriz) Eu vou ganhar um salário mais alto que o seu! Eu vou ser a presidenta! Eu vou ser a presidenta pra vocês! Eu vou ali na esquina! Eu vou ali na esquina pra vocês Eu vou chupar uma mexerica pra vocês! É tudo pra você! Eu vou tomar um banho de cachoeira […] (aqui, por meio de um microfone Grace Passô começa a “ditar” frases/palavras para a atriz, que escuta tudo a partir de um fone de ouvido e repete para a plateia até a conclusão do espetáculo)
A atriz evoca a pretura, o fogo, a religiosidade preta, o corpo preto, a pretura social, sobre o silêncio e sobre os silenciamentos sociais, sobre a história e sobre o ponto de vista da história, sobre as palavras, sobre as teorias:
E nos resta perguntar: O que fazer para que o enegrecimento seja cada vez maior, cada vez mais potente no lugar onde estamos? (Silêncio) O que fazer… Estas palavras vão te tirar para dançar porque elas não vão conseguir falar sobre mim porque eu não sou coisa pra se falar sobre enfim. […] e o que eu tenho é só uma vontade lúcida de… fogo (repetido em off com eco)… o que eu tenho é só uma vontade louca de… o que eu tenho é só uma vontade linda de… enegrecer, enegrecer, enegrecer….
Nesta cena final são discutidos vários estereótipos aos quais as mulheres negras e seus corpos são (e estão) subjugados – todas sabem sambar, cantam, dançam, são boas de cama e têm um apetite sexual exacerbado etc. –, colocando em xeque vários comportamentos machistas, sexistas e excludentes. Tudo é feito desmontando o horizonte de expectativas do espectador, uma vez que a cada oferta de “eu vou…”, há a quebra da ação. O ato de sair de cena amplifica cada ação no inconsciente da plateia, demostrando que todos estão ali implicados naquele discurso do Preto, da pretura, da negrura, do enegrecimento.
Sobre quebras…
Essa cena, em especial, é parte de um todo que mistura política e poética, que aponta a possibilidade do teatro, que também reflete as urgências e insurgências da vida real, estar aberto para tecer/performatizar/estetizar subjetividades que falam das bordas, entendendo borda como lugar mesmo de potências e recriações, de elaboração criativa dos ressentimentos e fúrias. Em tempo: Uma mulher negra sendo envolvida por sete microfones ao fundo, projeta-se um ouvido (branco). Esse corpo-mulher-negra, nesse momento, em silêncio, encarna mediações simbólicas, reinstaura a noção de história e identidade, produz conhecimento a partir da mobilização de energia, que vem do palco e expande para o público. Ela, em silêncio performativo, fala do lugar de silenciamento das mulheres negras. Não que essas mulheres não tenham voz, esses sete microfones não são para dar voz a essas mulheres, são para mobilizar os ouvidos alheios. A questão é sobre ter ouvidos não moucos. É sobre também entrar na disputa por narrativas com propriedade, a partir das diferenças, marcadas indissociavelmente pelo corpo e pela subjetivação. Cena política e cena poética que se constrói a partir das quebras, das rupturas: pega o horizonte de expectativa, no caso o da mulher “globeleza”, e o descola, o joga por terra ao negar/contrariar o lugar predeterminado para os corpos femininos da negrura. Daí a potência (est)ética e política, espaço de construção que se abre a partir de corpos subalternizados e deles vazam narrativas que questionam a discursividade branca e masculina e, acima de tudo, contam histórias que os textos, a História e a mídia insistentemente camuflam.
A quebra de expectativa é um recurso estético que pauta a tessitura de Preto, desde o desenhar da pretura da relação estabelecida entre Grace Passô e Renata Sorrah, sem dicotomias (opressor/oprimido), metonímias ou metáforas até “O que você não esquece nunca do que você é?”, frase dita, redita, repetida. A repetição espetacular. E num determinado momento, átomos explodem no universo, o efeito da pergunta no sujeito perguntado: Grace ri e chora ao mesmo tempo. A pretura como elemento civilizatório. Do que ela não se esquece nunca? Ela é sempre chamada só para falar sobre a negrura (risos sarcásticos como os dela no início da peça). A sociedade não a deixa esquecer nunca que é preta. Preto é também para que o público não se esqueça de que o Brasil é preto (pausa). É para que não se esqueçam do(s) Rafael Braga, da(s) Cláudia Ferreira e da(s) Marielle Franco. Quebra de expectativa. Diálogo com o real. Afetar.
Agora, no corpo textual, há também a quebra de expectativa de um texto na terceira pessoa. Vou falar no “eu-Soraya”:
Assisti Preto quatro vezes, quatro cidades diferentes, quatro espaços. Minha terceira vez foi no vigésimo segundo dia da execução da Marielle, numa apresentação ocorrida no Festival de Curitiba. A minha quarta vez, no vigésimo nono dia, já em Belo Horizonte. A ruptura e as quebras, o real infiltrando, gota a gota no espetáculo. O improviso (da Grace) que a nervura do real pede. Uma, duas, três, trrrr… todas as vezes que se tem necessidade e se tem necessidade sempre (há 40 dias ela -necessidade- vem ainda mais urgente). Vi quatro espetáculos diferentes, vi quatro vezes subjetividades Pretas, Grace Passô e Cássia Damasceno tecendo relações em diferença, usando seus corpos de pretas como tela, imaginação – no sentido de mecanismo produtor de imagens para o pensamento – em temporalidade, corpos ao mesmo tempo políticos (a imaginação é política) e de afeto, que se tornam vaga-lumes, seres luminescentes, dançantes, erráticos, resistentes e resilientes, repetidamente, sob a minha íris preta maravilhada.
Provocado pela persona do “eu-Soraya”, o “eu-Marcos” que me habita, após assistir novamente o espetáculo em Belo Horizonte e mais uma vez atravessado pelos afetos, se vê movido pela necessidade de comentar sobre a urgência de Preto quando os envolvidos se propõem a atualizar o texto espetacular e inserem novos discursos-denúncia à dramaturgia. Trazer a voz de Marielle e de tantos outros corpos negros que vêm sendo silenciados e invisibilizados por um sistema opressor cada vez maior em todo território brasileiro, demonstra o olhar atento dos artistas envolvidos no espetáculo, ao validarem o argumento de que a arte política não se mantém alheia ao seu tempo. Salientando ainda que a atualização do espetáculo também se dá no nível estético, quando a Companhia Brasileira convida artistas locais para participarem do espetáculo à frente da percussão, como Josi Lopes, que imprimiu a sua pretura, a sua corporeidade musical e, o mais potente, o tambor, elemento primordial das ritualidades negras.
Mas ainda nos resta, insistentemente, a pergunta: O que fazer para que o enegrecimento seja cada vez maior, cada vez mais potente no lugar onde estamos? Como fazer com que a pretura, a Pretética[5] atravesse todos os corpos em diferença, sejam corpos em cena, sejam corpos na vida real, entendendo que o conceito de pretura/pretética como elemento civilizatório, está para além da cor da pele preta, é uma tecnologia civilizatória-universal, uma tecnologia sociocultural que, como aponta Rodrigo Prado Viana, marca o fator da raça preta como possibilidade de resistência e revolução ao viabilizar o tornar-se preto desde dentro, o empretecer, o enegrecer, o negrar, o afrocentrar, o afroeducar, o inter(pretar)? O desafio da peça, o grande desafio social brasileiro.
E o que fazer para que o enegrecimento seja cada vez maior, cada vez mais potente no lugar onde estamos? O microfone é posto em direção à plateia. Das quatro vezes que vi, ele ficou lá, esperando corpos pretos e não pretos apontarem algum gesto que reconfigure, material e simbolicamente, um território comum, sem ser igual.
E derrapa, derrapa, derrapa, derrapa, derrapa, derrapa, derrapa, derrapa, derrapa. Alguém?
Ficha Técnica:
Direção: Marcio Abreu.
Elenco: Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira, Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan e Rafael Lucas Bacelar.
Música: Felipe Storino
Dramaturgia: Marcio Abreu, Grace Passô e Nadja Naira.
Iluminação e assistência de direção: Nadja Naira
Trilha e efeitos sonoros: Felpe Storino
Cenografia: Marcelo Alvarenga
Direção de produção: José Maria, NIA Teatro
Direção de movimento: Marcia Rubin
Figurino: Ticiana Passos
Vídeos: Batman Zavarese e Bruna Lessa
Orientação de texto de consultoria vocal: Babaya
Consultoria vocal e musical: Ernani Maletta
Colaboração artística: Aline Villa Real e Leda Maria Martins
Assistência de iluminação e operador de Luz: Henrique Linhares
Assistência de produção e contrarregagem: Eloy Machado
Operador de vídeo: Bruna Lessa e Marcio Gonçalves
Operador de som: Bruno Carneiro
Produção executiva: Carol Teixeira
Design de som: Felipe Storino, Bruno dos Reis e Kleber Araújo
Adereços, esculturas: Bruno Dante
Execução e montagem técnica: Douglas Caldas, Jorge Lima, Luís Victaliano e João Gaspary
Participação artística de residência em Dresden: Danilo Grangheia, Daniel Schauf e Simon Möllendorf
Projeto gráfico: Fabio Arruda e Rodrigo Bleque, Cubículo
Fotos: Nana Moraes
Assessoria de imprensa: Luciana Medeiros e Paula Catunda
Patrocínio: Petrobras e Governo Federal
Copatrocínio: Banco do Brasil
Produção: Companhia Brasileira de Teatro
Coprodução: Sesc São Paulo, HELLERAU – European Center for the Arts Dresden, Künstlerhaus Mousonturm Frankfurt am Main, Théâtre de Choisy-le-Roi – Scène conventionnée pour la diversité linguistique
[1] Disponível em http://www.companhiabrasileira.art.br/projeto-preto/. Acesso: 26/01/2018.
[2] Consideramos que qualquer uma destas palavras (denominações) é apropriada para fazer referência ao “papel” que cada integrante do elenco “representa” em cena.
[3] Assisti ao espetáculo quatro vezes: no dia 16 de dezembro de 2017, no SESC Campo Limpo, em São Paulo, e nos dias 10 de 19 de janeiro de 2018, no CCBB, no Rio de Janeiro e no dia 21 de abril de 2018, no CCBB, em Belo Horizonte. Em cada apresentação esta cena teve uma recepção diferente. Em São Paulo, dois espectadores se ofereceram para participar e um deles foi convidado para sentar-se e fazer o gesto, sendo realizado um gesto corriqueiro. Na apresentação no dia 10, no Rio, também dois espectadores participaram da cena e um dele, como gesto, abriu a braguilha e mostrou o pênis. No do dia 19, apesar da insistência da atriz, nenhum espectador se prontificou a participar e, atentos à sequência da cena e para não prejudicar o “roteiro” preestabelecido, os atores Nadja Naira e Rodrigo Bolzan imediatamente entraram em ação e realizaram as ações esperadas. Em BH, vários espectadores se ofereceram e subiram no palco para atenderem o chamado da atriz.
[4] Todos os trechos aqui transcritos foram extraídos das anotações realizadas das apresentações assistidas e os destaques são nossos.
[5] Definições de Rodrigo Prado Viana: ética preta; poética preta; ramo do pensamento negro responsável pelo estudo, reflexão, investigação, criação, produção e circulação de pretextos (pretos textos).