Crítica a partir da ação urbana Chorar os Filhos realizada no FIT BH 2018.
– por Éder Rodrigues –
É no deslocamento de um estado de luto para uma arte de luta e resistência que a performer Nina Caetano adentra a Praça Rui Barbosa em Belo Horizonte/MG para instaurar as peças da ação performática intitulada Chorar os Filhos, dentro da programação do Festival Internacional de Teatro FIT 2018.
A tarde segue sua rotina normal na capital mineira, enquanto a performer se senta no banco da praça e passa a costurar uma mortalha a partir dos retalhos contendo depoimentos e falas de mães que perderam seus filhos e filhas. As perdas, no caso, refratam o inelutável paradigma de suas fontes, já que aconteceram em decorrência de operações policiais que não foram esclarecidas pelos órgãos estatais, ou que não tiveram a punição dos criminosos e tampouco obtiveram o efetivo andamento das investigações.
Os depoimentos reunidos recortam episódios e crimes recentes cometidos no nosso país e descortinam a violência e omissão do Estado, já tão explícita, mas que ainda passa com indiferença pelos olhos da sociedade. O tom de denúncia atravessa a tessitura coletiva que a ação promove ao convocar para a reflexão em torno do arquivamento de inúmeros processos desta natureza, da forja de provas para incriminar a juventude das comunidades e, principalmente, do choro invisibilizado de mães e mulheres que enterram seus filhos em números análogos aos de um conflito bélico. De fato, esta guerra se reflete em cada fio costurado na mortalha extensa, pesada e manchada de sangue em que corre o choro de mães brasileiras ativamente reunidas na luta cotidiana por visibilizar o luto pelos entes que lhes são arrancados.
O choro delas pode até ser reconhecido por algum alarde midiático, mas geralmente é atropelado pela sequência dos intervalos comerciais ou substituído por outra tragédia mais “rentável” aos olhos da lógica do capital. Contrária a essa corrente especulativa que só se interessa pela exclusividade da notícia, Chorar os filhos exerce, ao mesmo tempo, o ato de narrar, de lembrar e de inscrever os fios da memória que nos constituem como sujeitos. Nina Caetano reúne o luto, abraça o choro e traça um ultimato social dando o devido lugar da dor ao expor a urgência da ação movida em torno das dobras, da violência e das relações de poder que interagem obliquamente no contorno desses fatos e vivências.
Além do traço militante que não só demarca, como também constitui a essência da performance, há neste trabalho o cuidado em humanizar cada fragmento cerzido enquanto testemunho. No lugar do alarde apelativo da mídia, Chorar os filhos chama para perto, oferece o banco para se sentar junto, mira o buraco de uma agulha pontiaguda enquanto a barbárie de nossa história recente contorna estampidos para ninar os filhos que já não estão. O corpo da performer presentifica o das outras mães. É possível mensurar os olhos delas a partir do olhar firme e pungente da artista mineira e a consternação iminente.
O luto é conviver com a ausência. É se deparar com o silêncio corrosivo diante da não apuração dos casos da morte. É dobrar as roupas de um filho que não vai mais vesti-las. No âmbito coletivo, é estar frente a frente com mais um caso de perda. Sabemos que o luto dessas inúmeras mães brasileiras é rapidamente varrido como se já fizesse parte. Para Nina Caetano não. Extremamente focada nesses casos e sublinhando o adensamento de uma prática constante de violência e morte (e não como eventos isolados conforme a mídia transparece ser), a performer clama a sociedade para chorar os filhos assassinados, além de costurar uma luta conjunta – única forma de combater as políticas do esquecimento. Ou assumimos este luto como algo nosso, ou assinamos esta indigência no silêncio covarde com o qual estamos acostumados.
A ação performática cumpre com um dever social e artístico no sentido de operar pela veia sensível dos braços maternos vazios, no caso, cobrando a construção de processos de reparação e justiça. Os eventos traumáticos da história recente brasileira estão represados nos olhos da performer, artivista no sentido profundo da palavra ao reunir um repertório de trabalhos engajados na luta contra o feminicídio e outras formas de barbárie. Indagada por um transeunte se algum dos mortos retratado era seu filho, ela apenas responde que não. Depois complementa: “E tem que ser da nossa família para nos mobilizarmos diante de tamanha injustiça?”
Durante os três dias de encontro na mesma praça bem no coração da capital, a performance constrói um memorial provisório com os relatos das mães. Provisório porque depois é desfeito corroborando com a própria gênese da performance. Porém, há uma latência que permanece na instância memorial erguida e resistiva à política de esquecimentos impressa de forma invisível ou visível em nossos meios.
No lugar das mães, Nina. Também mãe, performer, mulher, artivista no sentido do reconhecimento do seu papel de luta para o reestabelecimento dos princípios básicos e constitutivos de um país que deveria ser o de não permitir que mães enterrassem seus filhos vitimados pelo próprio Estado que, constitucionalmente, deveria protegê-los. A performance em questão dialoga com a poética do luto, termo designado pelo pesquisador Victor Miguel Vich Florez para refletir sobre a função política do luto no cenário peruano diante de um evento armado envolvendo o Estado que resultou em 70.000 mortos e mais de 15.000 desaparecidos. Vich analisa a forma simbólica que manifestações femininas de resistência cobra pelos mortos e desaparecidos, ativando politicamente espaços e fatos:
Vou chamar de poéticas do luto aquelas intervenções que interveem no espaço público e que têm como finalidade chamar a atenção para os perigos de evitar ou reprimir tais fatos. Trata-se de eventos que surgem para se distanciar de qualquer triunfalismo evasivo das dívidas que ficaram pendentes e que insistem, uma e outra vez, na necessidade de continuar processando o pior do passado”. Poéticas do luto: memórias que ocupam a cidade. (VICH: 2014).
Este luto desfiado em várias direções atravessa toda a América Latina em movimentos como as Mães da Praça de Maio, iniciado em 1977 na Argentina, passa pelo grupo Caravana 43 que denuncia o “narcoestado” no México envolvendo o “desaparecimento” de dezenas de estudantes no estado de Guerrero, e chega ao corpo da performer mineira que tece a brasilidade do trauma. A ação tem um peso simbólico. A costura tem uma agulha afiada e política. Chorar os filhos reestabelece o tom combativo em relação às estatísticas que apresenta, infelizmente, em curva crescente e assustadora. Arte manifesta porque a esperança não basta e é esta a linhagem que a ação provoca. Nina Caetano chora os filhos de inúmeras mães nesta performance que convoca todos a saírem do luto e irem para a luta, conforme um fragmento do depoimento de uma das mães tecido na ação.
Enquanto poética, o luto presente na ação performática conecta dois vetores. Primeiro, a ideia de costurar ausências numa mortalha coletiva que une os pedaços esparsos dos testemunhos de mães e reaviva a memória daqueles que já esqueceram. Segundo, o ato de desdobrar estas informações àqueles que desconhecem, impedindo, inclusive, que a memória se torne rarefeita. A mortalha é costurada pela performer que, durante as cinco horas de duração da ação, recebe a ajuda das pessoas para costurar os fios irreversíveis da dor e do esquecimento.
Foto: Guto Muniz
Chorar os filhos pode ser lida como uma extensão de outra ação performática, realizada anteriormente por Nina Caetano, intitulada Espaço do silêncio em que a artivista contabiliza, nomeia e desdobra os casos das mulheres assassinadas vítimas do feminicídio crônico brasileiro. O conceito de artivismo se torna crucial no entendimento das forças que a performer reúne ao devolver a arte o seu papel social de ativismo diante das violências e opressões expressas no alarmante número de mulheres mortas e a recorrente impunidade que impera. No momento em que mulheres são atiradas das sacadas de prédios, outras são espancadas e violentadas e têm que conviver com o agressor em liberdade horas depois da própria denúncia, a performance documenta o silêncio social e a indiferença perante os dados. Ao contrário da visão especulativa da mídia que apura as possíveis motivações dos crimes (como se alguma motivação pudesse justificá-los), Nina Caetano nomeia cada uma das vítimas, denuncia a circunstância em que o feminicídio foi cometido e escancara a impunidade dos agressores e criminosos.
Arquivo: Nina Caetano
Espaço do silêncio e Chorar os filhos ressoam como o grito calado de mães-coragem na tentativa de lidar com um legado de violência, abusos e mortes. As performances provocam um sentimento de re(ação). Chorar os filhos acolhe, recolhe, junta, costura as partes inadiáveis desta dor. A mortalha aumenta de tamanho e os depoimentos e denúncias presentificam o arquivamento de grande parte dos inquéritos. A dor passa a ser dupla. Pelo ente querido retirado violentamente dos lares, dos braços, do berço da juventude brasileira, e também pela impunidade, pelo trânsito livre do agressor pouco tempo depois do ato cometido ou simplesmente pela não apuração dos casos. O feminismo demarca a poética do luto presente nesta performance que cobra a pulsão da memória coletiva diante de tantos casos e dos números crescentes de casos.
A performance se desdobra para uma roda de conversa realizada um dia depois. Não se trata apenas de uma troca de olhares sobre o que aconteceu durante os três dias de acontecimento da performance. Nina Caetano expõe o seu lugar de luta. Questiona a própria eficácia da sua arte perante os números crescentes dos assassinatos. Em pouco tempo, a roda de conversa aumenta. Participantes chegam com novos depoimentos, choros, mortes, histórias para a continuidade de uma costura que dói e que dói mais ainda quando percebemos a insuficiência de ações para deter o crescimento dos assassinatos. A roda de conversa é também uma costura. Nos olhares e na entrega de quem participa, fica evidente a pulsão do luto coletivo que passa a ser fundamental para chegarmos na profundidade que a palavra tessitura ganha com a performance e seus desdobramentos. Em tempos onde a incitação à violência propaga na velocidade da luz, Nina Caetano chama para o diálogo sobre arte e política criando um espaço horizontal de livre circulação de ideias, como ela própria nomeia. Exercitar a fala e a escuta de maneira tão próxima se torna um ato afetuoso e revolucionário.
O trabalho de Nina Caetano compreende várias instâncias que integram uma arte questionadora, combativa e necessária. Sua contribuição para a cena contemporânea mineira e brasileira vai desde os trabalhos como professora da Universidade Federal de Ouro Preto, passando pela fundação do Obscena Agrupamento Independente de Pesquisa Cênica, pelo trabalho como escritora e, destacadamente, por ser uma das grandes pensadoras da dramaturgia emergente, trabalho consolidado pela tese Tecido de vozes: texturas polifônicas na cena contemporânea mineira (ECA/USP 2011) que deveria constar como obra obrigatória para as reflexões contemporâneas em torno da dramaturgia a partir de sua historiografia e tessituras atuais. Aliás, é no campo da dramaturgia que percebo um desdobramento do seu trabalho para o terreno do performático, conciliando proposições na vertente de Eleonora Fabião e Ileana Diéguez. Primeiramente chegando a denominá-las de dramaturgias do instante, mas depois fiando e desfiando estes mesmos instantes que se verticalizam em memoriais vivos como a exemplo de Espaço do Silêncio e Chorar os filhos.
O quanto dela está presente e o quanto das mães surge nessa ausência performada têm a mesma proporção, a mesma força, o mesmo pulso. Inúmeras narrativas se encontram a partir desta cartografia feminina do luto, da perda e da violência que Nina Caetano explora com as garras de uma artista que interfere no tecido social para modificá-lo e para superar a barbárie que assombra. Com ela, as dissidências e as insurgências do silêncio social são costurados com o impacto de um grito. Com ela, é possível respirar não só diante da certeza de que a revolução será mesmo feminina, mas principalmente porque essa revolução já está sendo feita.
Referências:
VICH. V. M. F. Poéticas do luto: memórias que ocupam a cidade. Revista Sala Preta/USP, 2014.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/81753/Florez
Éder Rodrigues é dramaturgo, escritor e pesquisador das poéticas contemporâneas teatrais. Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais com tese sobre as reconfigurações do papel do dramaturgo na cena emergente. Graduado em Teatro pela Faculdade de Belas Artes da UFMG. Atua como professor universitário nos segmentos da dramaturgia, teoria e história do teatro.