— por Henrique Saidel–
Crítica a partir do espetáculo/intervenção “Batucada”, de Marcelo Evelin (Brasil).
A primeira coisa que me vem à cabeça, quando penso em escrever sobre Batucada, de Marcelo Evelin, é a impossibilidade de escrever um texto imparcial e tranquilo, de análise clara e objetiva, e que não seja crivado de sensações e interpretações atravessadas pelo momento político atual no Brasil. Os tempos são de tensão e conflito – políticos, sociais, culturais, afetivos –, e não permitem ninguém se fazer de morto. E não, eu não tenho sangue de barata. Nem eu, nem os artistas que atuaram no trabalho apresentado na Mostra Contemporânea da vigésima quinta edição do Festival de Curitiba.
Confesso que, no caminho de casa até o Espaço Cult (casa noturna no centro histórico da cidade, onde o espetáculo foi apresentado), eu estava curioso e um tanto tenso. Sou amigo de vários dos artistas do elenco, e acompanhei indiretamente alguns dilemas e questionamentos que surgiram durante o processo de ensaios[1], sem ficar sabendo, no final, as conclusões e resoluções adotadas. Grosseiramente falando, a principal ação coreográfica de Batucada é o ato de bater panelas e outros objetos metálicos similares, gesto coletivo que estrutura todo o trabalho, em suas diferentes modulações.
Criado em 2014, contudo, Batucada não previu (e nem poderia prever) que o gesto de bater panelas em grupo ganharia, em 2016, um significado radicalmente diferente daquele que vigorava até então. Bater panelas, no Brasil de 2016, é ação e símbolo inevitável de uma onda de manifestações populares de insatisfação contra o governo federal e contra – de uma forma tão vaga quanto confusa – a corrupção. Uma onda de manifestações que, mesmo que não se assumam explicitamente como tal, ecoam valores e anseios de direita.
Este era o grande desafio de Batucada: como bater panelas (mantendo a ação que conduz o espetáculo, desde a sua concepção) nesse contexto social específico e amplamente conhecido? Como bater panelas sem compactuar, necessariamente, com as posturas e reivindicações das manifestações verde-amarelo pró-impeachment? Como realizar esse espetáculo justamente na semana dos grandes panelaços, e justamente na cidade-estardarte da investigação que dá fôlego aos protestos – na famigerada e caricatural “República de Curitiba”? Como, portanto, influenciar-se pelo contexto e pelo entorno (numa postura estética e ética de abertura e vibratibilidade), sem sucumbir e ser engolido por ele?
Eu poderia desejar e me propor a uma leitura mais fechada, mais focada nos elementos e situações da própria obra, deixando de lado as eventualidades dos acontecimentos atuais, e fruir o trabalho a partir apenas do que ali acontece, sem me influenciar por fatores “externos”. No entanto, durante a caminhada até o teatro e durante toda a apresentação, era impossível não ouvir e reviver em meu corpo o barulho ensurdecedor e declaradamente agressivo dos dois últimos panelaços que aconteceram recentemente no meu prédio e no meu bairro (no centro de Curitiba). Impossível não repercutir a sensação de opressão e acuamento que vivi naqueles momentos, enquanto colocava minha cabeça para fora da janela e gritava, assustado e reativo: “Fora Temer!”, “Fora Cunha!”, “Não vai ter golpe!”. Sim, sou desses. E é este o lugar de onde falo, ao menos, no momento.
Pode ser importante dizer, também, que assisti à pré-estreia do espetáculo, sessão aberta só para convidados da equipe, o que influencia bastante coisa: um público composto majoritariamente por pessoas conhecidas e receptivas; a insegurança e ansiedade de parte do elenco; um ou outro escorregão em questões técnicas; etc. De qualquer forma, o que aconteceu ali, no Espaço Cult, dissipou todo o meu receio e tensão. Logo de início, um espaço amplo e alto, onde centenas de balões de hélio em formato de corações vermelhos formam uma massa de cor e brilho no teto. De cada balão, uma fitinha vermelha desce até a altura das cabeças, formando um cenário flutuante e manipulável, ocupando a área superior do espaço. Como naqueles óleos bifásicos, nos quais as duas cores não se misturam completamente e ocupam porções diferentes da embalagem: a plateia e os balões, quando agitados, misturam-se e desmisturam-se, expondo uma interação heterogênea que não resulta em fusão. A plasticidade do cenário e da iluminação – ela também elemento cenográfico, com seus refletores-objeto – paira sobre todos, abrindo espaço para a movimentação do elenco e da plateia.
Solta na pista de dança do Espaço Cult, a plateia não tem lugar fixo e confortável, não há cadeira ou arquibancada que a salve dos deslocamentos e avanços dos performers. E não são poucos performers: mais de 30 artistas[2] percorrem o espaço por entre a plateia, ora isoladamente, ora em grupo – o óleo, agora, é trifásico (corações, plateia e elenco), numa movimentação ruidosa que exige prontidão e disponibilidade. Os espaços são tomados pelas dezenas de corpos do elenco, e cabe à plateia (também às dezenas) posicionar-se e interagir com isso, sob o risco de ser atropelada ou carregada pelos fluxos que se formam.
O primeiro elemento que me resgata de meu estado eriçado de tensão (depois dos bonitos e amorosos balões, quase bregas, quase pueris), são as máscaras usadas pelo elenco. Cada performer usa uma máscara de tecido preto que cobre todo o rosto, com apenas três aberturas (olhos e boca) contornadas com lantejoulas vermelhas, e um nariz fino e pontudo também vermelho. Black blocs anônimos e preparados para o que vier, os performers não têm identidade reconhecível – ao menos, não essa identidade primeira, 3×4, do rosto e da cabeça. É um grupo grande e ameaçador (numa lógica de repressão e autorrepressão, típicas de sociedades de vigilância e controle, quem não tem identidade a proteger não precisa ter medo de nada, e tudo pode fazer), que carrega nas mãos panelas, frigideiras, latas de tinta, formas de bolo, pratos de marmita, e bastões de madeira. Se é uma manifestação, se é um panelaço, ele é comandado por pessoas que não lembram em nada os “cidadãos de bem” com camisas da CBF. Sinto um certo alívio.
E então começa a batucada. A partir desse momento, presencia-se cerca de uma hora (um pouco mais, um pouco menos) praticamente ininterrupta de bateção de panela e outros objetos metálicos. O som é ritmado e forte, passeando por estilos musicais que vão desde um samba até uma marcha militar, passando por funk e gritos de guerra. Aos poucos, o elenco vai tirando suas roupas, formando uma massa de corpos nus, apenas com máscaras e batuques. Cardume, enxame, bando, vara, manada, matilha, cambada, grupo, coletivo, corpo de baile, elenco, grande elenco: no agrupamento de artistas de Batucada, não há espaço para protagonistas fáceis, para primeiros-bailarinos e stars.
Os corpos nus e mascarados se fundem num único e múltiplo corpo, que se infiltra por todas as frestas. As identidades pessoais – que ainda existem, é claro – são dissolvidas num todo maior, rizoma que se expande e respira e batuca. Dissolvidas e atravessadas sim, massificadas e alienadas não. A materialidade dos corpos (muitos corpos, corpos muitos, conjugados sempre e sempre no plural) é pujante e inescapável, sentida a cada empurrão, a cada esbarrão que mancha a plateia de suor. A cada bunda, a cada peito, a cada pau, a cada boceta, a cada barriga, a cada pé, pernas, braços, mãos, costas e pescoços, vestidos de suor e som, exalando cheiros e vitalidades. E pelos buracos das máscaras, perfuradas por uma humanidade lantejoulada, veem-se bocas escancaradas, cheias de dentes, mas que não esperam a morte chegar.
Uma das características que sempre me chamou a atenção em trabalhos anteriores de Evelin é a persistência. Assumir e persistir: correndo em círculos em Matadouro, pintando-se de carvão e rastejando em De repente fica tudo preto de gente, movendo casas de papelão e cozinhando feijão em 1000 casas (em parceria com o Núcleo do Dirceu). Não sendo refratário, negando interferências, mas assumindo um posicionamento e uma ação, e investindo neles até as últimas consequências. Ações que se repetem e se mantêm durante longos minutos ou horas, explorando todas as possibilidades daquele gesto, que se modifica e se esgarça ao longo do tempo. Uma espécie de ética corporal, atenta a seus próprios princípios e proposições.
Não é diferente em Batucada: se é para fazer som batendo panelas, então bate-se firmemente dezenas de panelas e latas durante uma hora inteira, sem trégua (o único instante de silêncio do espetáculo é também um dos mais eloquentes e ruidosos), até amassar e desfigurar o metal; se é para plasmar corpos em um não protagonista coletivo, então despem-se quase quarenta pessoas sem rosto que dançam furiosamente até a exaustão. Diversões dionisíacas que não estão aqui para brincadeira.
E é essa ética que salva o espetáculo dos panelaços fora-Dilma, e me salva junto com ele. Ao assumir e persistir na bateção de panelas, ao batucar sons e vibrações que contagiam todos os corpos ali presentes (que dançam, correm e desviam), ao fazer música e convivialidade, ao aumentar o volume disso tudo a um nível quase ensurdecedor, Batucada bate no peito e diz: “Essas panelas não são só de vocês! Essas panelas também são nossas! Essas panelas sempre foram, são e sempre serão nossas! Os batuques, os sons das panelas e dos metais, os panelaços e todo e qualquer barulho que emana de nossos corpos, tudo isso é nosso! Tudo isso somos nós!”.
E, se o barulho dos panelaços fora-Dilma é produzido para calar, para amedrontar, para demonstrar ódio, para silenciar o outro que tenta falar (não é por acaso que os panelaços acontecem sempre ao mesmo tempo em que Dilma ou outra voz discordante está falando na TV), o barulho de Batucada é feito para promover a escuta, para estabelecer diálogos, para criar conexões, para tocar o outro que se aproxima. Ambos são barulhos e posturas de combate, de fricção. Mas podemos escolher: afinal, qual combate e fricção queremos para as nossas vidas? Nunca antes na história desse país, uma mesma panela falou tantas línguas e exprimiu tantos significados.
A combatividade de um corpo ético, que resiste e luta, e que também ama. Aqueles balões-corações não estão ali à toa, eles são a materialização (quase brega, quase pueril) de um amor que é também uma forma de luta. O afeto é, cada vez mais, uma força necessária para se sobreviver num mundo cheio de fronteiras, muros, ódios, xenofobias, linchamentos e outros mil tipos de preconceitos e crimes de lesa-humanidade. Ao final de tudo isso, resta a todos apenas sair do espaço fechado do espetáculo, e ir para a rua, que se cobre de corpos nus, deitados de bruços na calçada fria.
Ali, nas pedras pisoteadas do Largo da Ordem, longos minutos carimbam o chão com o suor e o calor daqueles corpos agora silenciosos. A plateia é obrigada a sair por entre os corpos, pisando esse chão devagarinho, e contempla aquele esparrame humano que transborda para a cidade, para o mundo. Dois cachorros de rua se aproximam e farejam aquelas carnes. A lua brilha forte e incentiva a plateia a se desapegar dos balões que roubou do cenário: assumindo-se também como coletivo, a plateia solta seus balões de uma vez, que voam (quase bregas, quase pueris) e somem juntos no céu curitibano.
[1] Em cada cidade onde se apresenta, a produção do espetáculo faz uma convocatória prévia para formar um elenco local (incluindo pessoas que não são artistas, de preferência), que se juntará aos poucos artistas fixos do trabalho. Em cada processo, todos estão em pé de igualdade, ensaiando, (re)criando e se (re)apropriando da proposta da obra, que sempre se atualiza.
[2] Na edição curitibana, performaram 36 artistas: Adolfo Severo, Ailen Scandura, Ailime Huckembeck, Ana Beatriz Figueiredo Tavares, Andressa Santos, Andrez Lean Ghizze, Anita Gallardo, Bernardo Stumpf, Bruno Moreno, Carolina Mendonça, Diego Davoli, Elisa de Oliveira Ribeiro, Erivelto Viana, Fabricio Boliveira, Felipe Steffen, Getúlio Cavalcante, Giorgia Conceição, Gladis Tridapalli, Heliton Cristiano Pinheiro da Silva, Jaciara Rocha, Lauro Borges, Ludmila Aguiar Veloso, Luiz Guilherme de Lima, Marcelo Evelin, Márcio Nonato, Mario Celso dos Anjos, Monique Monne, Raquel Bombieri, Ricardo Moreira, Rubia Romani, Soraya Portela, Valério Araújo, Vanessa Nunes, Vitor Sampaio, Wanderleya Aumê Correia e Wanderson Barbieri Mosco. A ficha técnica completa é formada por: Marcelo Evelin (Concepção, Criação e Direção), Carolina Mendonça e Show Takiguchi (Colaboração artística), Márcio Nonato (Suporte técnico), Frank Sousa (Operação de Luz), Regina Veloso (Direção de Produção), Marco Novak (Produção local), Gui Fontineles e Cristopher Gegembauer (Assistência de Produção), Demolition Incorporada + Kunstenfestivaldesarts (Realização), Festival de Curitiba (Realização local).
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