— por Daniel Toledo —
Introdução à promiscuidade
- Característica do que é promíscuo
- Mistura confusa, desordenada.
- Relacionamento não monogâmico, com muitos parceiros diferentes.
- Convivência muito próxima com pessoas de todo tipo.
- Relacionamento não regido por leis ou regras.
Careta que às vezes sou, reconheço que demorei um pouco para entender e aceitar que poderia trabalhar como artista e crítico de artes numa mesma vida. Com o tempo, no entanto, venho percebendo e realmente acreditando que essa promiscuidade faz sentido e é uma resposta aos nossos tempos, que parecem mesmo superar qualquer tipo de separação entre a pesquisa, a criação e a crítica.
Essa separação me parece estar relacionada a um projeto moderno sobre o fazer artístico e os fazeres em geral – e aqui eu me refiro a este projeto moderno em seu contraste com o contemporâneo, com aquilo que se consolida, não só nas artes cênicas mas também em outros campos artísticos, como as artes visuais, a partir dos anos 1960. Foi principalmente a partir de então que se intensificaram uma série deslizamentos dentro do campo das artes visuais, e que se tornou mais difícil, por exemplo, distinguir arte e vida, arte e política e, por quê não, arte e crítica.
Esse paralelo com as artes visuais, aliás, é algo que costuma permear o meu pensamento, porque além de ser promíscuo ao combinar as funções de criador (de artista) e de crítico, eu também sou promíscuo ao atuar como crítico de artes cênicas e de artes visuais – sendo as artes visuais o meu campo de origem em relação à crítica de artes. Antes de acompanhar festivais e produzir críticas de teatro, escrevi sobre exposições para um jornal, publiquei perfis de artistas, escrevi alguns capítulos de livros de artistas, assim como acompanhei como crítico programas de residências de artes visuais e performance.
Percebo então que, numa comparação entre os dois campos, a palavra, matéria fundamental da crítica, é certamente mais presente no teatro do que nas artes visuais, geralmente mais silenciosas do que as artes cênicas. E por isso, talvez, o campo das artes visuais tenha uma relação mais madura, menos conflituosa com a ideia de mediação, em geral. Enquanto é bastante comum que programas de residência artística e exposições de artes visuais tragam, em seus catálogos ou paredes, textos assinados pelos próprios artistas ou por críticos convidados, é mais raro que o programa de um espetáculo inclua entre seus elementos esse tipo de mediação textual. Mas nós podemos pensar que o teatro não é uma coisa simples, e que nem tudo o que interessa ao espectador está dado de cara a esse mesmo espectador, dentro da própria obra.
As artes da crítica
Me parece interessante e inspirador, então, aproximar a função do crítico a algumas funções do dramaturgo e do dramaturgista citadas pelo pesquisador Henry Thorau no livro “Perspectivas do Moderno Teatro Alemão”, lá em 1984. Naquele momento, Thorau havia deixado há pouco as funções de diretor artístico e dramaturgista do Teatro Freie Volksbühne, em Berlim, onde, segundo o livro, uma das suas atividades correspondia a organizar algumas campanhas de esclarecimento dos espectadores em relação as estreias do teatro. Essas campanhas aconteciam por meio de visitas a organizações de espectadores que existem por lá, fazendo algo que ele chama de “palestras de informação e introdução às montagens”, e respondendo muitas vezes às críticas que alguns espectadores faziam aos espetáculos, já depois de assisti-los.
Outra função assumida pelos dramaturgos no mesmo teatro era justamente fazer os programas dos espetáculos que assinavam. Esses programas são definidos pelo Thorau como “complementos teóricos dos espetáculos, a nível histórico e filosófico” e chegavam, às vezes, a ter cem páginas ou mais. Considerando que cada espetáculo do teatro era visto por uma média de 20 mil pessoas (50 sessões com 400 espectadores), os programas costumavam alcançar tiragens entre 15 e 30 mil exemplares.
Penso que pode ser interessante ver a crítica, a mediação, como uma forma de reflexão, de pensamento a partir de uma obra, e não como uma opinião ou um julgamento sobre essa obra. Mais do que avaliar um trabalho, cabe ao crítico se deixar vibrar por este trabalho e traduzir em palavras essa vibração, como quem dá vazão a uma reflexão que tem a peculiaridade de ter sido despertada a partir de uma experiência artística. Daí a aproximação entre a ideia de crítica e a ideia de ensaio – o qual pode ser criativo e que pode combinar elementos narrativos, contextuais e reflexivos, entre outros.
Voltando ao contexto teatral alemão, além de funções relacionadas à mediação entre a obra e o público, ao mesmo dramaturgista são atribuídas responsabilidades bastante específicas em relação aos artistas e seus processos de criação. Uma dessas funções, conta Thorau, parece se aproximar do que costumamos chamar, hoje, de crítica cúmplice: a crítica que se direciona ao processo de criação, por vezes interferindo nesse processo, e não mais somente ao produto artístico “finalizado”. Em uma palestra que o pesquisador fez recentemente na SP Escola de Teatro, ele se referiu ao dramaturgista como uma espécie de crítico interno da encenação. Ele também se refere ao dramaturgista seria um crítico contextualizado, um pesquisador de documentação em torno da obra e estudioso das articulações dos sentidos do texto.
Todas essas atividades citadas pelo Thorau parecem se aproximar bastante da atividade crítica desempenhada por cada um de nós, como críticos, com a diferença de que nós não contamos, no Brasil, com um sistema cultural em que seja recorrente que teatros, instituições culturais, coletivos de artistas ou criadores teatrais incorporem críticos aos seus corpos de colaboradores fixos. E me parece haver, aí, um espaço a ser cada vez mais ocupado e reivindicado no campo contemporâneo das artes cênicas e das artes em geral.
A crítica como arte
Lembro, então, da pesquisadora Josette Féral, que defende a importância da crítica e a necessidade de se reconhecer, entender e praticar a crítica como uma arte. “A complexidade da crítica está relacionada às demandas contraditórias que são impostas ao crítico. Sua arte é originalmente uma arte ofensiva, mas também é uma arte da solidariedade, uma solidariedade com a classe artística, com o público, com a sociedade; ela faz do crítico um ‘cúmplice da aventura do teatro, um parceiro criativo’. Ela é também uma arte do diálogo: um diálogo com a obra de arte, com o artista, com o público”
O que entendo como possível síntese dessa aproximação entre as atividades do artista e do crítico é justamente a superação da lógica moderna que separa cada coisa em seu lugar, como se uma pessoa só pudesse desempenhar uma atividade ao longo da vida, ou só pudesse ocupar um lugar dentro de um mesmo sistema. Nesse caso específico, o que propomos, acredito, é uma aproximação entre saberes e fazeres, ideia que está organizada no seguinte trecho do “O Crítico Ignorante”, de Daniele Avila Small.
“Existe um saber na construção de uma obra, mas ela se define mais como um fazer. E há um fazer na crítica, mas ela se define mais como um saber. A aproximação da crítica de teatro poderia enfatizar a dimensão de fazer da crítica, separando-a do que remete a um saber: menos avaliar e corrigir, mais relatar, adivinhar, traduzir, verificar. E talvez fosse possível também aproximar a natureza do fazer da crítica da natureza do fazer da arte: trabalhar o abismo entre um sentimento e a expressão desse sentimento”.
Como forma de apontar uma utopia para a crítica, vou um pouco mais longe e cito alguém que não está na mesa: o Baudelaire. “Creio sinceramente que a melhor crítica é a divertida e poética; não essa outra, fria e matemática que, sob o pretexto de explicar tudo, carece de ódio e de amor, despoja-se voluntariamente de todo temperamento. Se um quadro – ou uma peça de teatro – correspondem a natureza refletida por um artista, esse mesmo quadro deve ser refletido por um espírito inteligente e sensível. Assim, o melhor modo de dar conta de um quadro poderia ser um soneto ou uma poesia”.
(Texto escrito para a mesa “Crítica de Artista”, realizada no dia 24 de agosto de 2015, dentro do Colóquio DocumentaCena, na programação do Festival Internacional de Teatro Cena Contemporânea, em Brasília. Integrantes da mesa: Daniele Ávila Small, Daniel Toledo, Sérgio Maggio e André Luís Gomes. Mediação: Luciana Hattmann)
Referências
BAUDELAIRE, Charles. ¿Para qué sirve la crítica? Fragmentos del Salón de 1846. Em: Pequeños poemas en prosa, Crítica de arte. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina.
FÉRAL, Josette. A obra de arte julga: o crítico no cambiante cenário teatral. Tradução de Daniele Ávila Small. Em: New Theatre Quarterly (NTQ 64, VOL XVI, PART 4).
SMALL, Daniele Ávila. O Critico Ignorante: uma negociação teórica meio complicada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.
THORAU, Henry. Perspectivas do moderno teatro alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.