– por Felipe Cordeiro
Esta crítica integra a cobertura da 16ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH) e foi escrita a partir do espetáculo “Papers!”, do grupo espanhol Xarxa Teatre.
O grupo espanhol Xarxa Teatre abriu a 16ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte com o espetáculo “Papers!”. A escolha de um espetáculo de rua para abrir um festival desta envergadura é, por si só, uma decisão que merece reflexão. Qual é a significância do espetáculo de abertura no contexto de um festival?
Ao assistir à peça, em muitos momentos pensei sobre o que torna um espetáculo de abertura memorável em um festival. Lembro-me do Grupo Galpão lotando a Praça do Papa em 2012 com milhares de espectadores arrebatados pela reestreia de “Romeu e Julieta”, talvez a peça mais emblemática do teatro mineiro e um marco na produção nacional. Penso na grandiosidade dos trabalhos da companhia francesa Générik Vapeur em suas participações no FIT; na Companhia Off, abrindo a edição de 2016 com Les Girafe (França); nos shows de Linn da Quebrada, Anelis Assumpção e nas centenas de pessoas em cena na abertura de 2018. Vislumbro ainda a magnitude de “À Noite Sonhamos”, apresentado pelo Grupo Oficcina Multimédia no evento Noite Branca, no Lago dos Marrecos do Parque Municipal, em 2012. Embora não tenha aberto o FIT, essa apresentação teria cumprido essa função com a inventividade cênica que Ione de Medeiros produz como poucos, fazendo muito com quase nenhum financiamento ou incentivo. Isso sem atravessar o Atlântico, apenas a Contorno.
Em 2014, a jornalista e crítica Luciana Romagnolli já questionava no jornal “O Tempo”: “Nos últimos anos, o Festival Internacional de Teatro, Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH) passou pelas mãos de três equipes diferentes e acumula problemas financeiros. É nesse contexto instável, de descontinuidade, que o principal evento do teatro mineiro chegou ao seu 20º ano, cercado por ponderações.” De lá para cá, o cenário precarizou-se ainda mais. Na edição de 2014, comentada por Romagnolli, foram apresentadas 18 produções internacionais, 12 nacionais e 25 locais. Em 2024, temos um número reduzido de apenas 3 espetáculos internacionais (sendo dois chilenos, o que apresenta pouca diversidade), 8 espetáculos nacionais (incluindo “O Fim é Outra Coisa” com as mineiras Zora Santos e Grace Passô nas funções principais de idealização, direção, dramaturgia e atuação) e 12 locais.
Diante desses dados e dos sucessivos ataques à cultura que o país sofreu desde 2016, pergunto: qual é a força que um espetáculo possui na abertura de um festival? Que tom ele deixa para o que virá a seguir? Sendo o momento que mais reúne espectadores, o que poderia ser oferecido? A beleza cenográfica de girafas gigantes rompendo o cinza da cidade? A virtuosidade de Générik Vapeur? A profundidade estética do Grupo Galpão e do Oficcina Multimédia? Não adianta conjecturar. Temos, diante dos nossos olhos, o espetáculo “Papers!”, portanto, vamos a ele.
Ao criticar um trabalho de rua como “Papers!”, é essencial considerar sua acessibilidade e a natureza inclusiva do teatro de rua, que é realizado em movimento e ao ar livre. Este formato contrasta com o palco tradicional, desafiando a ideia de que o “verdadeiro” teatro só pode ser feito em espaços específicos. Patrice Pavis destaca que o teatro de rua busca alcançar públicos que normalmente não vão ao teatro, promovendo uma ação sociopolítica e uma convivência provocativa na cidade. A crítica deve, portanto, reconhecer a profundidade desses espetáculos, que utilizam o espaço público para criar uma convivialidade cênica, dialogando com um público diversificado, atendendo às expectativas de variados espectadores, mas também buscando partilhar certas formalizações estéticas com a audiência.
O grupo Xarxa Teatre não utiliza texto dramatúrgico em suas apresentações, facilitando a tradução cultural de suas obras para diferentes países. Contudo, é importante lembrar que obras puramente físicas, sem texto, podem enfrentar dificuldades de tradução cultural, semelhantes às tradições coreográficas e ritualísticas africanas e ameríndias. Nem tudo é facilmente decodificável, pois nem tudo é semiotizável. No caso do Xarxa, no entanto, o grupo se apresentou em mais de 40 países ao longo das últimas quatro décadas, levando suas produções cênicas a uma audiência global sem a possível barreira da linguagem.
“Papers!”, especificamente, é uma provocação visual que nos desafia a confrontar questões da imigração, tão caras à contemporaneidade, por meio de uma estética tragicômica, sarcástica e intencionalmente risível. Ainda assim, esse objetivo nem sempre é alcançado, especialmente em momentos em que o grupo não encontra um diálogo direto e caloroso com a plateia, como ocorreu na abertura do FIT, na qual frequentemente os atores não recebiam o retorno que, em algumas cenas, convocavam.
A peça, apresentada na área externa da Funarte-MG, transformou o espaço cercado por grades em um símbolo das fronteiras que separam não só países, mas também pessoas. As imagens maximizadas, que oscilam entre o absurdo e o banal, revelam uma narrativa sem palavras sobre a brutalidade do poder, do capital e das relações humanas. A dependência dos papéis, tanto como documentos, quanto os papéis sociais que cada cultura estabelece ao conformar suas normatividades sociais, é o tema central explorado na peça.
Além disso, a obra também aborda as estruturas formadas para se ganhar dinheiro ilegalmente, revelando uma realidade cruel na qual os imigrantes, ao ingressarem no mercado de trabalho, frequentemente se veem envolvidos em organizações informais de exploração. Nesse contexto, os estrangeiros são muitas vezes utilizados como peças em um jogo financeiro, no qual os abusos se perpetuam, com aqueles que chegam primeiro explorando aqueles que chegam depois. Isso inclui a exploração no mercado mafioso de sexo e o tráfico de prostituição, perpetuando uma situação na qual muitas pessoas se encontram sem acesso à cidadania e aos direitos básicos.
A estética de “Papers!” é carregada de simbolismos. Por meio do uso de elementos cotidianos, como carrinhos de supermercado e tendas improvisadas, a peça começa mostrando migrantes em trânsito, desalojados e em busca de um futuro melhor. Os personagens, através de ações e sons, satirizam os conflitos sociais gerados pelos regimes de soberania e pelo dinheiro. A utilização do fogo em um tambor, os sons de animais silvestres e as músicas tradicionais de diferentes povos e culturas criam uma atmosfera que nos transporta para as nuances das civilizações.
A montagem das barracas e, posteriormente, a verticalização das pessoas e das estruturas metálicas, bem como o aumento da trilha sonora, refletem a evolução e a tragédia de uma nova civilização, marcada por agressões, roubos e brutalização. A utilização cada vez mais constante do fogo faz com que o espaço cênico fique impregnado de fumaça, assim como nossas cidades. Esses elementos cênicos não apenas ilustram, mas também amplificam a narrativa da peça, trazendo à tona questões sobre as dinâmicas de poder, a alienação social e a degradação ética e moral nas relações humanas.
A peça culmina em uma grandiosa roda de ferro com um cifrão em chamas, simbolizando a hegemonia do capital. O uso de elementos circenses e a estética da gambiarra reforçam a crítica ao consumismo e à manipulação midiática. No entanto, apesar das imagens maximizadas, pertinentes ao espaço público, falta uma certa magia, algum ponto de inflexão cênica, um recurso criativo que pudesse desestabilizar a experiência sensorial e reflexiva do espetáculo. Tudo que está posto em cena segue exatamente o que foi microfonado antes da encenação, numa explicação didática do que se veria a partir dali. Não há espaço para o inesperado ou mesmo para diferentes pontos de vista sobre o que é apresentado. Apesar da relevância dos temas abordados, a peça os trabalha de maneira superficial, com uma abordagem maniqueísta e por vezes óbvia.
Outro ponto crítico foi a escolha do local para a apresentação. A instalação da mesa técnica bem no centro da frente do espaço cênico prejudicou a visibilidade, especialmente dos planos baixos, crucial para a compreensão do espetáculo. A peça, com sua narrativa visual intensa, exige um espaço que potencialize suas imagens e metáforas, o que não foi plenamente alcançado nessa apresentação. O desvio dos olhos para a arquitetura que emoldura a cena ficou a cargo apenas de alguns espectadores que assistiram ao trabalho em cima de uma ponte, fora dos domínios da Funarte-MG. A produção e o grupo não contemplaram elementos que dialogassem com o ambiente circundante, como já ocorreu em outras produções do Xarxa Teatre.
Em suma, “Papers!” é um espetáculo que, ao abordar a temática da migração humana, os abusos do poder e as origens das tragédias civilizacionais, convida um público diversificado a refletir sobre as injustiças sociais e as dinâmicas do capital. O coletivo Xarxa Teatre, com sua estética baseada na tradição popular espanhola, seu teatro festivo, linguagem visual e pirotecnia cênica, reafirma o potencial do teatro de rua como um espaço de resistência e transformação social, mesmo que por vezes tropece na formalização estética e simbólica de alguns tópicos e contextos. Ao abrir o FIT-2024, “Papers!” deixa margem para reflexões sobre a intensidade e a inovação necessárias nesse momento (sempre) crucial do evento.