Por Soraya Belusi
Em uma viagem a Moscou, em 1935, Bertolt Brecht sairia fascinado após assistir a uma apresentação da Ópera de Pequim. Em um artigo, publicado no mesmo ano na Inglaterra, o dramaturgo e diretor alemão expressou a admiração que lhe havia causado a performance do ator Mei Lanfang e afirma ter encontrado naquela apresentação uma qualidade teatral que ele próprio procurava, estabelecendo paralelos entre o que pretendia em sua pesquisa de um teatro épico e os efeitos de estranhamento que compunham a linguagem do teatro chinês – entre eles, a ausência da quarta parede, a utilização do simbolismo, a capacidade dos atores de uma auto-observação, em um hábil procedimento de apresentar em vez de representar, sem que isso signifique uma rejeição completa da emoção.
Fotos de Ernesto Vasconcelos |
Foi nesse período que Brecht desenvolveu suas reflexões que seriam publicadas em Estudos sobre Teatro anos depois e que escreveu “Mãe Coragem e Seus Filhos”, obra apresentada e revisitada pela sul-coreana JaRam Lee em Pansori Brecht UKCHUK-GA, espetáculo que integrou a programação do Festival de Curitiba 2013. A partir do gênero tradicional do pansori, uma espécie de canção narrativa, interpretado por um ator-cantor e um percussionista, JaRam nos faz acompanhar a trajetória de Anna Kim e seus filhos pelas legendárias guerras chinesas do século II e, de forma virtuosa e carismática, opera de forma precisa aquilo que Brecht definia como “a presença de duas personagens, um que apresentava e outro que era apresentado”.
Se na cena em que Mãe Coragem perde seu primeiro filho ou ainda na que a filha muda acaba assassinada ao alertar a chegada do exército inimigo ela emudece o teatro e arranca lágrimas do espectador, completamente afetado emocionalmente pela potência de seu gestual, no segundo seguinte o desmonta, retirando-o daquele momentâneo e potente estado de transe.
O Pansori é a base para que JaRam se lance nessa narrativa de maneira quase visceral ao mesmo tempo que distanciada, sempre convidando o espectador a fazer parte não só da reflexão acerca do que se vê no palco, mas, também, de como isso acontece – através de pausas para se dirigir diretamente à plateia, de referências que nos fazem lembrar sempre de que a guerra continua presente entre nós e de procedimentos que ressaltam o evento teatral, rompendo qualquer possibilidade de identificação com os personagens; todos eles criados e apresentados pela própria “perfomer”, como o define Jorge Glusberg, “aquele que não ‘atua’ segundo o uso comum do termo; […] ele não faz algo que foi construído por outro alguém sem sua ativa participação.”
Através dessa canção tradicional, em alguns momentos mesclada a versões mais contemporâneas do rock e do pop, JaRam alcança tons, timbres, lugares muito singulares da percepção, um estado único de presença, talvez aquilo que Grotowski buscava nas práticas rituais de diferentes tradições em sua fase do teatro das fontes, ou que Artaud definia como “febre”, ou o que Peter Brook queira dizer ao afirmar “fazer vibrar uma corda idêntica em todo observador, seja qual for seu condicionamento cultural. Articular uma arte universal, que transcende o nacionalismo estreito, na tentativa de atingir a essência humana”.
Apenas com um leque nas mãos e acompanhada por três músicos, mais que realizar uma adaptação quase exemplar no que condiz ao que entendemos como os fundamentos do teatro de Brecht, JaRam intercala um poder quase explosivo de seu canto e de seu corpo a sutilezas de olhar, de postura, de estado, sem transformar a virtuose em mera exibição e zelando, em primeiro lugar, pela capacidade potencial que a arte teatral tem de promover o encontro no presente.