por Luciana Romagnolli
“Desmoralizar a teatralidade para salvar o teatro”: foi essa a operação que o crítico Luiz Fernando Ramos identificou na obra de Roberto Alvim e que nos permite pensar sobre os caminhos abertos pelas dramáticas do transumano, propostas pelo diretor e dramaturgo. Por salvar o teatro, entendamos restituir sua potência, aparentemente perdida num mundo hiperespetacularizado. Salvar o teatro, então, seria devolver-lhe uma função singular e urgente: a de ampliar o campo do sensível criando formas distintas de habitar o mundo, de perceber o tempo, o espaço e o ser.
Quanto à teatralidade, ela tem seus elementos reduzidos à raiz, ou seja, radicalizados em um desenho de cena condensado e econômico, que valorize a emergência de cada elemento. “Desmoralizar”, então, toma o sentido de desencorajar e diz respeito a uma recusa à grandiloquência da teatralidade (ao espetáculo). Mas diz também sobre uma recusa à moral, ou seja, aos princípios da “boa conduta” que conformam nossa experiência humana dentro do extrato da cultura e da civilização, gerando mal-estar e culpa pela supressão dos instintos “baixos”.
Tem-se visto, como recorrência em parte das obras gestadas no Núcleo de Dramaturgia do Sesi, sob coordenação de Alvim, nos últimos três anos, a construção de ficções em que operam impulsos não domados ou inibidos pelo ego, em uma espécie de busca por uma ontologia do ser que escape da natureza profundamente moral da humanidade.
Em “Satan Circus”, peça que abriu a terceira edição da Mostra de Dramaturgia do Sesi-Teatro Guaíra, o dramaturgo Paulo Zwolinski revisita um território em que a pulsão de morte corre livremente – algo que já se via, por exemplo, em “Gafanhoto”, seu texto anterior. Essa morte que, embora certa, permanece intocada nos meandros de nossa cultura, senão por objetos geralmente encaixados no espectro do gênero do terror. Pois é justamente uma experiência de terror, porém liberta de condicionantes de gênero, que se faz presença no trabalho dirigido por Eduardo Ramos.
Bloqueadas ainda as imagens pela escuridão, a dramaturgia sonora desterritorializa o espectador nos instantes iniciais da peça. A sequência de notas e ruídos evoca algo monstruoso. À medida que as luzes do palco se acendem, a cenografia remete a uma arquitetura circense pelo desenho dos focos presos a fios de luz. Só então iluminam-se os corpos dos atores, um a um, dispostos em quatro distintos níveis de altura. Um circo mórbido e imóvel sugerido num palco-tela: um espaço de gênese, onde a presença de cada elemento é inaugurada no instante em que emerge à luz.
Zwolinski revisita também o espaço de confinamento, onde amor, poder, desejo e morte constituem as linhas do quadro abstrato, e as imagens visuais, sonoras e linguísticas evocam um mundo apenas parcialmente reconhecível, adentrando zonas obscuras. O orgânico confronta a possibilidade de tornar-se inanimado; o toque é desejado como ação humanizadora – ainda que se converta em mordida, reconciliando pulsões de vida e morte.
As vozes evocam canibalismo, cárcere e tortura, morte e ressurreição. São mediadas por relações de gênero determinadas (o homem e a mulher), num diálogo nem sempre convergente e discernível, mas cujos ecos sobrepõem sentidos possíveis, desenhando uma situação de terror específica ao mesmo tempo em que aponta para uma condição mais geral do humano. “Nós, agora, somos a humanidade”. “A vontade de morrer já passou”. Um terror primitivo, ontológico, do ser não apaziguado pela civilização.
O homem e a mulher coabitam com figuras-espectros situadas num plano mais elevado, o menino-demônio sentado sobre o balanço suspenso e uma segunda mulher cujo corpo prolonga-se além das medidas humanas, ambos de forte poder imagético e simbólico. Seus rostos recusam o regime corrente de expressões faciais, bloqueando parte das performances culturais adquiridas, que conformam nossos modos de ser, agir e experimentar o mundo.
As atuações então investem em instáveis modulações de voz, para que as palavras instaurem um mundo – mais do que representem ou fechem sentidos. Contudo, esse difícil trabalho exigido dos atores por vezes ainda soa mais calculado do que corporificado. O potencial de abrir sentidos e desestabilizá-los realiza-se sobretudo com o ator Nathan Diego Milléo, cujo complexo desenho de intenções e tonalidades cria uma voz “povoada” de presenças, sentidos, carnalidades.
As relações intersubjetivas subjacentes em todo texto, apesar do isolamento das figuras, eclodem quando o toque entre o homem e a mulher finalmente acontece, acompanhado de luz e som intensificadores da emotividade do ato. Um ato no qual a humanidade parece renascer. Na ruptura brusca da cena, contudo, a música escolhida destoa do que foi construído até então no sistema formal justamente pelo caráter de reconhecimento cultural e emotivo que oferta.
Por fim, a ressurreição evocada pelo texto dá-se somente pelo conteúdo da fala, sem que transubstancie corpos, sons, cena. Esta, cumpre um destino circular, retornando ao estado inicial, donde pode-se pensar a ressurreição não como transformação, não como transcendência, mas como eterno retorno.
*Espetáculo visto em 02/12/2014, na Mostra de Dramaturgia do Sesi – Teatro Guaíra.