Fotos de Paula Kossatz |
Julia Guimarães*
“Entre Nós – uma comédia sobre diversidade”. Foto de Sora Maia. |
Tem certos espetáculos que, para além de serem bons ou ruins, são necessários. A considerar toda uma historiografia dramatúrgica brasileira que, recorrentemente, coloca o homossexual numa posição estereotipada, repleta de lugares-comuns e preconceitos implícitos ou escancarados, problematizar esse tema no teatro é, de primeiro sobressalto, um modo de subverter essa complicada tradição.
Nesse sentido, a montagem “Entre Nós – uma comédia sobre diversidade”, de Salvador (BA), não só traz novos questionamentos a esse universo como também adota uma linguagem bastante pertinente para convocar o público a partilhar a reflexão sobre o assunto. O espetáculo se apresentou no último domingo (10) em Três Rios, na programação do OFF Rio Multifestival de Teatro.
Pertencente a uma linhagem cênica que valoriza certa dimensão processual e metalinguística da encenação e da dramaturgia – e nesse sentido, poderia aproximar-se, por exemplo, de “Ensaio.Hamlet”, da Cia. dos Atores (RJ) – “Entre Nós” se constrói como uma grande pergunta, que, pouco a pouco, vai sendo respondida pelos personagens.
Numa espécie de peça-ensaio-debate, o texto de João Sanches, que também assina a direção, procura criar entre os atores Igor Epifâno e Anderson Dy Souza a sensação de que estão discutindo no calor da cena a maneira como deveriam encenar uma história homoafetiva no teatro.
A dimensão de jogo está presente também na opção deles representarem 12 personagens distintos na peça, construídos a partir de pequenos e precisos códigos corporais. Alguns deles são emblemáticos para traduzir a atualidade das questões tratadas. É o caso da diretora do colégio, que afirma apoiar a diversidade sexual desde que as demonstrações de afeto entre os colegas não adentrem o interior da escola ou da mãe moderna que já assimilou de tal forma a homossexualidade do filho a ponto de desenvolver um preconceito às avessas: teria pavor que ele, um dia, trouxesse uma namorada em casa, encarada como a rival do mesmo sexo.
Sem cenário e coxias, a atmosfera das cenas fica a cargo da iluminação, manipulada pelos próprios atores, e, principalmente, pela trilha sonora, executada ao vivo pelo músico Leonardo Bittencourt, com pérolas bem-humoradas do universo pop.
E é sobretudo ao conferir leveza cômica à abordagem, seja ao brincar com os clichês, seja ao escancarar dúvidas e inseguranças tanto dos personagens-atores quanto dos personagens da história encenada que a montagem os humaniza e, assim, possibilita ao espectador a identificação ou, pelo menos, a adoção de um olhar mais sensível para aquele universo.
Nesse esquema da peça-debate, cabe inclusive ao público de cada noite decidir se o casal se beija ou não ao fim do espetáculo. Para uma sociedade que acostumou a ver em novelas um tratamento de casais gays quase casto, no qual eles mal se tocam, a decisão sobre o ato de consumar ou não um beijo gay ao vivo ajuda a criar no espetáculo uma camada a mais de complexidade, e serve como reflexo sobre quais são os limites de aceitação e intolerância da plateia a cada apresentação.
*A jornalista viajou a convite da produção do OFF Rio Multifestival de Teatro.
Foto Rodrigo Silva (divulgação) |