(comentário crítico acerca do trabalho Anti-Antígona do Coletivo [conjunto vazio], assistido em 25 de junho de 2023 em Belo Horizonte/MG).
– por Mário Rosa –
O trabalho performativo Anti-Antígona do Coletivo [conjunto vazio] apresentado no mês de junho num terreno desocupado no bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte, traz alguns elementos interessantes para pensarmos questões no campo da política e das suas figurações. Entre eles, destacam-se: momentos de mobilizações sociais, comentários via imagem de expectativas de transformação (os tais horizontes cada vez mais restritos), algumas evocações históricas de acontecimentos recentes no Brasil e na cidade e algo que é próprio de uma estranheza pela forma do encadeamento de ações e das materialidades utilizadas (sons, imagens, presenças, espacialidades). Desta, na falta de outra palavra, estranheza, há algo que é possível perceber em outros trabalhos do [conjunto vazio] no que se refere a uma potência do negativo, em que a mobilização dos atuantes opera num jogo de esvaziamento e negação da experiência de fruição do teatro, ou algo próximo desta modalidade artística, trazendo, em certa medida, um dissecamento e esgarçamento da cena a partir da sequência de ações performativas.
Assistimos neste trabalho, à distância, um movimento quase sempre coletivo que se movimentam numa presença coreopolítica[1] de desenterros, descartes, mobilizações e evocações. Armam-se e desarmam-se em presentificações que carregam uma memória de gestualidade de levantes, de experiências de mobilizações recentes, e de algo que constitui expressividade pela agência dos atuantes e utilização dos objetos. Nesta perspectiva, parece sondar o passado, o que está aparentemente soterrado, mas não morto, e o que talvez precise morrer, seja certa visão do heroísmo ou símbolos de experiências de emancipação social que, na visão dos que apresentam um cortejo de exposição e descarte, mostraram seus limites históricos.
E por falar em História, eis que ele se apresenta citado, aludido, revirado, nas linhas e entrelinhas: 2013. Junho, julho, agosto… Longe das mitificações, ele retorna talvez como enigma e registro de um acontecimento: do concreto das lutas, da complexidade de movimentos que não se reduziram a um mês ou a ação de um grupo, das brechas de possíveis no chão da História, da articulação entre o presente e as experiências fulgurantes do passado que animaram as mobilizações. E também como lembrança das contradições de posições e lutas de governos refratários aos levantes e as consequências imediatas de conservação do Estado, com sua máquina de controle e morte. Sim, a queda. Aquilo que não se pode esquecer. A morte, não como banal imagem ou metáfora.
O trabalho apresentado a partir de um conjunto de ações tem algo que diz sobre limites, sobre impasses, sobre fracassos, sobre desenterrar os mortos. Crise e crítica. E desta perspectiva, na estranheza árida da cena, temos Antígona (no trabalho ela é A-), personagem clássico da tragédia grega que se recusa a seguir a determinação do rei Creonte e insiste em enterrar o irmão morto em uma guerra fratricida. Antígona, em que o gesto de recusa foi analisado por muitos autores e a partir de várias perspectivas, seja pela sustentação de valores ancestrais comunitários ante as leis do Estado ou pelo impulso do desejo que não se negocia, é figura de uma sequência de tragédias que não começa com ela, mas que tem nela um ponto determinante na trilogia tebana de Sófocles.
Em Anti-Antígona, há a proposta de utilizar fragmentos do texto clássico com a intenção de confrontar a ideia e o lugar desta personagem na história e performar, a partir da associação com outras imagens e textos, o fracasso (ou a inversão) do gesto individual e a morte do agente trágico. Desenterrar os mortos, portanto, inquiri-los e contar com eles, relativizar o sacrifício e seguir o movimento que tenta ensaiar a não pacificação.
Anti-Antígona articula a presença da personagem na sua dimensão trágica, distante do drama, com o movimento do coro mascarado e quase sempre visto à distância. Eles questionam a revolução, esboçam o preparo para o confronto e a ofensiva. Tem algo de espectral no trabalho, pela a sensação de um manejo com o passado, na seriedade e na ironia, que lida com os impasses, com o esvaziamento entre as ações e na sua própria constituição, onde o o que fazer? é muito mais que uma frase historicamente situada.
Fotos de Barbara Eliza
O que acima foi comentado são impressões de uma proposta que não tem a intenção de narrar e construir uma história. A elaboração de sentidos, se assim podemos dizer, se dá pela articulação das imagens, ações e textos. E há muito que se considerar de uma produção de sensações e ideias nesse jogo aproximativo e evocativo, naquilo que atrita pelos elementos, imagens e movimentação do coro + A- em cena. Nesta perspectiva, percebemos que há aspectos que colaboram para uma força produtora de distância, desconforto e estranhamento, como a espacialidade, o som, visão das ações e a relação com quem está assistindo.
Como comentado no início, o trabalho foi apresentado num espaço desocupado entre prédios no bairro de Santa Efigênia, região centro-sul de Belo Horizonte. É constitutivo do trabalho seu uso no entre prédios, no entre e à distância das especulações de empreendimentos imobiliários e das disputas na cidade que as ações performam ou relembram de modo crítico. Ali se encontram os atuantes (memória, negociação e alguma segurança pacificada para ação acontecer): em blocos, em conjunto, na constituição de um grupo de mascarados que evocam as ruas, a cidade, o junto, o confronto. Distanciamento/estranhamento: Brecht Block. Coreografam os fogos, a força da revolta, os lances dos coquetéis molotovs e pedras.
Para quem? Com que interação ou intervenção? É só memória? Quem é o alvo agora?
Assistimos ao ritual do ordenado e do insurreto da revolta com, novamente, distância e nas tentativas de juntar as imagens que dizem respeito à especificidade de 2013 em Belo Horizonte, a crise e o questionamento de uma tradição da esquerda marxista-leninista-maoista…, a imagem em negativo de A- com a pá na pedra. Tudo entre histórico, o plágio e o que parece estar entre e junto às imagens: o fogo, ou a faísca que não incendeia. Talvez daí a insistência deste texto ao falar de negatividade naquilo que discursa e que causa desconfiança e estranhamento. Um estado de instabilidade intencionado, sem brechas para o riscos e o imprevisto de uma intervenção, que nos faz seguir na montagem de associações e de sentido, assim como o desconforto que é aliado ao impasse e à recusa.
O trabalho performa o que se ouve em fragmentos, o que se vê de longe, o que é para comunicar e o que é para se manter numa zona de indistinção. Está tudo, de algum modo, seguindo em continuidade nas formas radicais expressivas em que a opacidade, o fracasso, o disfarce e a recusa ao diálogo estão em jogo. Um jogo que às vezes parece se fixar no impasse e apontar para a redução dos nossos horizontes. Ou, assumindo aqui algum otimismo, ser a exposição de que há a necessidade ou o desejo de revirar a terra e confrontar nossos fantasmas para que, talvez, estejamos mais preparados para uma política do chão à altura de um imprevisível Acontecimento.
FICHA TÉCNICA
Realização: coletivo [conjunto vazio]
Encenação, dramaturgia e plágios: Paulo Rocha
Co-criação: Bramma Bremmer e Caroline Cavalcanti
Assistência de direção, direção de arte, design gráfico e figurino: Bianca Perdigão
Iluminação: Caroline Cavalcanti e Paulo Rocha
Trilha Sonora: Sentidor
Performers:
A- – Caroline Cavalcanti
Brecht Bloc – Bramma Bremmer
Carlos Augusto Nogueira
Elis Marques
Matheus Carvalho
Matheus Cherem
Nanauê
Paulo Rocha
Pedro Mozanny
Rafhael Braga
Tiago Ruas
Thiago Cunha
Ugo Costa
Voz – Cristiano Peixoto
Operação de som: Bea Mergener
Operação de luz: Bianca Perdigão
Consultoria em Iluminação: Cris Diniz
Assessoria de Imprensa: Bramma Bremmer
Fotografia e Stills: Bea Mergener
Assistentes de produção: Gabriela França e Hugo Gonçalves
[1] LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. (2011) 2012.
Como dançar uma dança que muda lugares mas que ao mesmo tempo sabe que um lugar é uma singularidade histórica, reverberando passados, presentes e futuros (políticos)? Como promover uma mobilidade outra que não reproduza a cinética do capital e das máquinas de guerra e policiais? Como coreografar uma dança que rache o chão liso da coreopolícia e que rache a sujeição dos sujeitos arregimentados pela coreopolícia? Dançar para rachar o chão do movimento, dançar no movimento rachado do chão, rachar a sujeição (pag. 16).