Crítica a partir do espetáculo “Lalangue: carta à mãe”, da Cia de Dança Palácio das Artes.
– por Jéssica Ribas e Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras – UFMG/CNPq –
Fotos de Paulo Lacerda/ Palácio das Artes
“Venus Pudica” é o termo usado para a clássica posição presente em obras de arte em que há uma figura feminina escondendo sua nudez com as mãos. Em “Lalangue: carta à mãe”, um espetáculo de dança contemporânea, no princípio de tudo, antes de qualquer som ou mesmo da abertura das cortinas, uma mulher surge, nua, exibindo uma concha à frente de seu sexo. Entre um giro e uma troca de objeto que permanecerá ocultando sua vulva, ela atravessa o palco ao som de uma canção ritualística, auxiliada por outra mulher, esta trajando um longo vestido vermelho, que a acompanha segurando os pertences utilizados na cena. Cabelos substituem a concha seguidos de um jarro, ramos de folhas e por fim um espelho redondo. A plateia penetra o palco vendo sua imagem refletida no ventre dessa Vênus. O espectador é chamado para participar da composição cênica que surge por meio do corpo feminino e que lhe será apresentada a partir do signo do espelho, que surge, alegoricamente, com suas simbologias múltiplas e polifônicas – duplo, reflexo, autoimagem, Narciso, contemplação –, aproximando e convidando cada pessoa presente a ocupar o palco do Palácio das Artes com as suas sensações. As cortinas se abrem e um grupo formado somente por bailarinos inicia uma celebração desse prólogo/parto em que os signos pulsam. Estabelece-se em seguida um ritual masculino com direito a banho e troca de vestimentas em um recém-nascido bailarino.
O espetáculo da Cia de Dança Palácio das Artes, com direção da coreógrafa e bailarina convidada Morena Nascimento (que traz a “vinda ao mundo” no nome), apesar de uma ode à maternidade, e de explorar o elo entre mães e filhos, parte daquilo que se faz inerente ao feminino com toda a complexidade que lhe cabe. As contradições que tocam a feminilidade e os estereótipos que habitam o imaginário social acerca da mãe e da mulher estão fortemente expostos na montagem da Cia e podem ser percebidos ao longo de toda a obra. Seja nos tons de rosa e vermelho explorados no figurino e na fluidez dos tecidos dos diferentes tipos de robes e camisolas, cuidadosamente escolhidos pelo figurinista e também bailarino Pablo Ramon, ou por meio da delicadeza que pode ser percebida em alguns gestos, e ainda na utilização de imagens como o ato de amamentar, de rebolar até o chão, de calçar um salto com elegância, mas também com desconforto e instabilidade. Características que correspondem a um padrão, mas que são utilizadas na cena com frescor e despretensão.
É importante ressaltar que “Lalangue” une cada um desses elementos e os costura ao corpo dos bailarinos numa feliz escolha de deixar que esses ecos repercutam para além do sexo ou gênero de quem dança. Essas experiências não vão reverberar somente nas mulheres da Cia, e é aí que a experimentação do que pertence ao universo feminino, e também ao masculino, ganha amplitude e desdobramentos. Talvez também por isso o grupo de bailarinas faça sua aparição tardiamente na cena, numa tentativa da direção de propor novos pontos de vista, o que promove certa tensão e acaba potencializando a presença das mulheres no palco. Subvertendo a lógica imposta, o espetáculo assume alguns rótulos pejorativos como os de vadia, puta, santa, vaca, velha, bruxa, louca, menininha, afeminado, mulherzinha, queer, e os emprega como forma de enfrentamento. E se a histeria, supostamente originária do útero, ganhasse contornos provocativos de sarcasmo e deboche? O grupo de bailarinas e bailarinos, com diferenças significativas de idade, de características físicas, e variações inclusive na forma de execução de alguns movimentos, ostenta sua sexualidade, desejos e gozo, numa partitura corporal construída coletivamente que valoriza as especificidades de cada um e enriquece a cena. Nascimento afirma no programa do espetáculo: “[…] desejo inventar outras realidades possíveis. Brinco com o que é ser homem e mulher do meu jeito, reinvento o feminino, me atento aos que dançam e tento capturar paixões, pulsões, urgências e juntos cuidamos uns dos outros, tornando a existência um constante gozo e morrendo quantas vezes quisermos […]”.
Esse brincar com o que é – e representa – ser homem e mulher assume lugares múltiplos nos corpos dos bailarinos-performers. O travestimento é um instrumento de composição do espetáculo e é utilizado como uma ferramenta que serve ao artista para que este possa desvelar pulsões corpóreas que o habitam e que passam a ser manifestadas em seus corpos revelando, neles e nos espectadores, espaços de encontros com o sensível. Há momentos em que a plateia é surpreendida com cenas em que os bailarinos apresentam partituras coreográficas e corpóreas que trazem para o foco a desconstrução do universo masculino, como na cena em que o bailarino-performer Lucas Medeiros, travestido de mulher, usando uma peruca longa e com um vestido com um grande decote que deixa as suas costas e nádegas à mostra, tem como partner de cena Lucas Resende, que o conduz de forma vívida e intensa. Neste momento, a maioria do público presente acredita se tratar de uma coreografia que está sendo executada por uma bailarina e um bailarino. De igual maneira, também chama a atenção a cena em que o próprio Lucas Resende, também usando um vestido preto decotado na frente e com brechas nas laterais, dança com outros cinco bailarinos-performers que também o conduzem com leveza a partir de uma música reconhecida pelo imaginário romântico da maioria público presente. A diferença é que os traços físicos de Lucas Resende e de Lucas Medeiros são muito marcantes e, no momento de execução de ambas as coreografias, o espectador não tem dúvidas que em relação a Resende se trata de um bailarino-performer travestido de bailarina-performer. Estes lugares de desconstrução dos papéis de gênero fazem com que o público se veja impulsionado a refletir sobre os espaços de construção simbólica dos corpos masculinos e femininos. O espetáculo rompe com esta categorização provocando os bailarinos em cena e estimulando a plateia a vivenciar outras possibilidades sensoriais.
Se uma carta é escrita para enviar um comunicado, “Lalangue” endereça seu recado/manifesto para aqueles que ainda se sentem no direito de reprimir esses corpos. E em se tratando de mães, elas podem sofrer uma dupla violência quando o país em que vivem ainda é capaz de deixar que morram ou sejam presas algumas mulheres que decidem livremente sobre os caminhos de suas vidas. Direitos como a descriminalização do aborto seguem sendo menores que as cobranças depositadas na maternidade. Não por acaso a figura da mãe é tema recorrente na Arte, e em alguns momentos é possível associar a construção de imagens do espetáculo a mães que atravessam os tempos, como Medeia, Pietá, Malinche, Mamma Roma ou Pachamama por exemplo, proporcionando novos encontros, diferentes leituras, ressignificando a ideia que se faz de uma mãe/pátria/terra. Há que se destacar que tanto a dança e cena espetacular de Lalangue: carta à mãe foi construída, entre outras pulsões corpóreas e sensoriais, a partir de cartas-manifestos femininos – desconstruindo a ideia de gênero heteronormativo – que os bailarinos-performers escreveram para suas mães e as levaram para o palco por meio de suas ações performativas. Estas cartas – discursos/manifestos corporais – são ressignificadas em cena e nos corpos dos bailarinos que buscam por meio da dança recuperar lugares outros que os sentidos, nem sempre, conseguem alcançar. Daí a força das palavras-lalação – cartas-blablação – que são emitidas pelos intérpretes ao longo do espetáculo. As sonoridades vão dando força aos passos marcados que trazem corporeidades outras para a cena fazendo com que o espectador se sinta imbricado e interpelado pelos movimentos.
O que escrever quando as palavras se dirigem a uma mãe? Uma mulher que aborta, continua só mulher ou torna-se uma ex-mãe? Ser mãe não é também ser mulher? Existe uma mãe que deixou de ser? Para ser mãe tem que engravidar? E se a mãe não tem útero? Se não tem tempo? Se não tem saco? A criança segue com a boca aberta esperando a hora de mamar. Ela pede, ela clama, num balbuciar que diz tudo, mas só a mãe compreende, pois é também com ela que nasce lalangue. É assim que, inspirados no termo cunhado por Lacan em seu Seminário “O saber do psicanalista” (1974), o espetáculo traz em alguns momentos bailarinos lendo cartas onde os textos misturam palavras de idiomas diferentes com outras inventadas num dialeto intercalado pela “blablação”. Isso resulta numa sonoridade estranha, mas muito familiar para o público, afinal de contas também são todos filhos. Assim como os corpos, as palavras e a língua dançam. Esses diferentes idiomas também podem ser percebidos na escolha da trilha sonora, cantada por vozes femininas, e igualmente assinada por Morena Nascimento.
Talvez filhos de uma mesma mãe ou irmãos por afinidade, à medida que o fim do espetáculo se aproxima, os bailarinos vão constituindo juntos uma coletividade, como corpos dançantes que seguem o mesmo fluxo construindo seus espaços em união. Se eles estão em harmonia a pátria mãe fica livre para seguir dançando com leveza e tranquilidade. E esta imagem que se estabelece quando formam um bloco de seres com ações integradas e fraternais, remete ao Deus Hindu Rama, também evocado no espetáculo em uma das cartas à mãe.
Não podemos deixar de pontuar a também sensível criação de iluminação assinada por Marina Arthuzzi, Rodrigo Marçal e Jésus Lataliza, que foi fundamental para potencializar as sensações que os corpos dos bailarinos propõem na cena. Isso fica claro no fim do espetáculo quando a mesma bailarina do prólogo retorna, já sem objetos que a escondam, e dança sozinha sob os raios de uma luz dourada. Enquanto os bailarinos e bailarinas permanecem agrupados como um corpo único, a luz que destaca a mulher dos demais a acompanha por toda a área do palco até que ela fique só em cena. Aos poucos, sua imagem é preenchida por um suave lilás, numa instauração do sagrado, e só então a música cessa.
Espetáculo assistido em 05 de agosto de 2018 no Grande Teatro do Palácio das Artes.
Ficha Técnica:
Concepção e direção coreográfica: Morena Nascimento
Pesquisa coreográfica: Bailarinos da CDPA
Assistência de criação e ensaios: Patrícia Werneck e Sônia Pedroso
Criação de iluminação: Marina Arthuzzi, Rodrigo Marçal e Jésus Lataliza
Figurinos: Pablo Ramon
Execução de Figurinos: Ednara Botrel
Trilha sonora: Morena Nascimento
Edição e mixagem de trilha sonora: Lucas Medeiros
Bailarinos criadores: Anahí Poty, Andréa Faria, Amanda Sant’ana, Ariane de Freitas, Beatriz Kuguimiya, Christiano Castro, Cláudia Lobo, Danny Maia, Fernando Cordeiro, Ivan Sodré, Lina Lapertosa, Lívia Espírito Santo, Léo Garcia, Lucas Medeiros, Lucas Resende, Mariângela Caramati, Naline Ferraz, Paulo Chamone e Silvia Maia.
Jéssica Ribas – Mestranda em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Interpretação Teatral pela Escola de Belas Artes da UFMG. Possui Licenciatura em Teatro também pela EBA/UFMG. É membro pesquisadora do Núcleo de Estudos em Letras e Artes Performáticas (NELAP). Iniciou os estudos em escola livre de teatro em 2007 e atua como atriz desde 2009. É também membro co-fundadora do grupo Mulheres Míticas, criado em 2014, onde exerce atividades como atriz, figurinista e produtora.