
— por Julia Guimarães —
“Boa noite. Meu nome é Talita Braga e o espetáculo que a gente vai apresentar aqui hoje conta a história da minha mãe, Rosângela. Até pouco tempo atrás essa informação seria passada (…) somente no final da peça. Mas aí aconteceu uma coisa que mudou tudo e eu queria dividir isso com vocês. (Talita Braga, no espetáculo ‘As Rosas no Jardim de Zula’ – Zula Cia De Teatro)
“Quando alguém morre, na minha cidade, é velado em casa (…) afastam-se os móveis da sala e prega-se na parede uma colcha clara de crochê. Só que quando o meu pai morreu não teve colcha na parede” (Odilon Esteves, no espetáculo ‘Não Desperdice sua Única Vida’… – Cia. Luna Lunera)
“É que a nossa história individual começa bem antes da gente nascer. E é exatamente por isso que ela não é tão individual assim” (Thiago Macedo, no espetáculo ‘1961-2009 [2015]’– ZAP 18)
“Eu também achava que violência não se paga com violência. Até que aconteceu comigo” (Depoimento de Julia Branco, no espetáculo ‘Esta Noite Mãe Coragem’ – ZAP 18)
“É estranho ser machista sem perceber. Mas eu sou. E não tinha dado conta disso” (Guilherme Theo, no espetáculo ‘Rosa Choque’ – Os Conectores)
As frases destacadas acima aparecem em espetáculos que levam a direção da artista mineira Cida Falabella. Em comum, trazem a característica de serem depoimentos de traço autobiográfico, por vezes confessionais, ditos pelos atores em cena.
Tal recurso está presente em quase todos os trabalhos recentes nos quais Cida atuou ou dirigiu. Ele pode ser visto como um desdobramento do campo que a diretora, especialmente junto ao grupo que fundou, a ZAP 18 – Zona de Arte da Periferia, toma como base de pesquisa: a relação entre teatro e realidade.
Se, por um lado, essa relação manifesta-se como aproximação a uma dada realidade social – daí a forte referência ao teatro épico visível no trabalho da diretora -, ela se entrecruza também a uma dimensão performativa e micropolítica. Quiçá da hibridez entre as duas referências resida um aspecto importante sobre a potência da linguagem cênica construída por Cida Falabella ao longo das últimas décadas. Uma maneira própria de tangenciar o campo das artes cênicas contemporâneas que vem sendo chamado de teatros do real (FERNANDES, 2013), pautada pelo tensionamento entre teatralidade e performatividade.
Por trabalhar com grupos teatrais que possuem identidades e projetos artísticos tão diversos, o jogo com a narrativa pessoal nas obras da diretora adquire contornos muito distintos entre si. Ele pode aparecer como recurso para elaborar, de maneira coletiva e processual, elementos cuja complexidade desautorizam a construção de um sentido estável, como em Esta Noite Mãe Coragem; pode servir para romper tabus e questionar a naturalização dos papéis de gênero (Rosa Choque); como mecanismo de conexão entre a macro-história e a memória cotidiana (1961-2009[2015]); como recurso para subverter as idealizações da maternidade (As Rosas no Jardim de Zula) ou como dispositivo de convívio e partilha de intimidade com o público (Não Desperdice sua Única Vida). É a partir dessas suposições, ou hipóteses, que partem as investigações acerca de cada trabalho.
Embora seja um elemento muitas vezes relacionado à esfera da dramaturgia, o uso do depoimento pessoal parece atravessar a trajetória artística de Cida Falabella antes por fatores éticos do que técnicos ou estéticos. Poderíamos pensar que a autobiografia nesses espetáculos diz respeito a um modo de estar em cena, a uma atitude de buscar na experiência cotidiana bases para reflexão e conhecimentos partilhados coletivamente.
Além disso, o depoimento pessoal parece também servir a outro elemento do trabalho de Cida, pensado aqui como um “ensaísmo cênico”. Tal termo é definido por Sánchez (2005) tanto pela “intencionalidade discursiva e não ficcional” da criação, quanto pelo caráter provisório da “proposta final, que se apresenta sempre como aproximação e nunca como conclusão” (p. 02)[1].
Novamente conectado a uma atitude ética diante da linguagem teatral, esse aspecto, no caso das criações de Cida, diz respeito à maneira como a composição fragmentária e o uso de distintas linguagens em suas obras parece refletir o desejo de abordar determinadas questões por vias múltiplas, como se os espetáculos se estruturassem na forma de um diálogo, ou uma discursividade cênica sobre os temas propostos.
Porque a estrutura dos espetáculos de Cida por vezes corresponde ao de uma inquietação diante de uma pergunta – que, em alguns casos, inclusive continuará sendo reelaborada no decorrer das temporadas. E, nesse contexto, o depoimento pessoal pode ser visto como dispositivo para manter viva a processualidade da indagação.
Esse elemento processual é recorrente a diversos trabalhos e aparece com maior clareza em Esta Noite Mãe Coragem e 1961-2009(2015), ambos criados pelo grupo ZAP 18. O próprio título de cada um deles já revela traços da valorização do tempo presente na estrutura dessas duas obras. Enquanto o “prefácio” Esta Noite indica que o diálogo com o clássico de Brecht, Mãe Coragem e seus Filhos, pressupõe uma atualização performativa/processual a cada apresentação, o título 1961-2009(2015), que muda, ano a ano, sua data final, se propõe a incorporar constantemente acontecimentos recentes do país na dramaturgia. Nos dois casos, fica nítido um intento de explorar a temporalidade que é cara ao teatro, como modo de manter a estrutura cênica porosa aos acontecimentos do presente.
Como elaborar os paradoxos da violência urbana no Brasil?
(Esta Noite Mãe Coragem, ZAP 18)
Para levar essa premissa ao limite, o espetáculo Esta Noite Mãe Coragem (2006) busca uma atualização temática sobre a violência urbana que seja atravessada por comentários e depoimentos pessoais dos atores e dos espectadores. Baseado numa dramaturgia que transpõe a obra de Brecht para as periferias brasileiras num futuro próximo, a montagem discute o vínculo entre segregação social e violência através da seguinte frase-síntese: “há um muro; como derrubá-lo?”.
Nesse contexto, diversas estratégias cênicas são construídas a fim de refletir dialeticamente sobre essa pergunta, entre elas o diálogo com a peça Mãe Coragem e seus Filhos, o metateatro, as canções e projeções épicas, o recurso brechtiano de transposição temporal da narrativa, o livro Cabeça de Porco[2], o diálogo com o contexto das periferias urbanas etc. Além dessas, deve-se acrescentar o depoimento pessoal. E para entender melhor sua função, cabe contextualizar como ele é inserido no espetáculo.
Tanto o depoimento do público como o dos atores são explorados no segundo ato de Esta Noite Mãe Coragem, na parte final da montagem. Inicialmente, as passagens autorreferenciais dos atores surgem intercaladas à ficção. As falas são individuais e refletem alguma inquietação de cada integrante do elenco sobre a temática abordada. É o caso de dois relatos de assalto, que se complexificam quando a moral dicotômica “vítima-criminoso” é reelaborada. Mas também pode ser uma reflexão sobre a violência física que algum conhecido sofreu; a leitura de um texto ou música que dialoga com o tema; um comentário sobre notícias de jornal recentes que suscitem novas problematizações às questões do espetáculo.
Há pelo menos dois fatores que contribuem com a polifonia de vozes e o acento na dimensão de alteridade que perpassam esses depoimentos no espetáculo. Um deles é a própria configuração do elenco, heterogêneo em suas origens sociais, econômicas, de formação e de idade. Atores do bairro Serrano, onde fica a sede do grupo, contracenam com alunos do curso de graduação em teatro da UFMG, além de integrantes da ZAP 18 e atores vindos de outras comunidades periféricas. Tal diversidade contribui para construir um tecido dramatúrgico autorreferencial que é atravessado por experiências e papéis sociais muito distintos.
Somado a esse aspecto, há também o fato de o espetáculo ocorrer fora do recorte geográfico onde habitualmente estão os teatros em Belo Horizonte. Não por acaso, a vivência desse contexto social já apareceu no depoimento de vários atores, como no relato de Gustavo Falabella sobre o fato de a sede da ZAP 18 ter sido assaltada cinco vezes – o que contrastava com a metáfora da derrubada do muro – ou na carta de uma espectadora, lida pela atriz Elisa Santana, que assistiu ao trabalho e identificou na própria avó uma Mãe Coragem dos tempos atuais.
Esses dois fatores – diversidade do elenco e espaço de apresentação – colaboravam para a construção de depoimentos nos quais a realidade ganhava camadas de complexidade e não se fixava em representações estáveis. Um dos aspectos interessantes desse recurso é sua potência para projetar certa dimensão política do teatro que parte de alguns pressupostos mais ou menos consensuais (como a frase: “há um muro; como derrubá-lo?”), mas não se estanca nos lugares-comuns do seu entendimento. Ao contrário, busca radicalizar suas contradições por meio desse “ensaísmo cênico” e, para isso, se vale também da experiência de atores e público, que surge como base para o intento de construir conhecimento coletivo sobre a questão.
Também no que se refere ao depoimento dos espectadores, é possível igualmente analisa-lo a partir do diálogo contextual com o entorno da sede da ZAP 18. A começar pela plateia de Esta Noite Mãe Coragem, que usualmente mescla pessoas do bairro com o público “tradicional” de teatro, geralmente pouco habituado à região – o que reforça a possibilidade da polifonia de vozes.
Depois, porque o momento no espetáculo em que o público é convidado a refletir coletivamente sobre os temas abordados se constrói de modo a favorecer uma participação menos engessada. Isso porque, na segunda metade da peça, parte dos espectadores é convidada a se deslocar para as mesas de um bar, que se situa dentro do espaço cênico onde ocorre Esta Noite Mãe Coragem. Tal ambiente funciona simultaneamente como espaço ficcional, inserido na “história” do espetáculo, e espaço real, onde se pode comprar feijão tropeiro, salgados, cerveja etc.
Ainda que, em algumas apresentações, a existência de aplausos ao final dos depoimentos do público e o uso de microfones por alguns dos espectadores imprimisse aos seus relatos certo efeito de espetacularidade pouco favorável ao caráter processual dessa reflexão coletiva, era interessante o fato de que esses depoimentos estavam previstos para a parte final de cada apresentação.
Nesse contexto, serviam, simultaneamente, como símbolo e prática de uma discursividade performativa e não conclusiva sobre os temas propostos. Da ficção à experiência, do épico ao performativo, o espetáculo valia-se de distintas formas teatrais para tentar produzir reflexão e algum tipo de conhecimento acerca da relação entre violência e segregação.
Quais são os vínculos possíveis entre fatos históricos e vida cotidiana? (1961-2009[2015], ZAP 18)
É também o jogo dialético entre narrativa e presença – ou, ainda, narrativa e tempo presente – que sustenta a função cênica do relato pessoal no espetáculo de teatro documentário 1961-2009(2015). Aqui, porém, os depoimentos surgem intercalados a fatos históricos do país, narrados, sobretudo, pelo viés político.
Os depoimentos no espetáculo são ditos por atores e por convidados, sendo que os últimos aparecem projetados na tela ao fundo do palco, em relatos gravados. Enquanto o depoimento dos atores projeta uma instância autobiográfica no diálogo com os fatos históricos, o relato dos convidados parece girar em torno do tema da mobilização política em um tom mais discursivo.
Novamente aqui, a interseção de várias camadas cênicas e dramatúrgicas – encenação de fatos históricos, recursos audiovisuais, autobiografia, análises políticas e sociológicas etc – davam ao espetáculo a dimensão de um ensaio cênico. Ao longo da temporada, os depoimentos mudavam a cada ano, já que a linguagem de 1961-2009(2015) era estruturada como um material em elaboração, aberto às interferências do presente.
É curioso ver como o espetáculo se transforma, por exemplo, após 2013, quando a existência de um “acontecimento”, no sentido que explora Badiou (2010)[3], tenha ressignificado tanto a história recente do país, como também as análises de conjuntura que vinham sendo desenhadas até então. Muito se falava, antes disso, do mito de certa desmobilização da juventude, que foi contrastado com as manifestações multitudinárias das Jornadas de Junho, em diversas cidades brasileiras. Além disso, é interessante observar como outros “acontecimentos” na escala local – que ocorreram em Belo Horizonte – foram também incorporados aos depoimentos e cenas no espetáculo, como a referência ao Carnaval de Rua, na versão 1961-2013 da montagem.
Talvez o sentido mais potente do depoimento pessoal no espetáculo diz respeito a esse entendimento performativo da História, como narrativa viva pautada pelo que se escolhe destacar ou ocultar ao construi-la como relato. A incorporação de novos depoimentos, tal como ocorre em Esta Noite Mãe Coragem, chama atenção para o valor da processualidade como modo de fazer cruzar as incertezas narrativas do presente com certa estabilidade representativa que se pressupõe como constituinte do que se entende como macro-história.
Além disso, a presença de depoimentos que apelam a uma memória muitas vezes íntima e cotidiana dos atores remete a um cruzamento entre história e vida pessoal que é da ordem do pertencimento. Ou seja, os depoimentos colaboram para que a macro-história perca um pouco de seu caráter de abstração para ganhar contornos mais concretos por meio das histórias pessoais dos atores e de seus familiares.
Trata-se de um recurso que vem sendo muito explorado em trabalhos recentes de teatro documentário – como nas criações da diretora argentina Lola Arias – e que projeta não só a já citada relação de pertencimento, mas também a da intervenção – como se fosse necessário antes reconhecer-nos como coconstrutores da história para então ensaiar/praticar formas de subversão em seu curso.
Como desnaturalizar as identidades de gênero? (Rosa Choque, Os Conectores)
Também num diálogo muito estreito com os “acontecimentos” recentes na sociedade brasileira está o espetáculo Rosa Choque (2015), do coletivo Os Conectores. Por canais diversos, o trabalho busca desnaturalizar as identidades de gênero, ao investigar como os papéis sociais do homem e da mulher são transmitidos e reafirmados a partir de interesses que correspondem a certas lógicas de poder, a uma biopolítica.
Para tal, operam uma desconstrução dessa perspectiva também a partir de diversos materiais cênicos, tais como verbete de dicionário, frases do senso-comum reiteradas no cotidiano, letra de música da Bossa Nova, cena dramática elaborada com inversão de papéis e, também, via relato autobiográfico.
Nesse contexto, o depoimento da atriz Cris Moreira e do ator Guilherme Theo surgem de experiências bastante reveladoras sobre como a desigualdade de gêneros opera no país. Nos dois relatos, há um tom confessional e certa aposta de que a partilha de uma experiência íntima e reveladora configura-se como estratégia potente para dar visibilidade a diferentes “não ditos” sobre a opressão de gênero.
No depoimento de Cris Moreira, a dúvida sobre expor ou não em cena uma situação íntima e traumática – o abuso sofrido na infância, dos 8 aos 11 anos – é dividida com os espectadores. Aqui, a confissão adquire um duplo papel: o de romper tabus e de denunciar. Entre esses dois objetivos, há uma clara relação de causalidade, pois é cada vez mais evidente que certos tabus e silenciamentos de uma sociedade muitas vezes são formas de perpetuar relações de poder e injustiça.
No caso do abuso sexual, o silêncio passa pelo constrangimento – e como nos conta Cris, pela naturalização. “Durante muito tempo eu me calei. Porque, por incrível que pareça, eu achava normal. Porque nós ensinamos as nossas meninas a sentirem medo. E não lembro de ouvir ninguém ensinando os meninos a respeitar as meninas”.
No que tange às relações entre teatro e realidade característicos do trabalho de Cida Falabella, é curioso observar como o depoimento de Cris Moreira “antecipa” (já que o espetáculo estreia em maio de 2015) a ação coletiva de denúncia/compartilhamento de experiência de abuso que posteriormente ocorreu no espaço das redes sociais, no mesmo ano, através da campanha #meuprimeiroabuso.
Nesse caso, fica nítida a importância de se criar estruturas cênicas que estejam abertas ao diálogo com a realidade do aqui-agora para fora do teatro. No caso de Rosa Choque, os depoimentos publicados nessas redes passaram a ser incorporados pelo espetáculo, o que potencializa o relato individual de Cris Moreira. Com isso, é a relação entre indivíduo e coletivo – ou, para retomar os termos da análise anterior, entre micro e macropolítica – que se evidencia com o relato testemunhal.
Já no exemplo do ator Guilherme Theo, o depoimento também passa pela desnaturalização dos papéis, porém empenha outras funções. Entre elas, a de dar visibilidade a privilégios cotidianos vinculados às relações de gênero e identificar um machismo mais sutil, a partir do relato de sua experiência de morar com a mãe. “A minha relação com a mulher que vive comigo, com a minha mãe, me faz perguntar: será que sou imune ao machismo? É que tem tanta relação que está aí há tanto tempo, antes de a gente nascer e a gente nem se dá conta”. No caso do seu depoimento, o tom confessional e autorreflexivo colabora para a projeção de uma possível identificação por parte de outros homens da plateia em relação a esse machismo menos óbvio e mais introjetado.
Ainda que surjam de modo pontual, os testemunhos dos atores no espetáculo Rosa Choque se ancoram numa relação de intimidade e identificação do público com aqueles acontecimentos narrados. Quiçá porque o efeito político desses relatos tem a ver justamente com uma proposta de desnaturalização de gênero que começa na esfera subjetiva e individual, como um repensar das nossas próprias ações e condutas. Ou como aponta a carta-depoimento que a atriz Cris Moreira escreve para o seu filho e lê em cena, antes de se perguntar “qual o lugar do outro”, há que se perguntar “qual é nosso lugar” e nossa atitude diante das questões tratadas.
Como subverter as idealizações do feminino e da maternidade a partir de experiências pessoais? (As Rosas no Jardim de Zula, Zula Cia. de Teatro)
Assim como em Rosa Choque, o intuito de desnaturalizar e desidealizar é também central no espetáculo As Rosas no Jardim de Zula (2012). Aqui, porém, ao contrário dos trabalhos analisados até então, a autobiografia adquire centralidade na construção dramática e discursiva da obra.
Isso porque o espetáculo se estrutura a partir da relação da atriz Talita Braga com sua mãe, Rosângela, que abandonou marido e filhos quando Talita tinha sete anos, e foi buscar na rua um sentido para sua existência. Com base em uma entrevista de 3h feita com a mãe, o espetáculo oscila entre o épico e o dramático, mas também entre a história de Rosângela e o depoimento das atrizes acerca das questões propostas.
A radicalidade com que a atitude de Rosângela subverte os sentidos e responsabilidades socialmente atribuídos à maternidade se revela como o paradoxo central do espetáculo. Nesse caso, o que interessa às criadoras ao trazerem uma história real como eixo dramatúrgico é questionar as representações do universo feminino e da figura materna, por meio de uma presença intrusa ao campo da ficção, convocada para, de algum modo, colocar em xeque lugares comuns presentes nas tradicionais abordagens sobre esses assuntos.
O curioso nessa relação construída no espetáculo é a própria subversão que a atriz infere sobre a biografia da mãe que a abandonou. Uma situação que poderia ser reduzida ao juízo moral do “socialmente condenável” torna-se mote para a problematização das questões do espetáculo, o que também sugere uma complexa abordagem do Outro em cena.
A opção por partir de uma história real para construir o espetáculo surge como recurso capaz de gerar um potente estranhamento sobre o espectador, no intuito de desmistificar uma perspectiva idealizada do que se entende por “mãe”.
Nesse sentido, é possível pensar no trabalho também sob uma ótica filosófica, como tentativa de evitar a adequação do Outro ao Mesmo, ou aos valores de quem o representa. Nessa ótica, vale transpor para o contexto cênico a pergunta levantada por Lévinas (2009, p. 14)[4]: “Haverá ainda possibilidade para a alteridade em que o outro permanece outro na relação radicalmente?”
Dessa forma, a autobiografia em As Rosas no Jardim de Zula funciona como um fio condutor que simultaneamente desmitifica alguns ideais da condição materna como também apresenta fragmentos de uma subjetividade feminina que normalmente não ganha visibilidade nas representações hegemônicas, pela sua dimensão marginal. Os relatos de Rosângela sobre sua relação com sexo, droga e criminalidade dão a ver uma subjetividade que em nada se encaixa aos imaginários construídos em torno da ideia de mãe e de mulher. E é exatamente o fato desse depoimento ter sido trazido ao espetáculo por sua própria filha, Talita, o que confere uma complexidade ainda maior a todas essas representações e que também, de certa forma, legitima e protege a alteridade de Rosângela.
A partir desse polo central, que é o relato de Rosângela, os depoimentos das atrizes Andrea Quaresma e Talita Braga trazem como potência o fato de também tratarem dos “não ditos”, que conferem ao espetáculo o status de uma partilha bastante íntima de experiência com o público. É o caso do momento em que Talita “pede licença” aos seus familiares para expor aquela história no teatro; da opção de não ser mãe, declarada por Andrea ao falar sobre maternidade; da carta lida em cena que Rosângela escreveu para Talita após sair de casa; etc.
Através do atravessamento entre as vozes das atrizes e a de Rosângela, As Rosas no Jardim de Zula lida com a confissão como modo de permitir que subjetividades inviabilizadas pelos padrões sociais normativos sejam partilhadas com a plateia, numa relação em que o público é momentaneamente convidado a deixar de ser espectador para tornar-se cúmplice ou testemunha de uma confissão exposta ao coletivo.
Como construir intimidade com o espectador? (Não Despedice sua Única Vida…, Cia. Luna Lunera)
Se em As Rosas no Jardim de Zula, o espectador se converte em cúmplice pela radicalidade com que o relato adquire em um tom de revelação íntima, é possível pensar na montagem Não Desperdice sua Única Vida…[5] (2005), a partir dessa mesma ‘conversão’, porém no contexto de uma construção também espacial.
Na montagem dirigida por Cida Falabella, o trabalho é dividido em duas partes, que se intercalam e, ao mesmo tempo, são autônomas. Para essa análise, será levada em conta apenas a primeira parte, cuja estrutura se apoia inteiramente nos depoimentos autobiográficos.
Logo antes de o espetáculo começar, o público recebe pequenas bolinhas coloridas que vão corresponder à sala para onde devem se dirigir nessa primeira parte da montagem. Cada cor corresponde ao “espaço” de um dos seis atores que integram o elenco. Assim, a plateia se divide em pequenos subgrupos, de mais ou menos 15 pessoas, que vão acompanhar uma determinada trajetória autobiográfica.
O “recorte espacial” mencionado acima diz respeito aos lugares normalmente escolhidos para essa etapa autobiográfica da montagem, geralmente salas pequenas, na qual a proximidade física entre o ator-narrador e o pequeno grupo de espectadores é um elemento importante para a qualidade da relação construída.
Em diversos depoimentos, há uma dimensão relacional/convivial com os espectadores, expressada de várias formas. Poderia ser através de uma brincadeira – como na cena da atriz Cláudia Corrêa, em que o público participa de um jogo que atravessa sua memória de infância, ou no vínculo construído pelo ator Odilon Esteves com seus interlocutores – ao entregar-lhes o ingresso que dava acesso ao pequeno circo que costumava montar com amigos também na infância.
Aqui, os relatos se constroem através de temas que abordam as ditas ‘questões universais’ – como família, amor e morte – numa escala que reforça a intimidade e a individualidade. Funcionam como o que a diretora argentina Viviane Telles batizou como “Umbral Mínino de Ficção – UMF”[6], nome dado a certa qualidade necessária para que os relatos “sirvam” ao teatro, como sínteses de vivências/experiências que digam respeito a um conjunto expressivo de pessoas.
Mais do que ressignificar aspectos da realidade dados como estabelecidos – tal qual acontece em muitos dos outros espetáculos analisados –, o uso do depoimento em Não Desperdice sua Única Vida parece querer explorar o potencial em si do teatro como espaço de partilha de segredos e intimidades.
A proximidade física materializa o desejo de intimidade; o uso de objetos (fotos, músicas, presentes) de algum modo funciona como indícios materiais daquelas confissões, o que também reforça essa cumplicidade com o espectador; a iluminação intimista e a existência de cenas no plano baixo, com público e ator sentados no chão do espaço, eram outros elementos que ajudavam a construir a proximidade necessária aos relatos.
Assim, o elemento talvez mais importante das autobiografias presentes no espetáculo fosse a maneira em si como se propunham a funcionar como formas de construir relação e experiência com o público, que, como foi dito antes, se convertia em testemunha e interlocutor.
Esse aspecto faz pensar novamente nos eixos que atravessam os diversos relatos pessoais presentes em trabalhos dirigidos por Cida Falabella. Se, como foi dito antes, eles propõem modos de estar em cena, por outro, também funcionam como um chamado, uma interpelação direta ao espectador.
Em realidade, o que os depoimentos autobiográficos fazem ver é o potencial infinito do teatro para lidar com instâncias da presença e do presente, seja através da troca de experiência, da construção coletiva de conhecimento, da elaboração do irrepresentável, da desnaturalização de comportamentos ou da reflexão acerca do próprio processo criativo-representativo.
Trata-se de um projeto artístico e ético que faz do teatro, sobretudo, um espaço social de encontro, onde pessoas de carne e osso relatam suas vivências e pensamentos a outras que, por vezes, também são convidadas a falar. Ao propor esse espaço inclusivo – no qual aparece também a ficção, o drama, o personagem e tantas outras possibilidades cênicas –, a diretora reafirma o teatro como território de constante reinvenção, sobretudo como laboratório para se ensaiar/reexaminar nossas ações mais cotidianas, tais como narrar, conversar, pensar e conhecer.
[1] Ver em: http://artesescenicas.uclm.es/index.php?sec=texto&id=20
[2] Cabeça de Porco aborda a violência no Brasil e foi escrito em 2005 pelo antropólogo Luis Eduardo Soares, pelo rapper MV Bill e por Celso Athayde, empresário do hip-hop e um dos fundadores da CUFA (Central Única das Favelas).
[3] Badiou, Alain y Tarby, Fabien. La filosofía y el acontecimiento. Buenos Aires, Amorrortu, 2013.
[4] LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2009.
[5] O título completo do espetáculo é Não Desperdice sua Única Vida ou Auto Biográfico ou As Patinadoras no Planeta do Dragão ou Seis Atores à Procura do seu Personagem ou O Mundo das Precariedades Humanas ou Nenhuma das Opções Anteriores.
[6] Informações em http://www.archivotellas.com.ar/sec.html