ou como tentar escrever uma crítica de teatro sem ver uma peça (presencialmente)
– por ana luisa santos –
há bastante tempo não testemunho uma peça de teatro. ou pelo menos, uma experiência do que a gente considerava como isso, essa tipologia, de uma situação presencial coletiva de caráter mais nitidamente estético. há algum tempo não experimento esse tipo de circunstância, que até então poderíamos chamar de teatral ou de outras artes da presença, não faço parte desse tipo de experiência ao ponto de perceber um movimento para a escrita, de ser chamada para o diálogo ou outra possibilidade de expansão.
desde o início da quarentena tenho me perguntado como será, a partir de agora, a experiência da presença, principalmente no sentido de testemunho ou fruição compartilhada coletivamente, de uma situação eminentemente artística, ou, pelo menos, denominada desse modo.
as programações, os festivais, as temporadas, já bastante dispersas e esvaziadas pelo momento complexo e bastante desfavorável que atinge a produção artístico-cultural na cidade de belo horizonte e no brasil, as atividades comuns presenciais nesse âmbito estético foram suspensas indefinidamente, assim como as aulas presenciais das escolas e o uso de espaços públicos, como parques, bares, ruas e outros possíveis lugares de encontro.
estamos testemunhando, tentando testemunhar a disponibilização de vídeos de peças teatrais na internet. muitxs artistas, grupos e instituições estão abrindo seus arquivos [1]. e isso é muito interessante, por vários motivos, inclusive porque nos faz pensar nas motivações ou justificativas que faziam com que essas coleções ficassem, anteriormente a esse contexto de quarentena, que esses conteúdos ficassem “fechados” ou restritos em seus acessos. mas a situação é tão triste atualmente e já há algum tempo, que esse tipo de questionamento parece um pouco sem sentido, defasado, quase irrelevante no momento.
estamos testemunhando, estamos tentando testemunhar uma mutação sensório-social sem precedentes recentes e as análises provisórias[2] já estão disponíveis na internet, as primeiras produzidas por filósofxs, jornalistas, psicanalistas, entre outras vozes mais ou menos autorizadas para quem tem interesse de acompanhar a discussão, para além das questões relacionadas mais diretamente com as medidas de saúde, públicas ou privadas.
este texto não tem a pretensão nem o desejo de propor uma análise ou avaliação do momento. este texto, escrito a lápis, no grafite frágil de sua apagabilidade, é mais um exercício, uma tentativa de habitar, com ainda mais radicalidade, o estado de incerteza, de desamparo, de imprevisibilidade.
talvez possa ser interessante imaginar uma cena, uma cena teatral, e até surgiu uma convocatória para dramaturgias de confinamento e eu tentei rascunhar algumas percepções[3]. e é desse lugar processual e inacabado que gostaria de tentar inciar uma partilha.
gostaria também de aproveitar esse espaço compartilhado do horizonte da cena para endereçar algumas cartas, essa forma de escrita, de endereçamento, de intimidade que vem me rondando há algum tempo. e isso quer dizer não só cartas-emails que escrevi e enviei para algumas pessoas, mas também cartas físicas que enviei pelo correio, cartas manuscritas que fotografei e compartilhei por mensagens digitais e outras cartas que tenho redigido desde o início da quarentena.
por isso, talvez seja interessante tentar pensar em uma cena, uma dramaturgia de alguém que escreve uma carta, que escreve uma carta para alguém, alguém que recebe, alguém que recebe essa carta, lê esse texto e, eventualmente, pode respondê-la (em formato de carta ou não).
por isso, tento compor aqui essa cena, essa cena crítica, de alguém que busca pelo outro, que tenta alcançá-lo, sem garantia de resposta, a distância, tentando algum tipo de mobilização. uma mobilização do outro, uma mobilização de outro sentido, sem dúvida, mas principalmente e de antemão, uma mobilização de si, de seus sentimentos, saudades, memórias, desejos, necessidades de encontros e demandas por compartilhar notícias, estados, planos, mudanças e até, quem sabe, um novo endereço. é desse lugar incerto, frágil e aberto, de quem não sabe se vai receber respostas, se haverá respostas, e até mesmo, se haverá alguma leitura desse texto, da carta e em quais condições que redijo, que tento redigir essas linhas.
belo horizonte, início de abril de 2020
prezadxs colaboradores, leitores e curiosxs do horizonte da cena,
escrevo banhada por uma luz muito intensa e um céu azul claríssimo que acometem a cidade de belo horizonte nesse começo de outono. o contraste entre esse abundante vetor luminoso e a chegada de uma estação introspectiva, pré-inverno, quase me motiva a buscar os óculos escuros. mas minha condição fotofóbica ainda não superou um desejo maior de perceber esse calor que reflete na pele, apesar da dificuldade de abrir os olhos. então, mesmo chorando por causa da intensa claridade, permaneço com as lentes transparentes dos óculos cotidianos.
penso nessa sua leitura, nessa leitura que podemos compartilhar, como um gesto muito generoso neste momento; um gesto de abertura e curiosidade, apesar do clima tenso, constrangido e triste do contexto atual. desde já, te agradeço por essa delicadeza, por essa gentileza da leitura e registro aqui a devolutiva dessa disponibilidade para conhecer e reconhecer a sua percepção dessas linhas e de outras, inclusive através do e-mail anasantosnovo@hotmail.com e do telefone (31) 99471-7099.
seguindo, tentando seguir nessa narrativa não linear, confusa e, por vezes, desarticulada, poderia tentar enumerar as tarefas que têm me ocupado no momento. não teria muito mais para compartilhar com você do que esses gestos cada vez mais cotidianos, já que do ponto de vista das elaborações mais profundas e esgarçadas no tempo, não tenho conseguido avançar muito. o tempo está radicalmente suspenso, em sua percepção, e qualquer flecha, plano ou perspectiva parecem, simultaneamente, muito próximos e/ou muito longínquos. é como se eu habitasse um transporte, um veículo do qual não posso sair, cujo destino eu desconheço. então minha experiência imediata está muito próxima do espaço desse vagão (grande vaga), de alguns objetos, tecnologias, livros que eu trouxe comigo, alguns outros habitantes dessa viagem e uma certa paisagem que, de vez em quando, aparece na janela, uma tela, que às vezes se acende mesmo no meio da noite, dessa escuridão por onde essa jornada tenta avançar, não somente no sentido positivo ou imediato de chegar, mas principalmente, de atravessar.
(d)nesse lugar, (d)nesse estado, tenho buscado criar atividades, reinventar algumas tarefas, diante de um outro tipo de limitação. limitação não só de espaço, imaginação ou encontro, já que as condições de convívio estão reduzidas a partir das próprias características desse tipo de mobilidade. e como estamos em movimento, o sinal oscila muito e a internet não é sempre boa e, às vezes, muitas vezes, ficamos isolados, com nós mesmos no meio do trânsito.
o primeiro gesto que me vem à cabeça, mas principalmente à mão, ao braço, às vísceras que remexem a partir do que escrevo, às glândulas sudoríparas que disparam ações de expectativa das descobertas que essas letras suadas podem trazer, esse primeiro ou múltiplo gesto é essa carta, esse pequeno texto manucrito, mas que devo digitalizar de alguma maneira para que ele possa chegar até você.
essa tem se tornado uma tarefa primordial, junto a outras necessidades vitais como comer, dormir, fazer tricô, tocar instrumentos musicais, fazer colagens e outros tipos de terapias ocupacionais. tenho tentado também fazer algumas ligações, inclusive para amizades mais próximas, pelo menos, afetivamente. outras ligações começam a ficar disponíveis também, com o decorrer das horas. é bom ver/ouvir as pessoas amigas, mesmo que seja por uma tela. continua crescendo em mim esse desejo de encontro, que já há bastante tempo era ou é de um tipo de intensidade na minha experiência do sensível, que diante do contexto imediato e imediatamente anterior chegou a afetar minha sanidade mental. e eu cheguei a iniciar e persisto em uma investigação profunda sobre esse processo, essa inadequação pegajosa que eu carregava, que eu carrego, de não me consolar com mensagens, postagens e outras formas de manifestações em redes digitais como alguma possibilidade ou uma possibilidade interessante de tradução de presença.
outra tarefa, bastante interessante, tem sido lembrar dos últimos encontros presenciais dos quais participei, individual ou coletivamente. e me recordo, com humor, certa ironia e doçura, da última reunião do horizonte da cena, em um bar de calçada na rua guajajaras, no centro de belo horizonte, em uma manhã solar de sábado. foi quando depois de pedir algumas cervejas e fumar alguns cigarros, busquei um tira-gosto com torresmo e luciana romagnolli, paranaense, em sua bem-vinda observação estrangeira da mineiridade, reparou a minha capacidade não só de comer, mas de propor aquele tipo de alimentação àquela hora da manhã. eu ainda disse, respondendo à benigna provocação que, para mim, aquela situação de me encontrar com pessoas que eu admiro no sábado pela manhã e ter a chance de conversar sobre algumas questões muito profundas era sempre extraordinária e eu me propunha, com o apetite poético-hipo-glicêmico que me acompanha, a brindar o encontro e compartilhar um prazer etílico e, para quem gosta de torresmo, gastronômico também.
no mais, às vezes eu choro. eu me pergunto como fazem, como farão xs amantes. eu tento imaginar um outro cenário, mas, por enquanto, eu não consigo. Daí eu vou ouvir uma música, tentar cantarolar uma melodia mais ou menos conhecida e, de alguma forma, tentar preservar a ideia de contágio do significado terrivelmente negativo que parece impregnar o momento e o corpo.
fico por aqui (!) manifestando meus melhores votos pelo seu bem-estar e tranquilidade, apesar, sempre apesar, de tantas dificuldades. agora é, quem sabe, sua vez de complementar a cena e, quem sabe, me contar, num próximo ou distante contato, como foi essa leitura, a recepção dessas linhas, as características do envelope, se você gostou dos selos que eu escolhi e se demorou muito para chegar.
com carinho,
da sua,
als
p.s.: entre xs muitxs passageirxs dessa viagem, tenho tentado reparar especialmente naquilo que pede passagem, que pede passagem como a vida. por onde posso constituir novas vias para fomentar esse tipo de movimento. estou às voltas com a descoberta de uma outra prática de alongamento poético-presencial, dadas as restrições momentâneas, mas ainda não sei como prolongar a energia e ativar a musculatura sem o incentivo, a provocação e a textura do toque, da pele, do cheiro, da diferença e da temperatura do outro. tenho medo de sentir muita falta do seu abraço e ficar muito triste por causa disso. daí preciso te contar que tenho apertado os gatos para além do normal costumeiro. e estou tentando criar uma performance a partir da gravidade (da situação, da física), tentando colocar, tentando empilhar, tentando ressignificar uma escultura de objetos diversos acumulados em cima de mim, em cima do que experimento como corpo. ainda não sei onde isso vai dar.
Madame Satã – Grupo dos Dez / João das Neves (MG)
Homem Vazio na Selva da Cidade – Zap 18 (MG)
senha: homemvazio
O Gol Não Valeu! – Zap 18 (MG)
De Tempo Somos – Grupo Galpão (MG)
Romeu e Julieta – Grupo Galpão (MG)
À Tardinha no Ocidente – Primeira Campainha (MG)
Medeiazonamorta – Teatro Invertido (MG)
Urgente – Cia. Luna Lunera (MG)
Outro lado – Quatroloscinco (MG)
PassAarão – Grupo Espanca! (MG)
Por Elise – Grupo Espanca! (MG)
Laio & Crisipo – Aquela Cia. (RJ)
senha: aquelacia
Irmãos de Sangue – Dos à Deux (RJ/FR)
Fragmentos – Dos à Deux (RJ/FR)
Saudades em Terra d’Água – Dos à Deux (RJ/FR)
Viúva porém Honesta – Magiluth (PE)
Sua Incelença, Ricardo Terceiro – Clowns de Shakespeare (RN)
Santa Cruz do Não Sei – Arkhétypos (RN)
180 dias de inverno – Coletivo Binário (SP)
Vendedor de Verdades – Cia. Canina de Teatro de Rua e Sem Dono (SP)
Os Sertões – Teatro Oficina (SP)
O Amargo Santo da Purificação – Ói Nóis Aqui Traveiz (RS)
A Missão: Lembrança da uma Revolução – Ói Nóis Aqui Traveiz (RS)
Missa dos Quilombos – Cia. Ensaio Aberto (RJ)
A mãe – Cia. Ensaio Aberto (RJ). Parte 1, parte 2 e parte 3.
Show Opinião, o golpe 50 anos depois – Cia. Ensaio Aberto (RJ)
Mire veja – Cia. do Feijão (SP)
Manuela – Cia. do Feijão (SP)
Entre o Céu e a Terra – Cia. do Latão (SP). Parte 1 e parte 2.
Valor de Troca – Cia. do Latão (SP)
Ópera dos Vivos – Cia. do Latão (SP)
Ato 1, parte 1. Ato 1, parte 2. Ato 1, parte 3.
Ato 2, parte 1. Ato 2, parte 2.
Ato 3, parte 1. Ato 3, parte 2.
Ato 4, parte 1. Ato 4, parte 2.
Equívocos colecionados – Cia. do Latão (SP). Parte 1 e parte 2.
[2] para conhecer algumas dessas análises iniciais, seguem links:
[3] para conhecer o exercício, link do texto publicado no blog um depois ainda sem nome.