– Por Victor Guimarães –
Crítica a partir do espetáculo ‘‘Monólogo Público’’, de Michel Melamed
Há um momento crucial no novo espetáculo de Michel Melamed. A certa altura, passada mais da metade do monólogo, o personagem vivido pelo ator-dramaturgo-diretor se dirige à plateia e começa a fazer uma longa e bem-humorada autocrítica do que vimos até ali. O diagnóstico autoirônico parece verbalizar todos os traços que eu identificara até então: a rebatida combinação entre autobiografia inflada e escatologia; a constante adulação da inteligência do espectador, instado a rir das aliterações fofas e dos trocadilhos espertinhos do texto; até mesmo a autoindulgência cínica do próprio momento de autocrítica, que denota o fracasso da peça ao mesmo tempo em que continua a demonstrar a superioridade intelectual do autor. Nada parece escapar à autoconsciência do espetáculo.
O interlúdio de ”Monólogo Público” revela um dispositivo cênico recorrente na cena teatral brasileira nos últimos anos. Do solo ”Danação”, com Eduardo Moreira, escrito por Raysner de Paula e dirigido por Marcelo Castro e Mariana Maioline, ao monólogo ”Amanda”, com texto de Jô Bilac e atuação e direção de Rita Clemente, os procedimentos são variados – textos autoirônicos, atuações desconstruídas, momentos de interpelação direta da plateia – e o efeito geral é claro: incorporar ao drama um forte elemento de reflexividade. Mas se a aposta tem algo de potente – a autoconsciência como recusa ao ilusionismo, a desconstrução como posta em crise da representação –, ”Monólogo Público” expõe seus limites. A autoconsciência onipresente instala o espectador numa espécie de limbo, em que o investimento emocional na narrativa, nas atuações, na tessitura mesma do espetáculo, está o tempo inteiro sob suspeita. No limite, o gesto produz uma sorte de blindagem intelectual da peça: qualquer possibilidade de crítica parece fadada ao fracasso, uma vez que já foi prevista pela encenação.
Logo na primeira cena, a autoironia aparece como traço dominante. Em um dos lados do palco, no chão e sob uma luz franca, o solista medita sobre a infância, em um tom confessional que prima pela coloquialidade. No segundo momento, Melamed sobe em um tablado de madeira e, entre luzes coloridas e pedaços aleatórios de canções que mudam velozmente, executa fragmentos de partituras corporais enquanto refaz o mesmo relato, trocando substantivos e adjetivos por seus equivalentes em um português entre arcaico e empolado. A troca de cenários, iluminação, musicalidade e tom se repetirá durante quase toda a peça, e lembra o dispositivo de seu programa de televisão, ”Bipolar Show”.
No decorrer do espetáculo, o texto encampa o gesto de autoficção, tão recorrente na arte contemporânea – com direito a citações de trechos dos monólogos anteriores de Melamed – e o translada para uma reflexão sobre o público e o privado no momento político contemporâneo, em tempos de pós-verdade. A encenação alterna momentos francos, confessionais, com outros de tratamento pop, fragmentados e excessivos. Não há fricção, no entanto, entre os dois extremos. As partituras corporais aleatórias remetem a exercícios de teatro, mas se contentam com a provocação – são um apêndice ao texto. O mesmo se passa com a música. O sample evoca uma poética do shuffle e do remix, mas a exposição de referências e a declaração de princípios é o que importa – nada nos fragmentos musicais contamina o que se quer dizer. Mesmo após o momento de autocrítica, as peripécias corporais, visuais e sonoras continuam a ser um acessório decorativo, no interior do qual a vontade de discurso permanece ilesa. E é justamente a vontade de discurso que é visada pelo gesto autocrítico. Diante disso, o espectador fica numa sinuca de bico: como crer em uma encenação que não acredita em si mesma? Como sustentar o pacto se este é desautorizado constantemente pelo principal responsável por mantê-lo ativo?
Não parece casual o detalhe de que o termo “pós-verdade” tenha sido cunhado por um homem de teatro, o dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich em um ensaio na revista The Nation, em 1992. No texto, que completou 25 anos, Tesich refletia sobre uma nova paisagem política em que as revelações, os desmentidos, não pareciam mais ter a força de desativar a marcha da narrativa ideológica, que já se movimentava livre, a despeito de sua veracidade ou de sua justificação. A vitória da democracia no escândalo de Watergate seria o último estertor de um mundo no qual ainda era possível sentir-se seguro diante da força de uma revelação. Paradoxalmente – ou nem tanto –, a ressaca do escândalo produziria o que o autor chamou de “síndrome de Watergate”: “na sequência desse triunfo ocorreu algo totalmente imprevisto. Seja porque as revelações de Watergate foram tão dolorosas e se deram logo no amanhecer da guerra no Vietnã, que estava repleta de crimes e revelações próprias, seja porque Nixon foi tão rapidamente perdoado, começamos a esquivar-nos da verdade. Chegamos a equiparar a verdade com más notícias e nós não queríamos mais más notícias, independentemente de quão verdadeiras ou vitais para nossa saúde como uma nação. Olhamos para o nosso governo para nos proteger da verdade”. Ainda antes da popularização da Internet, que abriu a porteira para o triunfo da pós-verdade, um dramaturgo – alguém, portanto, com uma consciência cristalina do poder da crença – formulava uma poderosa prefiguração do que estava por vir: um cenário político em que essa imensa máquina de produção de boatos e versões que é nossa paisagem midiática se tornou imune à verdade.
Diante de um espectador imune à verdade, a aposta de Melamed é em um teatro imune à crença. Se a pós-verdade é um tema central do espetáculo, sua poética é a da pós-crença. Se a pós-verdade é, segundo a Oxford Dictionaries – que a elegeu como palavra do ano em 2016 –, um substantivo que “denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”, a pós-crença é seu oposto simétrico: uma poética na qual todo investimento emocional, todo o pacto ficcional é dinamitado pelo intelecto, por uma autocrítica pré-fabricada que desautoriza o mergulho na ilusão teatral.
Como em toda oposição simétrica, troca-se o sinal, mas a relação permanece inalterada. O problema é que a pós-crença é também a pós-crítica. A piscadela irônica para o espectador, que durante tanto tempo foi pontual nas escritas teatrais, se tornou um dos núcleos da encenação contemporânea – e, ao se estabilizar como norma, perdeu sua potência de disrupção. Diante de textos marcadamente autoconscientes, de performances que parecem não se levar a sério e da ironização generalizada da cena, o espectador não se torna mais livre, e sim tem sua capacidade de emancipação drasticamente reduzida. Preso na engrenagem da autoconsciência, nosso próprio olhar crítico rebate em uma escritura previamente criticada.
O que esse dispositivo cênico majoritário parece ignorar é o fato de que o poder contemporâneo é o próprio reino da pós-crítica. Como diagnostica Vladimir Safatle em ”O Cinismo e a Falência da Crítica”, a razão cínica que impera em todas as dimensões da vida no presente faz com que o desmascaramento – cerne da ironia moderna – seja uma forma de resistência obsoleta, uma vez que o próprio capitalismo já não precisa da ilusão ideológica para se fazer valer. Em um paradoxo inquietante e desesperador, a manutenção da exploração já não depende dos mecanismos da ilusão e se faz às claras, com a luz acesa, produzindo um engajamento cínico: sabemos bem, mas mesmo assim… Basta observar a retórica dominante da publicidade, com sua mise-en-scène desconstruída, seus comentários autoconscientes, suas atuações que zombam da própria linguagem publicitária. O cinismo tornou-se a regra, e o poder é hoje reflexivo, distanciado, autoirônico. Um poder que ri de si mesmo.
Os exemplos são inúmeros, mas fiquemos com um só: o teaser da segunda temporada da série ”Stranger Things” (rebatizada de Bagulhos Sinistros) feito pela Netflix Brasil, em que a personagem Chiquinha, do Chaves, retorna no lugar da protagonista da série, em uma performance satírica que desconstrói todos os pressupostos do pacto ficcional da série, a começar pela necessária empatia do espectador com o drama da protagonista mirim. O corpo envelhecido de Maria Antonieta de las Nieves, a performance vocal brilhante da dubladora Cecília Lemes, tudo aponta para uma incongruência cênica radical que constrói uma paródia corrosiva. Em outros tempos, o espectador que gargalha com a Chiquinha nunca poderia ser o mesmo que, no dia seguinte, se emociona com as aventuras da mocinha Eleven. Mas o efeito é justamente o contrário. Não se trata de uma ironia demolidora, mas de uma ação promocional de sucesso.
Eis a falsa consciência esclarecida, eis o cinismo em toda sua exuberância, princípio-mor do poder, hoje. Sabemos bem que esse troço é um engodo, mas essa consciência não nos impede de continuar consumindo. Nenhuma defesa da série pararia em pé diante da zombaria cáustica do teaser, mas a chacota é justamente parte do que a faz permanecer de pé, com seus milhões de espectadores. Sabemos bem que ”Stranger Things” é um melodrama barato e risível (a troça da Chiquinha nos mostrou) mas é tudo tão bom, cheio de cores, a musiquinha é bacana, tem referências daquela grande infância dos anos 1980… Não há contradição, pois a contradição permanente é o que funda o estágio atual do poder.
O que ”Monólogo Público” faz, a despeito de suas nobres intenções, é surfar no cinismo reinante. Mesmo após o momento de autocrítica, mesmo após o aparente desmonte das operações iniciais da peça, a começar pelo cenário – com o ator operando as polias que elevam o tablado de madeira –, não há nenhuma potência cênica que seja capaz de reconfigurar o pacto. A ruptura é cínica, pois não produz desmoronamento, não altera as coordenadas da enunciação. O espetáculo aposta todas as fichas na reflexividade e subordina sua capacidade de invenção a uma operação meramente intelectual.
No fundo, não importa o que se faça em cena: sobre toda ação, sobre toda a sala, paira a luminosa sombra da autoconsciência, que desautoriza o embate franco do espectador com a obra. A certa altura, Melamed se dirige novamente à plateia: “A disputa não é pela narrativa, mas pela linguagem”. Não há frase mais certeira sobre nosso atual estado de coisas, mas a sentença é igualmente cristalina se aplicada a contrapelo ao espetáculo. No fundo, a disputa travada por ”Monólogo Público” continua a ser pela narrativa, pois sua linguagem não faz outra coisa senão mimetizar com astúcia e habilidade as operações mais basilares da razão cínica que é o motor do mundo.