Texto escrito para o Seminário Palco Giratório dentro da programação da Aldeia Sesc Seridó (RN) que ocorreu no final de 2018.
– por Clóvis Domingos-
Espetáculo Mulheres do Aluá/O Imaginário/RO (Divulgação)
Atuante desde 1998, o Palco Giratório mais uma vez chega em Belo Horizonte trazendo em sua programação uma complexa rede de intercâmbio e difusão das artes cênicas contemporâneas no Brasil com a apresentação de espetáculos, oficinas, debates, ações de mediação cultural e pesquisa de públicos. Compartilho nesse texto-fala minha experiência como mediador no projeto-piloto Mediação Cultural: uma cartografia do Palco Giratório em Belo Horizonte no ano passado. As questões abordadas nesse texto continuam para mim pulsantes e urgentes.
Mediação como criação
“O que me interessa agora, repito, é alinhar e discutir alguns saberes fundamentais à prática educativo-crítica ou progressista e que, por isso mesmo, devem ser conteúdos obrigatórios à organização programática da formação docente. Conteúdos cuja compreensão, tão clara e tão lúcida quanto possível, deve ser elaborada na prática formadora. É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes saberes indispensáveis, que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção. (…) É preciso que, pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado”. (Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, 2002).
Pensar crítica e mediação em artes cênicas, a meu ver, não se dissocia da ideia de se pensar em modalidades de criação. E quando penso em criação, não me refiro apenas ao campo estético e cênico, mas num sentido mais amplo: criação de vínculos, criação de discursividades, criação de possibilidades de espaços de encontro, criação de experiências, criação de um projeto de cidade, criação de saberes e fazeres heterogêneos. Como artista cênico, pesquisador acadêmico, crítico teatral e mediador de ações culturais e educacionais que articulam festivais, instituições, grupos sociais, artistas e espectadores, penso que arte é muito mais do que criação de uma obra. Para mim arte é um projeto político, educacional, social, existencial mesmo, e que envolve escolhas de para quem fazer arte, onde e como.
Na formação do artista, vejo que tais questões são pouco exploradas, sendo a técnica o objetivo mais privilegiado e muitas vezes essa técnica fica restrita a um fazer dentro de uma certa bolha, isto é: para nossos pares, para determinados circuitos e festivais específicos, não dialogando com contextos outros, não se abrindo para realidades diversas, não se interessando em correr o risco de ser criticada por quem não é do meio especializado. Ou então: não querendo abrir mão de um saber ao invés de expor seus meios de produção, o que criaria acessibilidade para outras pessoas. Ações de mediação, de alguma forma, visam acessibilidade, são de natureza democrática, criam aproximações e minimizam distâncias. A mediação é uma rede composta pela ação de curadores, artistas, programadores, espetáculos, críticos, o programa gráfico, a imprensa, os espectadores, tudo isso numa ideia de movimento ou Pensamento Giratório[1].
Na prática de crítica e mediação que exerço, os saberes nunca estão dados a priori, são sempre construídos, reelaborados, tensionados, precisam aceitar o dissenso, a diferença, o acidente, os pontos cegos. Preciso estar sempre despossuído de certezas, a tentativa é permanecer no território das indagações, gostar das incompletudes, perguntar mais do que adjetivar ou conceituar de forma rígida.
Como abandonar as cartilhas e se abrir para as partilhas?
Arte e sociedade ainda que em campos diferentes, possuem fios de dependência e ações de crítica e mediação podem ser gestos que tentam aproximar esses dois campos, criando circuitos de relações:
Em que esse trabalho me afeta ou não?
O que há nessa peça de teatro que dialoga com minha experiência de cidadão e sujeito no mundo?
Por que me emociono?
Por que acho esse trabalho tão estranho?
Por que me sinto confrontado?
Mediação é um trabalho de investigação e de escuta.
O espectador consegue se tornar um co-autor da obra?
Experiências de Mediação
Espetáculo Desastro (BA)/Foto de divulgação
Participei recentemente como mediador do projeto Mediação Cultural: uma cartografia do Palco Giratório, desenvolvido junto ao Sesc MG, em Belo Horizonte, e juntamente a equipe da 7Oito Projetos e Produções (Salvador/BA). O convite para trabalhar como mediador cultural do referido projeto, foi para mim uma excelente oportunidade de aprendizado sobre a importância da mediação em artes cênicas e a investigação das inúmeras e possíveis formas de aproximação entre espectadores, artistas, linguagens cênicas e instituição. De fato, o mediador tem papel fundamental no entrelaçamento de diversos atores sociais, discursos, espaços e compreensões sobre o fazer artístico. Artistas e instituições acreditam que uma vez oferecendo seus trabalhos ao público, o sucesso da empreitada já está garantido. Sejamos honestos: artistas precisam de público e quando esse público não comparece ao nosso espetáculo, o que fazer? Por que então não procurá-lo, oferecer nosso trabalho, programar uma conversa? Penso que os maiores interessados somos nós mesmos. Confiamos demais nos meios virtuais e jornalísticos de informação e comunicação e não valorizamos o trabalho de corpo-a-corpo.
No caso do projeto Mediação Cultural: uma cartografia do Palco Giratório, considero essencial que o mediador seja da área das artes cênicas e mais, que possa desenvolver ampla visão do fenômeno teatral, para além de questões específicas de linguagem (entendendo os elementos cênicos também constitutivos em outras áreas como as manifestações visuais, sonoras, plásticas etc.), e num contato com os diferentes territórios geográficos e sociais da cidade. Pensar numa democratização e acesso aos bens culturais exige reconfigurar questões de pertencimento à cidade, mobilidade urbana, projetos de ordem pública. Os espectadores têm desejo de arte, mas muitas vezes se veem impossibilitados de exercitar esse direito.
Quero compartilhar uma experiência: um grupo de alunos de uma escola municipal veio assistir a um espetáculo (Desastro/BA) presente na programação do Palco Giratório, para realizarem um trabalho escrito para a aula de artes. Esse grupo de jovens não fazia parte da agenda de mediações do projeto, foi um encontro inesperado na porta do teatro. Me aproximei do grupo e quis saber quem eram, onde moravam, como souberam do evento e o que esperavam. Então fico sabendo que moravam num bairro distante do centro da cidade e que vieram assistir ao espetáculo no domingo porque este aconteceria mais cedo e assim seria menos perigoso para depois retornarem para suas casas… E os relatos continuaram: muitos deles nunca tinham entrado na unidade do Sesc em Belo Horizonte, frequentavam pouco o centro da cidade, estavam encantados e amedrontados em utilizar um equipamento cultural porque ali era um espaço estrangeiro a eles:
Seriam bem recebidos?
“É só pegar o ingresso e entrar para consumir esse negócio chamado arte? E se a gente não entender a peça? Essa vinda ao teatro seria apenas para depois cumprir um trabalho escolar e ganhar nota”?
Mas surgem novas questões para nós do lado de cá: O que esse deslocamento na cidade pode sinalizar? Como se interessar pela realidade deles? O que é arte e cultura para eles? O que têm produzido artisticamente no contexto escolar? Quem é esse professor e como ele atua? Como estabelecer pontes?
E assim uma rede foi se formando e catálogos do Palco Giratório (são materiais mediadores) foram entregues, contatos trocados e após o final do espetáculo os jovens permaneceram um pouco mais para um debate com os artistas. Divididos entre o prazer de conversar e o medo de perder o transporte coletivo num domingo com horários reduzidos…. Aí, no dia seguinte, comecei uma caça ao professor dessa escola que não pôde ir no dia do espetáculo, mas pediu um trabalho a seus estudantes. Muita investigação e o encontrei no facebook e dias depois nos reunimos na unidade do Sesc para um café e uma conversa. E aí tive uma experiência fantástica: ouvir os relatos de um professor de artes com toda sua dificuldade dentro de um sistema para o qual “arte é bobagem” e o que importa mesmo é aprender matemática e português. Também me contou das censuras presentes nos conteúdos da matéria, o conservadorismo vigente e crescente na escola, enfim, um trabalho de militância e resistência diárias, mas lá na ponta, numa solidão absoluta e aí pude perceber o quanto eu era um privilegiado (ou protegido?), por só conviver com artistas, curadores, “gente bacana” e que fala a minha língua…. Esse encontro foi fundamental para efetivar uma aproximação do Sesc com a escola, minha com o professor, esse exercício de troca mesmo….
Como alterar os mapas e trajetos de uma cidade, efetuar coreopolíticas, convocar presenças e instaurar convívios, natureza intrínseca da fruição estética no teatro?
Estou afirmando aqui que um projeto de mediação artística pode provocar deslocamentos nos espaços reais como também deslocamentos perceptivos.
Espetáculo “Todas Vozes, Todas Elas” (BH/MG)
Um outro exemplo: como crítico tento também escrever sobre trabalhos que estão fora de certos redutos artísticos mais consolidados e isso me levou uma vez a assistir uma performance artística de mulheres (Todas Vozes, Todas Elas, com direção de Cristina Tolentino), numa ocupação urbana: Ocupação Maria Carolina de Jesus. Nunca havia adentrado em uma. Pude escrever sobre essa performance e publicar um texto na plataforma do Horizonte da Cena (https://www.horizontedacena.com/dois-espacos-cenicos-singulares-para-vozes-femininas/) e com isso acabei me aproximando dessa pequena comunidade, inclusive, tentando auxiliar em questões de produção e difusão desse pequeno espetáculo. Quando no agendamento de grupos a serem mediados para o Cartografia descobri que havia um espetáculo sobre violência contra a mulher (As Mulheres do aluá/O Imaginário/RO), propus que as moradoras dessa ocupação fossem as escolhidas. Isso me exigiu inúmeras visitas à ocupação e um tempo enorme dedicado a esperar o fim das longas assembleias, a sempre explicar os objetivos do projeto, a um convívio direto com a realidade cotidiana delas, comendo junto, participando das discussões, enfim, entendendo como se organizam, como atuam, como criam esse espaço coletivo e como resistem.
No dia da apresentação do espetáculo, esse grupo teatral que se chama Grupo de Teatro Mulheres de Luta chegou mais cedo e pela primeira vez conheceu o espaço do Sesc, e a atividade pré-espetáculo foi uma visita na galeria de artes visuais cujo a exposição era sobre as cartografias imaginárias da cidade. Nada mais próximo da temática da vida dessas mulheres, que a partir de um jogo proposto por uma mediadora da exposição, Themis Lobato, criaram seu projeto de cidade (uma maquete) e relataram sua experiência de ocupação. Acontecia ali uma convergência de duas distintas realidades.
Foto de Themis Lobato
Após a apresentação do espetáculo, o debate aberto ao público foi na verdade uma experiência de um encontro entre o elenco e essas mulheres que subiram ao palco e juntas conversaram sobre arte, luta, feminismo etc. Trocaram vivências sobre o espetáculo e suas experiências de violência cotidiana e assim uma parte do público da cidade relatava que pela primeira vez tinha uma aproximação e diálogo com “gente de ocupação”, podendo fazer perguntas e tentar compreender as razões desse tipo de ação, podendo inclusive romper preconceitos. Pergunto: não terá o espetáculo feito uma mediação necessária entre diferentes classes sociais e leituras de mundo?
Não quero com isso atribuir à mediação uma função primordialmente redentora ou salvadora na apreciação das obras artísticas por um determinado público e que pareça ter o poder de resolver magicamente alguns conflitos sociais. Tal perspectiva seria ingênua e até mesmo oposta aos objetivos desse tipo de prática, que mais do que apaziguar problemas ou diferentes recepções de um mesmo espetáculo, deseja abrir novas e dissidentes percepções e afetações. Também é preciso explicar que ações de mediação cultural são variadas e não se prendem a modelos fechados e prontos. Elas exigem, de alguma forma, uma criação conjunta entre as partes envolvidas para que sua efetivação aconteça numa dimensão não somente estética, mas também relacional e ético-política.
Mediação como possíveis dramaturgias
Mediação é como uma dramaturgia do convite. Mas como se convida o outro para uma experiência? Só pela fala ou pode ser pela experiência artística como, por exemplo, a realização de uma oficina? Pode ser pela criação de uma festa? Um piquenique na cidade?
Uma vez aceito o convite, se torna possível se instaurar uma dramaturgia do Encontro? O que aí se tece juntos? O que se abre? O que se desdobra? O que se cria? O que se dialoga? O que se aprende juntos?
Há disponibilidade à aventura e descoberta?
Para o exercício da crítica um desafio se coloca: como se migrar do discurso único para criação de espaços dialógicos? Como criar mais conversas e debates para que o espectador possa expressar sua crítica e relatar sua experiência com uma obra? Como criar ações participativas e colaborativas no fazer artístico e na crítica contemporânea? Se vivemos um novo tempo para o exercício crítico, de descolonização de saberes e fazeres (como subverter, por exemplo, a ideia de que teatro brasileiro não é apenas teatro do Sudeste?), como acolher, pela mediação, diferentes atravessamentos reflexivos?
Mediar então não é explicar um espetáculo, impor uma análise pronta e definitiva da obra, interpretar para um “outro ignorante”, mas disparar possíveis questões e se abrir para escutar as reverberações. Como artistas muitas vezes achamos que a apresentação de uma obra por si só plasma um universo de referências e signos, mas precisamos ir além, precisamos debater, questionar, sermos questionados, sermos visitados por aquilo que não pensamos devido o nosso envolvimento com o processo de criação. Na mediação a obra pode transbordar, vazar, romper cinturões discursivos, sem cristalizar um lugar de poder: “fazer vazar é roubar algo” (Fabiane Borges)[2].
Outro ponto a ser destacado: pelas ações de mediação cultural, os espectadores numa dimensão estético-crítica, podem balizar as escolhas feitas pela curadoria compartilhada do Projeto Palco Giratório (composta por profissionais de todo país), e assim oferecer diagnósticos significativos a partir da relação de maior proximidade com a programação ofertada.
Termino minha fala com uma citação do texto de Maria Lúcia Puppo: “Mediação Artística: Uma Tessitura em Processo”:
Atuar de modo associado não é um desafio corriqueiro, nem para artistas, nem para docentes. Para que uma verdadeira atuação em parceria aconteça é indispensável que cada um seja capaz de apreender plenamente o ponto de vista do outro; é só quando as competências e olhares se cruzam que a aliança se torna efetiva. Ela implica, entre outras disponibilidades, a de ser capaz de se despir de certezas já conquistadas e se dispor a uma aventura inédita. O conceito de mediação sem dúvida sofre assim um nítido deslocamento. Se na origem, como vimos, o conceito diz respeito à apropriação das obras pelo público, nesse momento ele passa a ocupar um espaço outro, e a se configurar em um âmbito que vai além da leitura da obra. Integram-se agora dentro do termo as formulações e experimentações (…) Arte e pedagogia deixam de ser campos antagônicos e passam a engendrar um novo espaço de atuação, protagonizado por seus respectivos profissionais. Dito em outras palavras, estamos diante de uma acepção singular do termo: a mediação passa agora a constituir, em si mesma, uma modalidade de criação. (Revista Urdimento, n.17, 2011, p. 121).
Será mesmo possível se apreender plenamente o ponto de vista do outro, como afirma acima a autora? Ações de mediação, quase sempre eventuais, ou, acontecendo pela reunião efêmera de espectadores e artistas, teriam por finalidade uma apreensão absoluta do que pensam os outros, ou mais modestamente, não se proporiam a criar espaços de abertura para que as diferenças pudessem apenas coexistir e não necessariamente precisassem ser abolidas?
Enfim, resta a nós, mediadores e críticos, a coragem necessária de propor e ao mesmo tempo nos abrir a novas e diferentes abordagens e experimentações no contato com as obras, e assim junto a artistas e públicos interessados neste vasto campo da cultura, não temer as complexas e inusitadas intersecções entre o fazer artístico e os contextos sociais.
[1] Pensamento Giratório é uma ação de desdobramento do Projeto Palco Giratório, em que artistas e convidados se reúnem para um momento de reflexão e troca de ideias.
[2] Texto Vazadores (Os Ladrões da Galeria), publicado no livro “Na Borda – Nove Coletivos, uma Cidade” da Invisível Produções, 2012.