“Desde que nasci
A voz da mulher
Me embala
Me alegra
Me faz chorar
Me arrepia os cabelos
Me faz dançar
Me cala ressentimentos
Me ensina a amar…”
(Voz de Mulher. Leila Pinheiro).
– por Clóvis Domingos –
Crítica a partir dos espetáculos “Evandro e Dimas: os nomes escolhidos”, de Marina Marcondes Machado, e “Todas Vozes, Todas Elas”, do Grupo de Teatro Mulheres de Luta (Ocupação Carolina Maria de Jesus).
Ano passado tive duas experiências cênicas que considero potentes e que mobilizaram meu exercício de espectador e pesquisador teatral: partilhar um espetáculo num apartamento silencioso e na companhia íntima de apenas mais duas pessoas; e, em outro momento, assistir a uma performance coletiva no espaço de uma efervescente ocupação urbana e misturado a muita gente, ruídos e dispersões. Espaços dissonantes, mas com um ponto em comum: a presença feminina.
“Evandro e Dimas: os nomes escolhidos” traz à tona a memória de dor de uma mãe diante da perda real dos filhos gêmeos, ainda no período de gestação. O trabalho pode ser considerado como um delicado e necessário rito de cura e de elaboração de um luto que há mais de trinta anos acompanhou Marina Marcondes Machado. Para realizar essa obra documental e enfrentar o tabu de abordar temas sempre silenciados como perda e morte, Marina revolveu seus escritos da época, suas caixas com diários produzidos na gravidez e documentos importantes como o atestado de óbito, e transformou seu apartamento em um espaço cênico e ao mesmo tempo lúdico, com a criação de imagens de forte dimensão poética, mnemônica e ficcional. Charles Valadares e Raysner de Paula assumem e ocupam o lugar desses filhos que hoje estariam adultos e, dessa forma, permitem que, no presente, a artista vivencie pequenos gestos amorosos de uma mãe que cuida, alimenta, embala, banha e lê para seus filhos. Em texto publicado em seu blog, a artista afirma o seguinte:
Charles e Raysner encarnaram Evandro e Dimas, ao longo do ano de 2017, e, ao ver os gêmeos crescidos e saudáveis, por meio da ilusão do teatro, eu pude dizer adeus. Com este trabalho vou expurgar a dor, a recordação, o cheiro do inverno que mistura também a mancha de sangue vermelho na calcinha durante a recuperação do “aborto espontâneo” (que expressão terrível!) e a nitidez do cheiro, nas narinas, de um tipo de spray cicatrizante que se usava nesses casos, à época.
“Evandro e Dimas: os nomes escolhidos” é um trabalho corajoso, de curta duração, mas capaz de criar espaços afetivos pelo fato de se apropriar de dispositivos autobiográficos e autoficcionais (presentes na cena contemporânea) que convocam os espectadores (ou serão testemunhas) a vivenciarem uma experiência real e pessoal, mas que, ao ser partilhada, se transforma em ato coletivo e público. Um pacto se cria entre cena e vida real, e o minúsculo ambiente de um apartamento parece se transformar num útero. Numa dimensão liminar se cruzam: realidade e fantasia, nascimento e morte, teatro e performance, luto e cura, dor e alegria, passado e presente, frustração e realização.
Outra questão: a utilização do espaço do apartamento como um lugar cênico, com infinitas possibilidades de narratividade, presença e discurso, a mim revelou que tecer uma cena poética pela força de uma espacialidade já configurada depende de um gesto de subversão e reinvenção. No caso de “Evandro e Dimas: os nomes escolhidos”, a criação de um site-specific que intensifica a qualidade emocional e a adesão necessária para a concretização de um encontro no qual “arquivos pessoais” serão materiais disparadores e ao mesmo tempo aglutinadores de uma experiência compartilhada.
Mas é preciso salientar que a dramaturgia desse trabalho não se apoia em golpes melodramáticos afim de nos atingir de forma certeira e desonesta e, assim, gerar tristeza, pelo contrário, há uma serenidade e sinceridade éticas num ato de exposição sensível, amparado por uma estrutura estética bem delineada ao apresentar gestos escolhidos, fragmentos textuais selecionados e bem conectados, além de imagens editadas.
“A vida para ser vivida tem que ser reinventada” — assim escreveu Cecília Meirelles. E Marina parece ter compreendido tal máxima, criando não mais um espetáculo para ser apreciado e consumido (tanto que não existem anúncios, registros e imagens e só aconteceram seis sessões), mas um ato cuja “voz de mulher (me) ensina a falar, a enfrentar as dores e perdas e criar outros mundos possíveis”. Como nos aponta a psicanálise, se o trauma e o luto se inserem no campo do real, como encontrar sentido para o sofrimento psíquico senão se investindo no simbólico, que está presente, por exemplo, no exercício artístico? No final do trabalho, atuantes e espectadores conversam sobre a experiência, enquanto tomam suco, água de coco ou uma dose de vodca. Sensações, palavras, memórias e questões continuam a reinventar a vida e circulam por lugares de fala e lugares de escuta. Encontro humano, demasiadamente humano. Possibilidades abertas de cura.
Vozes que ecoam lutas e conquistas
“Todas Vozes, Todas Elas” , do Grupo de Teatro Mulheres de Luta, tem direção de Cristina Tolentino e atuação das moradoras da Ocupação Maria Carolina de Jesus. Estreou dentro da programação do Ocupa Política, encontro nacional que reuniu ativistas, coletivos e movimentos de todas as regiões do país e da América Latina em Belo Horizonte. Impossível não se sensibilizar com a presença de mulheres anônimas que transcenderam seus afazeres cotidianos pela força da prática teatral. Tal vivência me trouxe à memória o teatro político e social de Augusto Boal e sua crença de que “todo mundo pode fazer teatro, até os atores”.
Uma plateia emocionada pôde assistir a um ato performativo que articulou materiais sonoros e poéticos (a partir de artistas como Mercedes Sosa e Conceição Evaristo), com depoimentos sobre a vida de cada atuante e sua experiência de fazer parte de uma moradia coletiva:
Meu nome é Emanuelle. Antes de morar em uma ocupação não sabia dos meus direitos e dos direitos das mulheres. Via muitas injustiças e não sabia como lidar com elas. Agora eu sei que sou forte e que nós, mulheres, juntas, podemos, podemos muito. Estou na luta, sou mulher. Posso ser o que eu quiser. Sou livre, sou linda, sou louca, sou luta, sou minha. Então mulheres, vamos parar de competição. Juntas somos revolução! (Trecho do texto da performance).
“Todas Vozes, Todas Elas” aborda a violência contra as mulheres, o racismo nosso de cada dia, as possibilidades de luta e transformação. O espaço cênico é composto de cadeiras nas quais as mulheres, sentadas, descascam batatas e conversam sobre a vida, entremeando momentos de riso e de indignação. Vão gritando/convocando os nomes de muitas outras mulheres e a resposta em coro é enfática: “presente”.
A concepção proposta pela encenação de Cristina Tolentino tem o mérito de dialogar com a realidade das atuantes, tanto que, num determinado momento, imagens da vida dessas mulheres são projetadas num vídeo que as mostra em suas ações dentro da ocupação e em off escutamos um poema de Conceição Evaristo. Nesse momento todas as vozes, todas elas se fazem ouvir: “a voz da minha bisavó, a voz da minha avó, a voz da minha mãe, a voz da minha filha, a minha voz. O ontem, o hoje e o agora”. Olhando nos olhos do público, as atuantes retiram seus aventais e começam a se reinventar: arrumam seus cabelos, passam batom etc. No final o que vemos é o gesto coletivo de jogar as batatas e cascas no chão e assim esvaziar os baldes.
Na imensa sala destinada a apresentação desse trabalho, feito uma assembleia reunida numa espécie de meia-lua, moradores da ocupação e visitantes se misturavam e partilhavam o mesmo espaço, estabelecendo a presença e o convívio de um público ruidoso e participativo. Corpos exaustos e impregnados de um dia intenso de debates e discussões políticas urgentes. À sua frente, as mulheres sentadas exibiam um largo sorriso, e atrás delas, era possível vislumbrar suas sombras agigantadas desenhando inusitadas formas sob a parede branca. Lembrei-me de Simone de Beauvoir: “é na arte que o ser humano se ultrapassa definitivamente”.
Do luto à luta
“Canta comigo, canta/ Hermana compañera/Libera tu esperanza/ Con um grito em lavoz!”
Mercedes Sosa
De cada uma dessas experiências, ganhei “lembrancinhas” dessas visitas: um pequeno bloco de notas com o nome dos gêmeos na capa e alguns panfletos com diversas lutas sociais. Afirmo minha alegria por escrever sobre trabalhos liminares e minoritários (experiências periféricas? “outras cenas?”), manifestos femininos e poéticas da reinvenção altamente mobilizadores de afetos emancipatórios e políticos.
“Evandro e Dimas: os nomes escolhidos” e “Todas Vozes, Todas Elas” tocam na possibilidade de cura e transformação ao tratarem de temáticas femininas que envolvem o luto e a luta. Ao escrever esse ensaio crítico, é como se eu pudesse aproximar Marina e as atuantes da Ocupação Maria Carolina de Jesus para juntas escutarem a necessária e combativa voz de Conceição Evaristo:
A voz da minha filha
Recolhe todas as nossas vozes
Recolhe em si
As vozes mudas caladas
Engasgadas nas gargantas.
A voz da minha filha
Recolhe em si
A fala e o ato.”
Referências:
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
Ficha técnica dos trabalhos:
Evandro e Dimas: os nomes escolhidos
Dramaturgia e direção: Marina Marcondes Machado
Atuação: Marina Marcondes Machado, Charles Valadares e Raysner de Paula.
(Trabalho visto em 06 de novembro de 2017).
Todas Vozes, Todas Elas
Criação: Grupo de Teatro Mulheres de Luta
Direção: Cristina Tolentino
Atuação: Cristina Elisângela Gomes, Nilmara de F. Ramos, Ana Luiza C. de Macedo, Priscila S. Anacleto, Poliana Campos, Liliana Ramos, Tatiana Cristiana de Paula Teodoro, Emanuelle Aparecida de Oliveira e Larissa Vitória da Silva.
(Trabalho visto em 08 de dezembro de 2017).