Crítica a partir do espetáculo “Princesa Falalinda Sem Papas na Língua”, da O trem Companhia de Teatro (MG/SP).
– por Diogo Horta-
Fotos de Gerson Rubim
Os contos de fadas ainda são uma referência para as crianças, povoando seu imaginário por meio dos livros, mas também de vários brinquedos, além de roupas, cadernos, etc. Apesar de protagonista nas histórias, as mulheres foram geralmente retratadas como frágeis, facilmente enganadas e dependentes de príncipes encantados que as pudessem salvar no final. Já há alguns anos esse perfil de princesa é questionado, produzindo novos contos de fadas, nos quais a presença da mulher tem outro sentido na narrativa, como nos filmes “Valente” e “Frozen”. É nesse contexto que conhecemos a Princesa Falalinda Sem Papas na Língua em espetáculo da O trem Companhia de Teatro, com dramaturgia de Lívia Gaudêncio e direção de Cynthia Falabella.
A Princesa Falalinda é a protagonista de uma história também situada, como nos contos de fadas, em ambiente monárquico onde reis, rainhas, príncipes e princesas detêm o poder político e econômico de seus reinos. Falalinda cresce sem a presença materna e, segundo seu pai, vítima de uma maldição que a deixa sem papas na língua, ou seja, questionadora e em busca constante por respostas sobre aquilo que não compreende e nem aceita sem uma explicação pertinente. A dramaturgia é construída de forma que, só nos últimos minutos de espetáculo (alerta de spoiler), o espectador compreenda a história completa da princesa, que começa, na verdade, com a expulsão de sua mãe do reino.
Em ordem cronológica, resumidamente, a história ocorre da seguinte forma: após o nascimento da filha, a rainha não aceita os mandos e desmandos do marido e é expulsa do reino. Como sua filha iria crescer sem sua presença, ela lança um encanto para que a menina não aceite nenhum tipo de silenciamento vindo de seu pai ou de qualquer outro homem, tornando-a uma mulher questionadora de todos os aspectos da sociedade, incluindo o machismo. Chegada a idade adulta, o pai ordena que se case com um pretendente que assume o compromisso de silenciar a jovem. Ele o faz e aprisiona Falalinda em seu reino. Ao procurar sua filha, o rei descobre as condições vividas pela princesa e que ela não é mais a mesma, então se arrepende e tenta salvar Falalinda. A mãe retorna, vence o príncipe silenciador e faz com que a princesa volte ao seu estado natural, ou seja, sem papas na língua, tornando-se uma rainha honesta e amada.
A principal reviravolta da história é o fato de a bruxa (aquela que lançou o encanto sobre Falalinda), personagem de Fafá Rennó, ser também a mãe da princesa e personagem central da história, uma vez que foi ela quem quebrou o status quo e não se permitiu ser silenciada pelo rei, seu marido. Diante disso, o verdadeiro vilão deste conto de fadas é o homem machista, representado pelo rei, que ao final se arrepende, e pelo príncipe silenciador, que é transformado em um animal pela bruxa/mãe/rainha.
Com tantas nuances, a história só consegue chegar ao público com o apoio da narração, que é um recurso que remete o espetáculo aos contos de fadas e contribui para deixar a dramaturgia mais clara. Mesmo assim, a peça precisa acelerar os acontecimentos nos minutos finais, perdendo um pouco da força dramática nos momentos das revelações uma vez que são feitas em um breve diálogo. É possível que um equilíbrio maior entre a parte inicial do espetáculo e o final pudesse deixar mais tempo para o público absorver o arco da história e o enredo complexo criado por Lívia Gaudêncio.
Além de trabalhar com uma temática relevante e mudar o estereótipo da princesa recatada e do lar, o espetáculo tem o mérito de desenvolver uma pesquisa sobre o teatro para crianças com a criação de uma obra inédita para este público. A montagem valoriza a palavra em cena, o texto e o movimento, sem recorrer tanto à música para comunicar com as crianças, o que proporciona uma experiência distinta da tendência contemporânea dos musicais infantis.
Dessa forma, a montagem aposta em cenas capazes de comunicar apenas pelos movimentos como, por exemplo, na passagem da Falalinda criança para a adulta e na cena do silenciamento da princesa. É possível observar que o elenco também desenvolveu parte da criação dos personagens por meio do movimento, desde o gestual minimalista e marcado do rei, passando pelo exagero do príncipe, aos personagens caricatos vividos pela rainha/mãe/bruxa, que aparece ao longo da peça disfarçada de figuras curiosas para ajudar Falalinda em sua trajetória.
No que diz respeito aos demais elementos da encenação, se destacam o cenário e o figurino, que proporcionam referências precisas para o público do universo dos contos de fadas. Seria interessante se o cenário pudesse explorar melhor profundidade e altura, pois isso permitiria, por exemplo, que as cenas tivessem um pouco mais de variação espacial (altura, profundidade e lateralidade). A direção opta, de maneira geral, por manter as cenas sempre em frente ao módulo principal do cenário, explorando pouco outros recursos cênicos relacionados ao espaço que poderiam surpreender o espectador.
Uma cena destoa do restante da montagem: a versão de “I will survive” cantada (na verdade, dublada) pela bruxa/mãe. Apesar de levantar a plateia, a utilização da paródia não apresenta conexão dramatúrgica e cênica com os componentes apresentados até então e é difícil encontrar elementos que sustentem sua relação com a montagem. Tematicamente, os adultos podem buscar uma relação entre a letra da canção original e a história de superação da rainha, no entanto, isso parece ser uma busca forçada por sentido. A versão musical tampouco parece atrair o público infantil que não tem referências suficientes para reconhecer a canção original. Dentre tantas qualidades, este talvez seja um dos poucos pontos fracos (ou ainda não resolvidos) da montagem.
Retomando a reflexão sobre os pontos fortes, cabe ressaltar ainda algumas falas, informações e questionamentos que aparecem no espetáculo e que têm como foco principal os adultos. O humor e a conexão com os mais crescidos e vividos, são fundamentais em um espetáculo para crianças, uma vez que fazer a experiência teatral rica e atrativa a todos os públicos é chave para renovar o interesse dos pais pelo teatro. Nesse sentido, o espetáculo trabalha com algumas referências, como, por exemplo, a já mencionada versão de “I will survive”, bem como a interjeição “tá ok!”, usada pelo príncipe silenciador, em menção ao atual presidente da república. Além disso, algumas questões ditas por Falalinda certamente têm mais sentido para os adultos do que para as crianças, como, por exemplo: “Por que na reunião de pais só tem mães?”. Essa pergunta retórica, lançada em uma cena com várias outras indagações, permite uma aproximação com os adultos e pode abrir caminhos para diálogos entre mães, pais e filhos.
Os questionamentos de Falalinda são a chave para o seu empoderamento. Compreendendo o funcionamento das relações em sociedade e observando que vários comportamentos são hábitos e repetições sem reflexão, a princesa revela atenção especial às reinvindicações do povo. Com isso, consulta a população (o público) se o reino deve ser conduzido por ela ou pelo príncipe silenciador durante as cenas finais. A princesa mistura, de certa forma, monarquia e democracia e, sendo a mais votada, se torna a rainha dos dois reinos, de seu pai e do príncipe, sem chegar em nenhum momento ao casamento prometido nas cenas iniciais.
Para concluir, cabe salientar que tive a oportunidade de assistir à “Princesa Falalinda Sem Papas na Língua” no dia da estreia, e o espetáculo já deve ter crescido e ganhado ainda mais consistência no desenvolvimento de suas apresentações, sendo que algumas observações podem nem ser mais pertinentes. De todo modo, o material criado pelos artistas é rico e será capaz de proporcionar discussões a partir desse conto de fadas reimaginado com a força do empoderamento feminino.
Espetáculo visto no dia 04 de agosto de 2019, no Teatro do Minas Tênis Clube, em Belo Horizonte.
FICHA TÉCNICA
Texto: Livia Gaudencio
Direção: Cynthia Falabella
Elenco: Bia Brumatti, Daniel Faria, Fafá Rennó, José Sampaio e Livia Gaudencio
Stand by: Giovanna Leão
Direção de movimento e assistente de direção: Ana Paula Lopez
Trilha Sonora Original: Chuck Hipolitho e Thiago Guerra
Cenários e Figurinos: Kléber Montanheiro
Visagismo: Lira Ribas
Iluminação: Laura Salerno
Designer gráfico: Alexandre Brandão
Produção Executiva: Mariana Câmara
Direção de Produção: Marcelo Carrusca
Produção São Paulo: Tríplice Cultural
Realização: O Trem Companhia de Teatro