– Por Soraya Martins –
Foto de Anelizze Tozetto/Festival de Curitiba
Esse texto/fala, eu escrevi em ocasião da minha participação no Seminário “Crítica e Criação em Crise”, que aconteceu no Teatro Universitário da UFMG entre os dias 5 e 7 de junho de 2018. Fui provocada pela Júlia Guimarães, pesquisadora, crítica e organizadora do seminário (e eu gostei muito) com a seguinte pergunta: como a arte e a crítica colaboram para construir a esfera pública, pensando na instauração de uma esfera contra – hegemônica, como é o caso, por exemplo, da segundaPRETA, e da importância da crítica para sua construção/reflexão/repercussão?
Eu não vou tentar responder essa pergunta, mas sim tecer uma reflexão a partir do lugar de onde enuncio e da minha escolha de escrever críticas, sempre que posso, sobre trabalhos produzidos e realizados por artistas negros; eu vou refletir e expandir a partir da minha experiência, tanto teórica (por meio das minhas pesquisas de mestrado e doutorado) quanto prática, de atriz-pesquisadora-crítica que coloca a mão e o corpo na massa e tenta atuar (aqui no sentido amplo da palavra) com astúcia e habilidade na luta antirracista, nas fissuras e brechas de uma sociedade que ainda tem um entendimento torto sobre a produção artística negra.
De onde enuncio: escrevo reflexões e expansões tanto para o site Horizonte da Cena quanto para o Projeto segundaPRETA, um projeto de artistas negras e negros da cidade de Belo Horizonte que se uniram no intuito de mostrar seus trabalhos e eu, muito antes desse projeto, com ele e para além dele, fico tentando formular pensamentos estéticos-críticos sobre as várias possibilidades de se pensar a cena contemporânea negra, sempre no plural.
Fazer experimentos cênicos e crítica que tentam fissurar/borrar/causar atritos e rupturas, mínimas que sejam, no âmbito da esfera pública hegemônica, como é o caso dos escritos tecidos a partir dos experimentos cênicos da segundaPRETA e dos próprios experimentos ali presenciados, por exemplo, é um exercício que nos obriga a analisar, produzir e estar disponível para outras possibilidades éticas, subjetivas e estéticas em arte.
Pensando na “função” que desempenho e que, desde do início, me interessou em tal projeto, que é a de escrever reflexões e expansões a partir do que foi apresentado, penso como esse escritos são, de um lado, a possibilidade que tenho de exercitar uma escrita criativa, errar, colocar em debate, me autocriticar e, de outro lado, o lado mais interessante de se colocar aqui, como eles- esse escritos- não ignoram as questões em torno da autoria e da estética que são consideradas enquanto discurso; não ignoram, de forma alguma, a obra enquanto feminista, lgbtqi+, dissidente, a obra como negra(s).
Nesse sentindo, produzir cadernos com imagens e críticas de todas as cenas que já passaram na segundaPRETA (esses cadernos são motivados, sobretudo, pelas nossas vontades, pela vontade de poder performar/escrever, que vai além de poder emitir palavras… é poder existir. Os cadernos são um pouco das nossas existências) é um ato, primeiro, de registro, pois sabemos que ao entramos nas bibliotecas, museus, galerias – todos lugares em que os nossos corpos não ocupam (ou quando ocupam é de uma maneira torta, folclórica, que invoca uma cidadania lúdica – como coloca Conceição Evaristo em uma entrevista lembrando Jurema Batista-, que diz apenas da música, do futebol, da culinária), não estamos ali contando nossas histórias como sujeitos. Invertemos essa lógica ao tecermos letras em primeira pessoa com as publicações dos cadernos com os textos e as imagens. Como ato segundo, as imagens e críticas colocadas tanto nos cadernos quanto no site tentam construir um pensamento sobre as várias possibilidades de se pensar as cenas negras, sempre no plural, um pensamento que vai contra o entendimento raso de que a produção artística negra se associa somente à religiosidade de matriz africana ou a males sociais, colocando muitas produções num folclore estático e histórico e criando um essencialismo negro, dando arcabouço, como diz o crítico Diego Pinheiro, para um negro religioso ou um negro flagelado. “Não há aqui um pingo de retidão crítica”.
O que me interessa a partir das críticas, do que fica como registro, pensando no lugar de construção de narrativas contra-hegemônicas, de colocar em cena narrativas singulares de trabalhos e corpos subalternizados, que habitam nas e as bordas, pensando borda como lugar único e potente e de recriação, é pensar/criar espaço para novos saberes e novas narrativas; me interessa submergir numa performance que busca mudar padrões do saber e do poder.
Todo esse pensamento vale também para a minha atuação como crítica no Horizonte da Cena, que não tem um recorte racial. Escrevendo tanto pela segundaPRETA quanto pelo Horizonte e/ou para revistas e seminários, o que me parece mais interessante é trazer para esses lugares da escrita a partilha do sensível, das fissuras e ressignificações estéticas das nossas (negras) fúrias, melancolias, dores e traumas, que entram na disputa por narrativas e estéticas outras; por emergência do novo de onde se pode refletir sobre subjetividades, singularidades, quereres, imposições, gênero, questões raciais e sociais, afetos correlatos e também construir espaços e relações que podem reconfigurar, material e simbolicamente, um território comum sem ser igual.
O que me parece também bem interessante é pensar nos corpos da negrura, mais uma vez com tudo o que eles representam e tudo que eles ainda podem representar para além de uma leitura somente política desses corpos em cena- de extrema importância e urgência. Penso, sobretudo, numa leitura estética desses corpos mediada pela criação. Essa inversão para o público em geral, para o público de teatro, para os colegas críticos negros e não-negros, para o imaginário coletivo pautado no essencialismo negro, é importantíssima: uma desconstrução para se construir de novo, e de novo, por meio de outras referências, subjetividades, saberes e organizações. E para além da caixinha de cidadania lúdica em que somos colocadas. Podemos sim pensar em futebol, culinária e música, mas podemos também pensar em produção de conhecimento, em estética, num pensamento em relação e fissurado sobre o teatro negro, na sua pluralidade e liberdade de ser sem amarras.
Nesse exercício de pensar uma crítica/reflexão/expansão contra – hegemônica a partir do recorte racial, por exemplo, surgem novas formas de estar negras e negros no mundo, de estar e ser negras e negros em cena. Nesse sentido, a crítica abre, e deve abrir, para lugares outros na organização do sensível, estabelecendo outros discursos e a possibilidade mesma de elaboração de uma negro-perspectiva que potencialize nossas produções estéticas.
Nesse lugar, eu escolho apoderar-me dos canhões, desmontá-los peça a peça, refazê-los e extrair deles a parte que nos agride. Escolho elaborar as guerras, as violências e o racismo em linguagem fabular e de recriação das nossas histórias a partir da minha íris preta.
Assim, os escritos abrem frestas para pensarmos outras possibilidades de sensibilização por e através do teatro e da escrita. Nesse sentido, a repercussão dos escritos é bem complexa e, ao mesmo tempo, animadora. Somos cidadãos, artistas e espectadores ao mesmo tempo. E essa relação se confunde porque é forjada na e a partir de uma mesma memória traumática (que ressignificada, se transforma em potência criadora de nós mesmos e das nossas feituras) que nos aproxima e, ao mesmo tempo, nos distancia. É nas fissuras que nascem desse jogo de aproximação e distanciamento que surgem novas formas de sermos sujeitos negros no mundo.
A crítica, aqui, aparece então com um ato de criação que passa do “criticar é por em crise” para “criticar é (re)criar”, “criticar é curar”, como processo de fabulação. Formas outras de habitarmos o mundo.