Texto-conversa a partir de AntígonaS do Grupo de Teatro Mulheres de Luta (Belo Horizonte/MG).
– por Clóvis Domingos e Nina Caetano –
Foto: Cristina Tolentino
Clóvis: Obrigado por aceitar essa conversa crítica sobre o trabalho AntígonaS. Acho fundamental escutar uma voz feminina para se debater as reverberações e possíveis leituras a partir da atual performance do Grupo de Teatro Mulheres de Luta. Como acompanho há muitos anos a tua pesquisa que entrecruza arte, política e feminismo, fico muito curioso com a tua recepção da obra. Poderia me dizer um pouco das tuas impressões?
Nina: Fico muito contente de poder compartilhar com você minhas impressões desse trabalho. Lembro que no dia em que o acompanhamos, lá na Ocupação Carolina Maria de Jesus, falamos em tecer uma crítica colaborativa e me instigou o formato que você propõe aqui: uma crítica-conversa, de modo que as questões que lança podem ser disparadoras para meus pensamentos. Então vamos lá!
AntígonaS já havia despertado meu interesse antes mesmo de chegar ao local de apresentação, em função do grupo que escolhera atualizar o antigo mito grego: um coletivo teatral composto por mulheres moradoras de uma ocupação urbana. Sua realidade e os temas que atravessam sua existência, aliados ao leitmotiv do trabalho – o mito trata de uma mulher que, em defesa do direito sagrado à memória dos seus, desafia as leis do Estado – dialogam diretamente com questões centrais em minha atual pesquisa artística e docente que, como você mesmo salientou, articula aspectos estético-políticos da performance em uma perspectiva feminista. Adiante, comentarei de maneira mais demorada sobre essas aproximações e também sobre a atualidade de Antigona de Sófocles no contexto desta montagem que já impacta, de saída, pelo espaço utilizado na encenação, justamente a ocupação que as performers e suas famílias habitam, local que é, ao mesmo tempo, espaço-conquista de luta e resistência comunitária e lugar cotidiano de moradia. Um espaço que é, ele mesmo, um desafio às legislações vigentes, as quais operam, muitas vezes, em defesa dos interesses de grupos investidos de poder econômico.
Como você bem se lembra, enquanto esperávamos o início do trabalho, transitamos pela feirinha instalada no térreo (em que moradoras vendiam produtos de sua fabricação ou agitavam um brechó), vimos passar um fogão, observamos o vai-e-vem dos jovens que também aguardavam o espetáculo e o rumor das crianças brincando… depois fomos convidados a adentrar o lugar, a partir dos “quadros” (ou estações) que, instalados em diferentes espaços da ocupação, iam compondo a dramaturgia.
Mas comecemos do início: o coro de abertura, com a canção Miren como sonríen, de Violeta Parra, na voz do Grupo de Teatro Mulheres de Luta. Já tinha tido a oportunidade de vê-las no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em 2018, e me instigara o modo como, não sendo atrizes de formação, elas manipulavam, sob a batuta da diretora Cristina Tolentino, o jogo cênico numa perspectiva performativa de “não-atuação”. Em Todas as Vozes, Todas Elas, o cotidiano da ocupação urbana é tematizado – seja por meio de projeções ou de ações realizadas em cena – e as performers falam em seu próprio nome, trazendo o contexto social em que estão inseridas, mas, principalmente, a singularidade de cada presença, ao entrelaçar o poema de Conceição Evaristo a fragmentos de sua (auto)biografia. Depois gostaria que você comentasse a sua experiência de recepção do primeiro trabalho do grupo, pois sei que você o assistiu na Carolina Maria de Jesus e deve ter tido, acionadas pelo que podemos chamar de dramaturgia do espaço, impressões bem diferentes das minhas que, de algum modo, foram enformadas pelas convenções do edifício teatral.
Mas voltando a AntígonaS… Diferente do trabalho anterior, nesta montagem a dimensão teatral aparece mais forte, pois agora elas se distanciam um pouco de si para, à maneira épica, “representar”, no duplo sentido da palavra – ou seja, tanto “fazer o papel” como “falar em nome de” – a figura emblemática de uma mulher que, em busca de justiça, luta contra o (necro)poder do Estado. De uma mulher que, nessa releitura, são muitas: a mãe que teve seu filho assassinado por agentes policiais ou aquela que o perdeu para a narcopolítica de combate às drogas ou ainda aquela que, vítima da força avassaladora do capital, teve tudo engolido pela lama tóxica de Brumadinho.
Não é à toa que o espetáculo começa com uma canção que marca o descaso dos governantes: Miren como redoblan/ Los juramentos/ Pero después del voto/ Doble tormento. Desse modo, o coro de mulheres já evidencia a perspectiva ético-estética do que será posto em cena, trazendo, como na tradição grega, a “voz da pólis”, ou seja, sua dimensão pública. Entretanto, aqui, o coro de AntígonaS demarca a existência de corpos diversos, invisibilizados pelas políticas de morte de um Estado misógino e racista que extermina cerca de 40 mil vidas negras por ano: “E se voltamos hoje, a uma história tão antiga, é porque vemos nela, um rastro ou uma forma de vida Se no passado remoto, o bem e o mal existiam, hoje buscamos outras caras, queremos mais vozes Antígonas[1]”.
Clóvis: No trabalho anterior do grupo, Todas as Vozes, Todas Elas, já se apresentam questões como performatividade, a coralidade, o manifesto político, o tema da violência contra a mulher, além das vivências das atrizes em seus cotidianos na Ocupação (tanto no ato ao vivo de descascar as batatas quanto nas imagens projetadas das reuniões e atividades desenvolvidas por elas na vida comunitária). Em AntígonaS acho que muitas dessas proposições cênicas continuam pulsantes, mas sinto que a proximidade com a tragédia grega traz novas camadas discursivas. A luta feminina frente aos poderes do Estado está presente tanto nos primórdios gregos quanto na atualidade. Outro ponto que queria destacar é esse retorno aos mitos para se falar dos nossos tempos. Como em Tragédia, o mais recente espetáculo do Quatroloscinco Teatro do Comum, há uma evocação à essa personagem tão combativa para se pensar o Brasil, mas acho que numa dimensão mais política e coletivizada, quase alegórica mesmo. Arrisco-me a pensar que nesses dois trabalhos, recorrer a Antígona não seria apenas para se falar sobre o sagrado direito de enterrar seus mortos, mas da necessidade urgente de se desenterrar aquilo que insistimos em manter oculto e silenciado.
Nina: Parece-me interessante pensar justamente na questão de fundo que suas ponderações levantam: por que tratar de Antígona no Brasil de hoje? O que há de candente neste mito grego tão antigo que se atualiza em nossa sociedade? Para responder, me parece necessário buscar o seu móvel menos no aspecto sagrado que atravessa o mito e nos concentrar mais na alegoria de uma busca – uma jornada, uma saga, um ato, um grito – por justiça que, de certo modo, a figura de Antígona, em ambas as montagens, encarna. É preciso considerar, ainda, esse aspecto importante: é uma mulher que põe em xeque a violenta e masculina lei, é ela que, ao declarar-se “nascida para o amor, não para o ódio”, “coloca em desequilíbrio a voz dos Homens”, é ela “que provoca temor porque não se cala[2]” ante o branco peso patriarcal do Estado. Este fica patente, em AntígonaS, por meio da presença de Creonte – simbolizado na máscara que as performers portam a cada vez que trazem sua voz – e também no aspecto classista, misógino e racista dos decretos com que ele, como governante, anuncia leis nem sempre justas:
Decreto primeiro: é proibido o luto por não cidadãos; é proibido o luto a estrangeiros e exilados, aos de pele escura e aos escravos, aos despossuídos.
Decreto segundo: às mulheres é necessária a delimitação de seu espaço na cidade, assim como a submissão de seu corpo à ordem citadina.
Decreto terceiro: é proibida a invasão de qualquer espaço, na cidade e no campo, sem a determinação judicial.
Decreto quarto: a morte é uma obrigação do estado em tempos de paz, para que se perpetue a paz[3].
Nas entrelinhas dos decretos apresenta-se, como podemos perceber, uma visada crítica em relação à já mencionada necropolítica do Estado, em que determinados corpos são vistos como ameaças às políticas econômicas neoliberais. É perceptível, inclusive, a tentativa de controle desses sujeitos, colocados às margens da sociedade brasileira e considerados desimportantes: suas vidas são precárias e suas mortes não encontram lamento nem ganham comoção pública. Na contramão dessa política de invisibilidade, em AntígonaS “o ato de lembrar se transforma em ação política” (CABALLERO, 2011, p. 104. Cenários Liminares, EDUFU), como é possível observar na cena em que, sobre a terra de uma cova, as mulheres vão depositando, uma a uma, diferentes objetos-corpos.
Se a Antígona grega é marcada pela solidão heroica de uma ação amorosa, mas sobretudo religiosa, talvez na coralidade das AntígonaS contemporâneas, a dimensão afetiva se traduza, como afirma Caballero (2011, p. 38), em uma potência liminar “fora da esfera estritamente sagrada” que, pelo “potencial que representa para refletir as situações cênicas e políticas inseridas na vida social”, permite a instalação de gestos de solidariedade que, em comunhão com o gesto de Antígona, subversivo em sua origem, reverberam em outras tantas mulheres para quem “o amor era mais forte do que o medo” (CABALLERO, 2011, p. 73).
Clóvis: Em AntígonaS também percebo uma dimensão cênica liminar, na concepção proposta pela pesquisadora latino-americana Ileana Diéguez. Uma mistura de arte, gesto político, fricções entre teatralidade e performatividade, e principalmente ação cidadã, pois são as moradoras de uma Ocupação fazendo teatro. Vejo a performance como uma trajetória pelos espaços físicos da Ocupação Carolina Maria de Jesus ao mesmo tempo que percorre os fatos históricos e sociais. Numa espécie de “cena de estações” somos envolvidos pela carga simbólica e real daquele lugar, e isso se sobrepõe à recepção da obra. Antígona está na mulher que nos recebe na porta, na moradora que vende os produtos feitos pela cooperativa, nas jovens que transitam entre nós. Se trata mesmo de uma arte contextual. Para mim as Antígonas são como vozes que não aceitam serem caladas pelo poder opressor, patriarcal e estatal, assim como aquelas mulheres e famílias que habitam o espaço.
Nina: A liminaridade que você aponta é um dos elementos que mais me interessa em AntígonaS, justamente pela fricção entre a vida dessas mulheres em seus múltiplos aspectos – o que poderíamos pensar como espaço do real – e a dimensão ficcional que a encenação traz, seja na remissão à Tebas de Creonte, seja na articulação cênica das estações que percorremos ao longo do trabalho. Se na performance anterior explorava-se mais a dimensão subjetiva das moradoras da ocupação, trazendo à tona sua humanidade singular, no presente trabalho o aspecto social e comunitário se apresenta de maneira mais premente. Mesmo quando investidas de uma narrativa outra, que amplia a problemática social para além das experiências da ocupação, não é possível descolar o vivido e o visto em cena da realidade que acossa as performers: ela está presente em seus corpos, nas ambiências entre as quais nos deslocamos, no conteúdo discursivo e, principalmente, na perspectiva ético-estética trazida na montagem. A dimensão liminar está presente na camada textual, mas também nas ações, na dramaturgia do espaço, no diálogo que se tece entre a carga simbólica do lugar e o mito de Antígona, atualizado nos desafios diários que o espaço da ocupação enfrenta. Como um espaço que é resultado de muitas lutas por moradia, ele já traz em si o embate com o Estado que, como a gente vem discutindo até aqui, é cerne do mito de Antígona. Aqui, o confronto com as leis que defendem o avanço da exploração econômica, mas não os direitos civis daqueles que nada têm, se traduz em po-éticas de resistência que, como manifesto político, colocam em questão sua legitimidade ou sua capacidade de “fazer justiça”.
Foto: Priscila Anacleto
Clóvis: A respeito da dramaturgia do trabalho, acho que não há diálogos diretos, mas discursos paralelos e em oposição e que são direcionados aos espectadores. A dramaturgia do espaço é também ressaltada por se tratar de uma proposta que envolve deslocamentos por salas temáticas e com instalações e dispositivos diferentes. Por exemplo, é muito forte a cena em que há uma cova coberta por objetos, pois podemos identificar ali as lembranças de muitos mortos e desaparecidos pela violência policial e estatal. Quando elas cantam Se essa rua fosse minha, duas possibilidades de leitura se somam e ampliam outras significações: da voz materna ninando o filho morto numa dimensão mais singular, e ao mesmo tempo, um lamento que poderia ser escutado como “se essa cidade fosse minha”, numa visada coletiva e social. A criança (Lia Sophya) que também atua na performance é a última a colocar um objeto sobre a terra: uma pequena bandeira do Brasil. Um gesto marcadamente simbólico. Essa parte me remete à dor das mães negras e pobres que enterram seus filhos vítimas da truculência assassina do Estado. Lembro, Nina, da tua ação Chorar os Filhos, esse tema da memória e do luto. Você vê alguma relação?
Nina: Sim, a conexão foi imediata! Para mim, já a própria figura grega, em seu ato transgressor de enfrentamento, tem aproximação com Chorar os Filhos que, para quem não sabe, nasce do gesto-Antígona de Bruna Silva, moradora da Maré cuja imagem carregando o uniforme ensanguentado de seu filho Marcus Vinicius, de 14 anos, assassinado em uma operação policial quando ia para a escola, atuou como disparadora de minha ação, na qual ecoa seu grito de resistência: “calaram o meu filho, mas não calaram a sua mãe”. Em Chorar os Filhos, parto de depoimentos de mães que perderam seus entes queridos assassinados por agentes do Estado para instaurar, por meio da costura de uma mortalha que se pretende coletiva, um espaço de reminiscência que pode propiciar uma espécie de cura coletiva, como também é perceptível na cena que você menciona, na qual cada objeto traz à tona a memória de um corpo, de uma vida.
Como afirma Ileana Diéguez Caballero (2011, p. 75), nestas situações [de luto], “as ações poéticas parecem ajudar a regeneração do tecido da memória para que as comunidades e as pessoas possam começar a ultrapassar a dor”. Qual dor? A dor da perda, mas também a dor e a indignação causadas pela ausência de justiça que mata e adoece. Lembrei-me que, em Cenários Liminares (EDUFU), a pesquisadora trata de uma montagem do texto sofocliano feita pelo grupo Yuyachkani (Peru, 2000) no contexto da queda de Fujimori, cujo governo fora marcado por uma guerra civil e pelo extermínio de amplas camadas da população: há um registro de mais de 70 mil mortes entre 1980 e os anos 2000.
Caballero salienta que em contextos de violência estatal, em que prevalece o silenciamento, a repressão e a censura como modos de minar a resistência civil, seria possível pensar a arte como algo que, persistindo em “não esquecer”, pode, “além de denunciar”, sugerir “formas de restauração simbólica” (CABALLERO, 2011, p. 104). Se trazemos para o contexto brasileiro, no qual, segundo dados do IBGE, a cada 5 homicídios, quatro têm como vítima uma pessoa negra, sendo a maior taxa de homicídio a de jovens negros do sexo masculino, com idade entre 15 e 29 anos, percebemos que “a contraposição entre ética e política estatal” (CABALLERO, 2011, p. 72), que é uma discussão central em Antígona, não é mais um problema do texto poético apenas, mas torna-se capaz de criar uma estreita conexão com aspectos da realidade social que são comuns a uma diversidade de pessoas, encontrando ressonância em diferentes corpos.
Clóvis: Destaco o momento no qual se separam homens e mulheres em salas distintas. Na sala masculina o que temos é a projeção de imagens de morte e pobreza, a exibição de espaços gentrificados da cidade de Belo Horizonte, a produção de cenas de destruição e miséria social em contraposição a emissão de um discurso oficial (como se fosse por parte de Creonte) de que “o Estado garante o direito à vida”. Um confronto entre discurso e imagem feito de forma quase irônica, provocando nosso senso crítico. Interessante que aos poucos, os ruídos da sala das mulheres vão ecoando sobre a nossa sala, como num ato de insurgência, até haver uma interrupção e ser invadido, acontecendo a nossa expulsão. Eu me senti constrangido nessa hora. Como foi a tua experiência na outra sala? Como analisa essa opção da direção do trabalho?
Nina: É interessante perceber que, no caso das mulheres, a cena atuou de modo distinto, numa perspectiva bem mais relacional. Longe de dar voz ao discurso oficial – que representa os interesses de uma pequena parcela da população – e longe de se dirigir à dimensão crítica e racional, como ocorre na cena focada no público masculino, na cena realizada exclusivamente com as mulheres, fomos convidadas à participação, quase em um apelo à sororidade e a uma comunhão que perpassa a vivência social de nossos corpos. Apartadas dos homens, as mulheres espectadoras foram conduzidas a uma sala na qual, por meio da canção e de uma gestualidade ritual que nos consagrava para a luta diária, fomos instigadas a nos juntar às atuadoras:
Já nos prenderam em uma caverna muitas vezes.
Já nos obrigaram a ficar no quarto, na cozinha, na sala, na casa.
Já esperaram por nossa morte feita sem sangue nas mãos.
Mas hoje dizemos não.
Não vamos mais morrer aqui[4].
Num primeiro momento da cena, as performers tinham se posicionado como figurações de Antígona, trazendo à tona, enquanto realizavam uma espécie de “pintura de guerra”, os diferentes modos combativos de ser mulher: “Sou Antígona/ A que escolheu dizer sim/ À vida. // Sou Antígona/ A que é dona de si/ E de mais ninguém. // Sou Antígona/ A que enterra seus mortos/ E seus pesadelos. // Sou Antígona/ A que durante a revolta/ Diz não[5]”. Em seguida, elas se aproximavam da plateia, perguntando o nome a cada uma das mulheres abordadas e oferecendo a pintura que, como gesto de comunhão, nos integrava à sua luta. Empunhando bastões, nos juntamos a elas para cantar uma canção que, apelando para a dimensão mais insubmissa de todas nós, já falava alegremente em desobediência ao poder machista:
Eu viro fera/ Enfio a unha em você
Sou arredia/ Eu não te dou permissão
(…)
Nenhuma filha/ Terá mais nada a temer
(…)
Eu viro fera/ Eu deixo o bicho pegar
Essa alegria/ É minha libertação
A alforria/ Assino com minha mão[6].
Clóvis: Os registros de interpretação das atuantes são diferentes quando se trata de Creonte e Antígona. As atrizes usam uma máscara e sempre estão lendo ordens e normas escritas em documentos quando incorporam o tirano grego. A máscara, como signo, tanto serve para especificar o personagem, como também poderia funcionar para se denunciar a política como um lugar de representação, de teatralidade mesmo, de farsa, mentira. Por outro lado, penso se Antígona e Creonte, mais do que gêneros feminino e masculino, não poderiam ser pensados como “estruturas”? Quando as atrizes usam a máscara e se metamorfoseiam em Creontes, penso que há neste ponto uma ampliação discursiva no sentido de que todos nós, homens e mulheres, podemos em algum momento performar essas figuras, isto é, ora impondo uma lei autoritária, ora se rebelando contra as injustiças. O que você pensa disso?
Nina: Então, me parece muito instigante a possibilidade que você aventa de que o mascaramento possa servir como denúncia da espetacularização da vida social de que Debord já tratava nos anos 1960, em especial da espetacularização da política, que vem ocorrendo no Brasil e no mundo nos últimos anos. Eu não havia pensado nisso e fiquei bastante interessada porque me lembra, inclusive, uma discussão que tem sido feita por pensadores da cena contemporânea que se debruçaram sobre o estudo do real e da performatividade, como Julia Guimarães que, bem recentemente, ofereceu oficinas em que analisa “as estratégias performativas e teatrais empregadas na política brasileira contemporânea”.
No entanto, quando pensa que tal recurso permite que cada um de nós assuma esses papeis – de Creonte tirano ou de Antígona subversiva – considero importante lembrar que, mesmo que os pensemos como “estruturas”, não podemos destituí-las de seus interesses. Ou seja, a marcação de gênero – bem como a de raça e classe – também importa no modo como as estruturas operam. Assim, me parece improvável que determinados corpos possam assumir determinados papeis, pois não são investidos de poder. Evidentemente, precisamos considerar as intercessões envolvidas nas relações de opressão, como já salienta as teorias feministas mais recentes, principalmente as desenvolvidas por feministas negras, como Kimberlé Crenshaw ou, no Brasil, Carla Akotirene. Elas buscam uma chave de análise interseccional para entender os diferentes aspectos envolvidos nos mecanismos de opressão. Se considerarmos as chamadas “avenidas identitárias”, é possível perceber que dificilmente uma mulher negra ocuparia o espaço de poder entronado por Creonte.
Clóvis: Sim, bom você elucidar esse aspecto por mim ignorado. No final as AntígonaS são atualizadas através de mulheres como Marielle Franco, Cláudia Silva e Olga Benário. O decreto feito por Creonte na performance: “Matem Antígona e a matem novamente! Matem todas as Antígonas que surgirem nesse mundo!”, acaba fracassando. Elas estão vivas, existem, resistem, lutam e incomodam. Penso que aqui se afirma a força da posição feminina: a vitória da vida sobre a morte, da luta sobre o luto, da possibilidade de mudança sobre a fatalidade da tragédia, da voz sobre o silêncio, do amor sobre o ódio, da arte sobre a censura. Nenhuma mulher será mais enterrada viva. Não será o gesto de Antígona um ato de linguagem, um ato insurgente de raciocínio que desestabiliza o que está posto como determinado e que não tem mais fundamento? Não estaria em diálogo direto com as lutas feministas contemporâneas?
Nina: Sim, é bastante inspirador encontrar a atualização da figura aristocrática de Antígona em tantos corpos diferentes do seu. Ao final, o trabalho não só celebra a força feminina, mas fala também da capacidade de resistência frente às relações de poder, de uma resistência que se constrói nos modos de solidariedade entre mulheres e na força comunitária. Quase que, como resposta às imposições assassinas de um Estado patriarcal simbolizado, na montagem, por Creonte, houvesse o erguer de tantas outras mulheres-sementes de futuro. Essa espécie de levante me lembra versos da canção “Cota não é esmola”, da poeta negra Bia Ferreira, com que quero encerrar meus apontamentos nesta deliciosa conversa-crítica:
Não deixe calar a nossa voz não!
Re-vo-lu-ção
Nascem milhares dos nossos cada vez que um nosso cai
Nascem milhares (Marielle Franco, presente)
Dos nossos
Nascem milhares dos nossos cada vez que um nosso cai.
Espetáculo visto em 08 de dezembro de 2019 na Ocupação Carolina Maria de Jesus.
Ficha técnica:
Elenco: Cristina Elisângela Gomes, Nilmara de Freitas Ramos, Poliana Campos, Dayane Mayara Dias, Maria Clara de Sena Chagas, Ana Caroline Campos Silva, Lia Sophya Campos Guimarães Lopes.
Direção: Cristina Tolentino
Dramaturgia/Roteiro: Gabriela Figueiredo, Pedro Kalil e Cristina Tolentino
Texto: Gabriela Figueiredo e Pedro Kalil
Preparação Canto: Júlia Mangaia
Consultoria Canto Indígena e Ritual: Avelin Buniacá Kambiwá e Darupu‘una Tikuna
Figurino: Luciana Alvim e Cristina Tolentino
Máscara: Aurora Majnoni
Iluminação: Tainá Rosa
Corte Cabelo: Cabelera Leca Alvim
Produção: Maria Fernandes, Jana Macruz
Contra-regra: Mariana Fernandes, Michelle Ferreira, Jana Macruz, Nath Lanças
Comunicação: Gabinetona
Videomaker: Edinho Vieira/ Gabinetona
Realização: MUITAS/GABINETONA
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Nina Caetano é performer e pesquisadora da cena contemporânea. Doutora em Artes Cênicas pela ECA-USP, é professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFOP. Desde 2007 integra o obsCENA, agrupamento independente de pesquisa cênica no qual investiga modalidades cênicas liminares. Tendo como eixo central da sua pesquisa as relações estético-políticas entre feminismo e performance, ela coordena, desde 2013, o NINFEIAS – Núcleo de INvestigações FEminIstAS.
[1] Trecho do texto de AntígonaS, com direção de Cristina Tolentino e dramaturgia de Gabriela Figueiredo e Pedro Kalil.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] Trecho de Suçuarana, canção de Pietá disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PmrVbAVifKU