– Por Soraya Martins-
Reflexões e expansões a partir do espetáculo Herança.
* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
(A foto da capa é do Pablo Bernardo).
Há muitas maneiras de fazer crítica de teatro. Eu escolho a crítica fabular. Me encanta a ficção, não como mentira, mas como um elemento imaginativo que assume a impossibilidade da representação e aponta para lugares mais fugitivos e performativos. E se eu tiver herdado o traçado vermelho que escorre do nariz do Tio Vicente – ele tinha a doença do barbeiro – que, depois, vira a fita de cetim vermelha espalhada pelo palco e pela plateia? É uma espécie de dna, a molécula presente no núcleo das células de todos os seres vivos pretos? Suspeito dessa fita. É façanha? É feito? É artefato? Façanha-feito-artefato que sutura as humanidades cindidas, dispersas por todos os [en]cantos da diáspora negra.
Foto: Belisário Tonsich
O espetáculo Herança, teatro-celebração dos cinquenta anos de carreira do multiartista Maurício Tizumba, é fita vermelha que carrega, atualiza, costura e recria constantemente a cultura afro-brasileira, a partir de uma trama que perpassa enredos pessoais, documentais, oníricos e fabulatórios. Entre várias maneiras de contar histórias, o trio de artistas em cena – Tizumba, Júlia e Sérgio Pererê – escava Estórias & História, mirando o maior princípio do poder negro: definir o mundo com seus próprios termos. Linguísticos. Epistêmicos. Subjetivos. Históricos. Imagéticos. Estéticos.
Em cena, Julia, Pererê e Tizumba tecem uma escrita hieróglifa que inscreve a cor e as nuances da expressão verbal negra [com seus ritmos de movimento e música, uso tradicional da palavra, enquanto metáfora e magia] como imagem-texto, assumindo uma linguagem que tem sintaxe e morfologia próprias, memória cultural dialógica e que, simultaneamente, produz uma fabulação imagística que reconhece a alteridade como valor de fundação.
E lá vem João, lá vem José
Vem Tia Rosa, vó Isabel, Kizalelu
Grande Otelo, Sancho Pança, Galanga
Tizumba
Todos dançando
curando o quebranto com a força da fé
E lá vem Dona Fininha, Seu Santos
Vem João, vem José
Riscando o seu ponto no chão
Com a ponta do pé
E vem Grace e Aline
Pererê, Júlia
&
Tizumba
Fabulando estéticas e transformação
no sonho e na força
do pilão.
Aqui, a herança pulsa a vida de todos que vieram antes, de todos aqueles que estão no agora e, ainda, daqueles que virão. É uma costura da vida espiralada, um ato de coser implicado em retecer fio-a-fio a memória, reimaginar o passado, viver o presente – em estado constante de gunga, blues e tambor – e espreitar o futuro com a certeza de que haverá espaços e festas e alegrias ainda nem sonhados.
O espetáculo cênico-musical, suturado pelas mãos coloridas da diretora Grace Passô e da assistente de direção Aline Vila Real, faz-se radicalmente pela performance das vozes e dos corpos negros. Nesse sentido, liga-se, pela fita vermelha de cetim, à teoria e à inteligência afrografadas, no Atlântico negro, da Leda, que assim define oralitura:
a singular inscrição do registro oral que, como littera, letras, grafa o sujeito no território narratário e enunciativo de uma nação, imprimindo, ainda, no neologismo, seu valor de litura, rasura da linguagem, alteração significante, constituinte da diferença e da alteridade dos sujeitos, da cultura e das suas representações simbólicas.
A forma como Leda apresenta o significante oralitura não remete exclusivamente ao repertório de formas e procedimentos culturais ligados à tradição verbal, mas ao que, especificamente, na performance assinala “a presença de um traço residual, estilístico, mnemônico, culturalmente constituinte, inscrito na grafia do corpo em movimento e na vocalidade. Como estilete, esse traço cinético inscreve saberes, valores, conceitos, visões de mundo e estilo”. Herança é uma grafia, uma linguagem desenhada, seja na letra performática da palavra dita e cantada, seja no movimento dos corpos, que dá a ver um recurso recorrente em muitos tipos de reuniões comunitárias negras.
Foto: Pablo Bernardo
Performar, sobretudo, com a voz e o corpo negros, é da ordem da resistência e da anunciação, entendida, neste contexto, como ato de criar e recriar a partir não dos arquivos hegemônicos que a cultura branca dispõe (os modelos de teatro), a escrita como tal, mas através de um corpo da memória, um corpo da travessia que se faz corpo-inscrição de conhecimento. Corpo-sutura. Corpo-cultura. De processos, procedimentos, inputs e outputs. Corpo construção da memória, circuito, curto-circuito. Gestos, movimentos, espacialidade, coreografias. Corpo texto e contexto, semiose e semiótico. Corpo-música. Inscrição e produção de conhecimento. Corpo da história. Desejante. Rota de fuga. De revide. Corpo de anunciação. Especulação. Corpus de afrografias fabulantes.
João-José-Tizumba-TiaRosa-TioVicente-Júlia-VóIsabel-Besouro-SeuSantos-
Grace-Dona Fininha-Pererê-Grande Otelo-Aline-Galanga Chico Rei são corpos-
reinvenção que colam no meu dna um teatro em que a experiência comum do trauma
negro me leva a uma normalização da cura.
A fita vermelha de cetim me sangra, me alegra, me constitui. Circula em mim no
ritmo da bateria tocada por Tizumba no final da peça.
É rock.
E é aí que vejo surgir Maurício(s), Júlia(s), Sérgio(s), negras e negros como uma
escrita, uma imagem, uma epistemologia do desejo.
O Tizumba toca bateria. Executa uma trilha sonora para si mesmo como se
dissesse: “Vai, Tizumba, se embala nas canções, se embola nas paixões”.
É bateria. É trono. É a ficção como possibilidade de criar existências e viver
desejos.
É o teatro como mecanismo de tensionamento e reinvenções. Espaço de cena em que a não separação nítida entre realidade e ficção representa a possibilidade de voltar ao passado e extrair dele outras narrativas para recoreografar a memória e alinhavar, como coloca Leda, histórias que se constituem nos tempos do vivido e no tempo do contado. É um lugar carregado de uma politicidade sensível, que se apresenta como meio fabular de fazer emergir performances que recriam as memórias passadas para se poder respirar
e inventariar futuros no presente.
FICHA TÉCNICA
Realização: Cia Burlantins e Napele Produções Artísticas
Idealização: Pedro Kalil
Elenco: Júlia Tizumba, Sérgio Pererê e Mauricio Tizumba
Participação especial: Rosa Moreira
Direção: Grace Passô
Dramaturgia: Aline Vila Real, Grace Passô e Tomás Sarquis / Elaborada a partir de narrativas produzidas por Júlia Tizumba, Mauricio Tizumba, Rosa Moreira e Sérgio Pererê
Direção musical: Sérgio Pererê
Músicas: Sérgio Pererê e Mauricio Tizumba
Assistência de movimento: Sérgio Penna
Vídeo arte: Renato Pascoal
Intervenções visuais: Desali
Projeções: Vj Bah
Cenário e figurino: Alexandre Tavera
Iluminação: Edmar Pinto
Sonorização: Cahuê Teixeira e André Cabelo
Gestão e produção executiva: Elias Gibran e Karú Torres (Napele Produções Artísticas)
Assistente de produção: Eurídes Máximo (Juninho)
Design: Mariana Misk (OESTE)
Fotos: Pablo Bernardo
Redes sociais: Jéssica Soares
Assessoria de imprensa: Luz Comunicação – Jozane Faleiro
Administrativo: Ângelo Batista e Silvia Batista
Alimentação: Cantina da Tia Rosa
Transporte: Luigi Andersom (Hermanos Transportes)