Crítica a partir do espetáculo Azúcar do Grupo Sala B (BH).
– por Joelma Xavier –
O baile, na História da Dança, associa-se aos costumes sociais, uma vez que carrega em si os movimentos do encontro, da festa e do entretenimento. Em diferentes épocas e evocadas pelas mais distintas culturas, as práticas características do baile atravessaram luxuosos salões aristocráticos, articuladas nos compassos ternários da valsa; nutriram-se da sensualidade e do dinamismo da polca e do lundu; intensificaram tendências rítmicas nos desdobramentos do maxixe e do samba, na complexidade do tango e dos ritmos caribenhos; ganharam outros formatos na irreverência dos bailes populares (como o forró), dentre outras possibilidades rítmicas, que compõem os percursos e as mudanças na configuração social e nas práticas da Dança de Salão. Na cena literária brasileira, o baile faz parte da composição estética de diferentes enredos, sobretudo a partir da prosa romântica urbana, no século XIX (em obras de autores como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Taunay, Machado de Assis) e, na poesia, os ritmos do baile também têm atravessado os séculos e funcionam como recurso estético (por exemplo, por meio da escolha de uma base rítmica como a valsa) e como tema (implicando o arranjo de movimentos e de sensações atrelados ao baile e ao corpo), na obra de poetas como Casimiro de Abreu, Gonçalves dias, Vinícius de Moraes etc.
Em 1983, o cineasta italiano Ettore Scola dirigiu o filme O Baile (Le bal), cujo principal argumento centrava-se nas transformações históricas e culturais demarcadas por meio do gestual dançado, da vestimenta e das sensações elaboradas nas cenas de um baile. O filme se articula por meio de cenas dançadas e, a partir dos códigos atrelados à dança e à música, desenvolve uma leitura que se desloca entre diferentes décadas do século XX, interpretando processos de incorporação cultural (como as influências musicais norte-americanas) e conflitos sócio-políticos vivenciados na França. Como se vê, o baile traz, em si, mecanismos de deslizamentos que vão dos compassos sociais dançados às formas de representação dessa prática em diferentes construções artísticas, como a literatura e o cinema, além de ser um elemento de importante conexão cultural, sobretudo entre os países da América Latina.
Por que falo em baile? Porque é na cena de um grande baile que se desenvolve o novo espetáculo Azúcar, do Grupo Sala B, dirigido por Fernando de Castro[1]. O espetáculo é a quarta produção desse grupo de dança, que teve seu início em 2011, e que hoje conta com a participação da bailarina Vanessa Liga (assistente de direção), com a colaboração de todo o grupo na montagem coreográfica e do bailarino Pablo Ramon (figurinista). “Azúcar é uma gíria dos países caribenhos que sugere mais energia nas performances artísticas” (trecho do release do espetáculo). A montagem, além de se basear nessa simbologia de ‘azúcar’, no vocabulário caribenho, inspira-se nos mecanismos históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais oriundos do ciclo da cana-de-açúcar em toda a América Latina. O espetáculo traça elementos intertextuais com o filme O baile, de Ettore Scola, sobretudo por projetar-se na cena de um baile. Além disso, a intertextualidade também se elabora com movimentos e com a fundamentação filosófica e gestual de Pina Bausch, especialmente a partir dos jogos entre o masculino e o feminino, em montagens como Café Müller (1978) e Bandoneon (1980).
Foto de Mariana Rettore
O cenário é elaborado na imagem de um salão de baile, com uma cortina vermelha ao fundo, com cadeiras em um grande círculo e um globo espelhado. O jogo de luzes sobre esse fundo vermelho, em alguns momentos, projeta imagens de corações, luas e pulveriza-se nos pequenos reflexos multicoloridos projetados pelo globo. O figurino é elaborado em texturas leves e esvoaçantes, com estampas predominantemente geométricas. Tanto o figurino quanto o cenário acabam por sugerir um clima ambientado nos anos 70/80, mas a temática do espetáculo não se circunscreve a esse período, uma vez que há vinculações com imagens e gestos bem situados em nossa atualidade. A trilha sonora é composta por ritmos caribenhos, com vozes e arranjos variados e um maior destaque à música cubana. Todo esse circuito contribui para a potencialização da sensualidade e da alegria, numa ambiência latina.
As primeiras coreografias articulam-se numa ideia de jogo entre olhares e entre os compassos dançados no meio do salão. Os bailarinos dão corpo às personagens de um baile e situam gestos, olhares e movimentos na constituição de cenas que vão além da execução dos movimentos coreografados, por exemplo, nas coreografias em que são encenadas situações de assédio, de sedução, de hipocrisia (especialmente nas cenas do jogo de cadeiras) e de humor. Por um lado, nessa primeira parte, predomina o tempero da “latinidad caliente”, articulado à malemolência e ao riso solto. Por outro lado, na construção de um traço de ruptura aos deslizamentos desse gingado, Azúcar propõe a inserção de alguns temas como a violência, o trânsito entre fronteiras e a perda como elementos também representativos na imagética da latinidade. Esse movimento de contrafluxo à sensualidade delineia uma visão crítica sobre a realidade predominante nos países da América Latina.
Foto de Mariana Rettore
No famoso ensaio, “O que é o contemporâneo?”, Giorgio Agamben propõe reflexões sobre os possíveis significados da contemporaneidade e sobre as formas como nós a compreendemos. Para esse autor, o “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Quando projetamos esse pensamento sobre a dança contemporânea, podemos perceber a motivação de muitos grupos em fazer essa problematização do obscuro, uma vez que uma das características da dança (arte) contemporânea é tensionar a realidade, é dar intensidade àquilo que, muitas vezes, insiste em ficar oculto nas ações da sociedade. Acredito que é por esse mecanismo que o Grupo Sala B, na montagem de Azúcar, faz crepitar tendências e comportamentos socioculturais da América Latina.
Como isso acontece? Ao longo do espetáculo, apesar dos delírios provocados pelas cores e pelos movimentos dançados, temos o contraste da violência. Sim, da violência. Especialmente a violência contra a mulher. E como falar dos ritmos da América Latina e não jogar um foco preciso sobre a escuridão dos feminicídios, sobre a violência contra a mulher, realidade que decepa toda e qualquer subjetividade, que rasga os sonhos e que assassina, TODOS OS DIAS, as mulheres? AS MULHERES e também os homens, as crianças, os velhos. O contrapasso da violência nas veias caribenhas do México à Venezuela e, desse contrapasso, infelizmente, o Brasil e os demais países da América do Sul não podem ser descartados. Desse modo, a noção de pertencimento ao Caribe e à América Latina também está atrelada à violência, a começar pela violência sofrida pelos povos nativos, na época da colonização europeia em toda a extensão da América. É dessa violência que também nos fala Azúcar. No meio do espetáculo, uma coreografia encena o gesto da violência contra a mulher. Os movimentos, predominantemente do grupo masculino, demarcam força, oprimem o feminino, num contraste de formas. A coreografia apela para gestos de opressão do homem contra os corpos femininos. Carrega fortes vestígios do ato de silenciar, da agressão física (e, claro, da violência moral), sugere o estupro e toda a rasgadura operada na pele, na intimidade, na dignidade feminina. Os movimentos geram o impacto da dor, do grito, do lamento, da crueldade e da solidão. Apesar de toda a densidade dessas cenas de opressão masculina, o foco sobre a potência do feminino ganha corpo, também, em Azúcar, quando os gestos coreografam os traços do auxílio mútuo e da luta entre mulheres no cotidiano das muitas américas da América Latina.
A perspectiva do contemporâneo também se constrói, em Azúcar, a partir da ideia de fluxos que é articulada no gestual e na trilha sonora que se elabora no circuito dos barulhos e dos movimentos do mar. A coreografia, elaborada na imagem do vai e vem de ondas, sugere o trânsito de corpos que atravessam fronteiras e que costuram as texturas, a geografia e os falares da América Latina. O mar ganha potência e projeta-se na imagem da conexão entre territórios: o mar do Caribe, o fluxo de exuberância natural, de cores, de múltiplas chegadas e partidas. O mar que conecta todos os territórios caribenhos, seja na beleza, na língua, nos ritmos, seja na pobreza, no histórico de mazelas sociais.
A ideia de fluxos e trânsitos, em Azúcar, também é explorada em outra coreografia – quase ao fim do espetáculo – em que os bailarinos atravessam o palco e, simultaneamente, deixam cair roupas, espalham suas vestes pelo chão, como num simulacro de perda. Sim, perder ou deixar cair a própria veste em semelhança a deixar cair, perder as próprias histórias e esquecer-se da própria carne. As vestes, quando esvoaçantes no ar, dão corpo à sutileza do desejo, uma vez que elas dizem muito sobre o não-visível do movimento. Foi esse um dos principais motes da obsessão de Aby Warburg e, posteriormente, de Didi-Huberman pelo estudo das ninfas, respectivamente, na Renascença Italiana e na Contemporaneidade. Para esses autores, o movimento das vestes, nas obras de arte, protagoniza a trepidação de muitos dizeres e, sobretudo, do desejo na arte. No caso das vestes caídas, espalhadas pelo chão, o jogo de inteligibilidade se figura na construção da imagem de perda e de abandono. A veste que cai ganha o simbolismo da família que se dilacerou, do amor que se foi, do pai que nunca mais voltou, do filho que morreu, da avó que ficou esquecida, do desejo que foi silenciado, do sonho que nunca se concretizou. As vestes, como fragmentos da memória e do corpo, simulam uma tendência que as coisas e as pessoas amadas têm em pender para o chão. Essas imagens assemelham-se àquelas que, diariamente, encontramos nos noticiários, oriundas de conflitos entre territórios, como os embates vividos por haitianos, por mexicanos, por venezuelanos, na contemporaneidade. Na sequência dessa coreografia, as tensões evocadas nesse jogo de vestes caídas ganham outra dimensão, quando os bailarinos encenam o ato de vestir uma das bailarinas com essas vestes caídas. A cena se desenvolve num clima de humor e a sugestão imagética que fica é a de que as ruínas, os panejamentos caídos podem, também, fazer parte de um novo desenho, uma nova composição. Nessa parte da coreografia, a bailarina com as vestes sobrepostas movimenta-se como quem se desloca com os fragmentos de uma recomposição. Estaria aí a sugestão de menos divisas e mais partilhas entre povos vizinhos? As vestes, de símbolo da perda irremediável do humano, tornam-se as vestes da uma partilha e passam a simbolizar a ideia de que os fragmentos de uma vida podem se juntar à experiência humana nos campos da sensibilidade, das sobrevivências e da emoção.
A partir dessa teia de ritmos, temas e tensões, o espetáculo Azúcar, do Grupo Sala B, propõe uma elaboração estética, seriamente articulada dentro de uma visão política e sensível às intensidades humanas da contemporaneidade. Um baile de azúcar e de afetos, um movimento complexo, com o tempero da sensualidade e os contrafluxos das relações humanas, numa atmosfera essencialmente latina.
Foto de Mariana Rettore
** Este ensaio foi produzido a partir do espetáculo Azúcar, do Grupo Sala B (visto no Teatro do Corpo, em 19/10/2018 – espetáculo de estreia – Belo Horizonte); Crédito das fotos: Mariana Rettore (disponíveis em: https://www.facebook.com/grupodedancasalab e no Instagram Sala B)
Ficha técnica:
Direção e concepção: Fernando de Castro
Coreografia: Fernando de Castro com participação colaborativa de todo grupo
Assistente de coreografia: Vanessa Liga
Música: diversos autores latino-americanos
Bailarinos: Alice Machado, Amanda Ferreira, Fabrício Augusto, Gabriel Engracio, Michele Faria, Robert Henrique, Roberta Terra, Ciro Melgaço
Figurinos: Pablo Ramon
Cenografia: Fernando de Castro e André Brandão
Iluminação: Átila Gomes e Fernando de Castro
Projeto gráfico: Pedro Veloso
Divulgação: Alice Machado
Técnico de palco: Átila Gomes
Fotos: Mariana Rettore
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa Moderna: ensaio sobre os planejamentos caídos. Trad. António Preto. Lisboa: KKYM, 2016.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? Trad. Cecília Ciscato. São Paulo: Editora 34, 2016.
[1] Fernando de Castro é ex-bailarino e um dos fundadores do Grupo Corpo. Também participou da fundação da Escola do Corpo, onde atua como diretor.
Joelma Xavier é professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET/MG, campus Belo Horizonte. Atua nos campos de Pesquisa de Teoria da Literatura e de Literatura Comparada, especialmente em Literatura, outras Artes e Mídias.