– por Marcos Alexandre
Crítica panorâmica a partir de trabalhos negros apresentados recentemente na cidade
Fotos de Pablo Bernardo, Maria Rita Fonseca e José Leonidas
Para além da segundaPRETA, outras peças potentes têm sido representadas na cidade e merecem destaque pela maneira como trabalham a estética negra, resgatando as tradições afro-religiosas e míticas, mas também apresentando, elaborando e ressignificando os lugares de representação dos negros e negras nas sociedades contemporâneas. São elas Segredo, com atuação de Helvécio Alves Isabel e Lúcio Ventania e texto de Ventania, e O Negro Conta, que conta com a atuação de Aruana Zamby e Evandro Passos, direção de Epaminondas Reis e dramaturgia de Francisco Falabella Rocha. Esteticamente, estas montagens podem ser lidas como propostas cênicas bem diferentes, mas é exatamente essa “peculiaridade” que chama a minha atenção e me interessa destacar: como os dois espetáculos “ilustram” possibilidades distintas de aproximação e de uma leitura analítica sobre os temas que têm sido discutidos na construção de produções artísticas entendidas como um teatro negro.
Segredo nos transporta para um espaço onírico da África Subsaariana e para o ano de 1200 d.C. Com a peça, os atores se propõem a trazer para as cenas aspectos políticos, culturais e religiosos deste momento específico, a partir de um universo de fabulações míticas em que nos deparamos com duas personagens interpretadas respectivamente por Helvécio Alves Isabel e Lúcio Ventania: Jabé Enjaí, um general do antigo império Gana, e Jája, o feiticeiro. O enredo proposto dramaturgicamente por Lúcio Ventura parece, em princípio, simples: assombrado por pesadelos, o General das forças de defesa do antigo império Gana procura desvendar o motivo de seus tormentos e sai em busca de Jája, quando, nas cercanias de uma aldeia longínqua e no oco de um Baobá, o general enfrentará os seus medos e angústias. A gravidade do que está por vir o leva à loucura, mas Jája “decifra” as premonições e o encanta. Há que se destacar que o uso do Baobá na peça, uma vez que como um vetor semântico a árvore representa um importante símbolo das culturas africanas tradicionais, trata-se da árvore sagrada cultuada e respeitada pelos os negros em vários rituais e que é vista como um pilar que possibilita a união do mundo transcendente ao imanente.
O universo da fabulação mítica representado pelos atores em cena é conduzido a partir da música de Iberê Sansara, que constrói uma trilha sonora que leva o espectador para os espaços oníricos pelos quais as duas personagens transitam. Chama atenção o uso de sons metálicos, a flauta e a presença direta e indireta do tambor como símbolo de religare na composição ritualística proposta pela peça em diálogo com a tradição afro-religiosa. O cenário proposto desloca o público para uma ambiência outra que, em princípio, não integra o seu cotidiano. A ideia de deslocamento do texto e das ações dramáticas para algum lugar da África Subsaariana funciona. No percurso da personagem para o seu autoconhecimento, a peça transita pelo universo de vários mitos de origens relacionados com a cultura afrodescendente. A figura do “feiticeiro” (que também pode ser lido como um griot, um babalorixá, ou mesmo um oráculo, para fazer menção à tradição clássica) simboliza a relação do passado com o presente, o peso da “fabulação” na vida dos afrodescendentes. Em um momento do espetáculo, por meio da figura deste Feiticeiro é trazido para a cena um dos mitos de Oxalá-Orumilá relacionado com a comida. A comida, aspecto tão presente nos arquétipos e nas mitologias dos Orixás, é foco do mito de Oxalá (o regente do mundo) é trazida para a cena como forma de ensinamento (para abrir a cabeça de Jabé), como uma prática do teatro negro, que tem como uma das características a formação de seu público. Oxalá pede a Orumilá para fazer e lhe servir a melhor e a pior comida e ambos os pratos preparados são “língua de boi”. A língua de boi é empregada como simbologia para fazer referência à melhor e à pior comida. Por meio dela, didaticamente, ensina o Feiticeiro: os seres humanos podem falar com os amigos e podem proclamar a justiça e a injustiça, podem proclamar os deuses; mas também com ela, os serem humanos podem difamar os deuses e os seus iguais, podem reproduzir mentiras e induzir ao erro uma alma boa e ingênua…”
Ora, o que aqui se discute tem a ver com o valor e a função da “língua”, da “palavra”, do “discurso”, a função griot que com as tessituras das palavras assume funções que constroem e destroem identidades e discursos. Do ensinamento do “Feiticeiro” ressoam as palavras proferidas ao General: “abra a cacunda Jabé, abra a cacunda Jabé!”. De toda a montagem, sobressai-se a imagem final onde o “Feiticeiro” relata a história – presença corporificada – de uma jovem agricultora de Gana: escravizada por homens brancos que a acorrentam e a levam para um lugar estranho onde se depara com outros homens brancos, passa pela experiência do negreiro em direção a outro destino e, na travessia, presencia inúmeras atrocidades que são cometidas contra as suas – guerreiras, camponesas, caçadoras e agricultoras de outras tribos; muitas morrem e têm os corpos lançados ao mar. A jovem agricultora de Gana sobrevive ao negreiro e, em terra firme, ela tem as identidades ressignificadas, envelhece trabalhando e, como muitas outras mulheres negras, carrega na memória a dor de ver o feitor abusando de sua filha. Seguindo o que lhe foi traçado, ela foge, é capturada, castigada, seu sangue escorre pelas costas e coalha na terra – a mãe terra, a mesma que dá de comer e recebe os seus filhos cedendo o seu leito como moradia final. Não obstante, ela não desiste da fuga e, durante uma madrugada, acorda as suas irmãs de luta e sofrimento e, na companhia delas, corre de mãos dadas em direção à mata escura, até que, ao amanhecer, é encontrada por guerreiras que as conduzem para o alto de um morro onde existe um quilombo. Da imagem-ato de resistência ecoa e permanece a ideia do quilombo como símbolo de liberdade e resistência.
O negro conta revive os lugares sociais do negro, apresentando os elementos de um teatro afro-centrado, comprometido e engajado. A dramaturgia, “costurada” magistralmente por Francisco Falabella Rocha, está baseada nas histórias de vida dos atores Aruana Zamby e Evandro Passos, dois artistas negros experientes e com uma trajetória de destaque na cena cultural da cidade. As escrevivências (fazendo referência ao termo proposto por Conceição Evaristo) dos artistas são trazidas para cena e o texto assume ressignificações amplas que vão aproximando as histórias dos dois artistas aos referenciais de vida de tantos outros negros e negras (presentes e não presentes na plateia) que vivenciam (ou vivenciaram), em nosso cotidiano, processos de abuso de poder, coerção, exclusão, segregação, mas também de autoconhecimento, de aceitação de suas identidades e de (re)construção de suas ideologias identitárias.
A inspiração nas memórias dos dois artistas negros mineiros – e ressaltar a melanina acentuada aqui é uma ferramenta discursiva – permite que a plateia se “comprometa” com os fatos que lhe vão sendo “contados” por meio da autoidentificação e/ou da sensibilização diante dos relatos que são performatizados pelos atores. O ato de contar (a função griot) mais uma vez é exaltado. Não obstante, aqui, diferentemente de Segredos, as narrativas não fazem referências ao universo da fabulação mítica, mas aos lugares sociais aos quais os atores se veem envolvidos. Os relatos trazidos para o palco assumem também uma voz coletivizada, as memórias pessoais, performativamente, são travestidas de memórias coletivas. Aruana Zamby e Evandro Passos emprestam suas memórias, amplificando-as, para dialogar com as memórias de muitos. Há uma preocupação, por parte da direção e da dramaturgia, por oferecer ao espectador momentos de humor e de reflexão. Os relatos são atualizados de maneira que passam a relacionar com as histórias de negros de todo o país, pois as formas de opressão e cerceamento da palavra e dos corpos negros são universais. As lutas, os momentos de felicidades, de abertura e cicatrização de feridas, de superações dos atores/personagens são revisitados no espetáculo em blocos (atos contínuos de resistência /contos), ressaltando assim cada “história” que passa a ser dividida com a plateia, mas também resgatando e exaltando as “histórias” de outras personalidades negras importantes que marcaram a trajetória dos dois artistas, entre outros nomes são destacados Paulino da Viola, Pixinguinha, Virgínia Bicudo, Zezé Mota.
A cada cena, novas histórias são entrelaçadas às escrevivências dos dois artistas, fazendo com que o espetáculo transite por linguagens estéticas: é Dança – não dá para negar a presença e a importância de Evandro Passos como dançarino (bailarino, performer) negro –, a dança dos Orixás e a presença do “tambor” como elo dos dois “universos” aparecem logo no início do trabalho; é Musical – a musicalidade se faz presentificada e corporizada em toda a peça a partir da participação do corpo-presença do violonista Robert Moura, que constrói novos arranjos para a obra de Cartola, Paulo Moura e Pixinguinha e acompanha os intérpretes com sua música feita ao vivo, mediando e intervindo nas histórias; é também Teatro Didático como reitera os atos performativos propostos por Aruana Zamby, reivindicando nas cenas o lugar do “teatro da palavra” no espetáculo, em lugar da “dança” e do “musical”. Interessante destacar a estratégia de direção, pois apesar de a atriz – formada pelo Teatro Universitário em 1985 e de ter um currículo que atesta a sua participação em vários trabalhos no teatro e na televisão – insistir várias vezes que não estava ali para cantar ou dançar, mas sim para fazer teatro, o que o espectador constata é a sua desenvoltura e talento também para o canto e para a dança. Estratégia que ratifica e reforça o argumento de que o artista negro tem competência para interpretar qualquer papel e para transitar em qualquer linguagem estética.
Uma das cenas de destaque é a que o músico Robert Moura toma o centro do palco para fazer um relato autobiográfico de um momento em que ele vivenciou: uma situação de preconceito e racismo no CCBB de Belo Horizonte, espaço no qual estava trabalhando, apresentando o espetáculo, e os seguranças – que sabiam de sua participação na peça, uma vez que ele não estava estreando o trabalho naquele dia e mesmo que assim o fosse a estratégia de abordagem foi completamente equivocada, racista e preconceituosa – monitorando-o a partir das câmaras que estrategicamente estão ali para vigiar a “todos” que frequentam o local, o seguem e o acusam de estar furtando o seu próprio instrumento de trabalho. É importante ressaltar que esta cena não fazia parte da dramaturgia originalmente (existia outra cena que cumpria a mesma função), mas diante do acontecido, o fato é incorporado à montagem dando mais potencialidade à linguagem engajada da proposta e, ao mesmo tempo, validando a perspectiva de que o teatro negro é sim político e comprometido com o seu tempo. Trazer esta discussão para a peça é uma forma de exercitar o poder da memória para não permitir que ações de coerção como essa caiam no esquecimento e não voltem mais a acontecer.
Com o Negro conta, o público tem a oportunidade de assistir dois atores potentes em cena, que jogam o tempo todo um com outro de forma fluida e leve, levando-o à diversão e à reflexão. As trajetórias artísticas de Aruana Zamby e Evandro Passos se convertem em pano de fundo para falar de “coisas” sérias e “doces”: as festas do baile black ao som de James Brown e as histórias de autoconhecimento dos dois atores – a militância política de Evandro, suas viagens para dançar, estudar e construir a sua carreira como bailarino no exterior, sua relação com a dança afro, a memória de preconceito vindo da parte de um professor na universidade; a alusão à formatura de Aruana Zamby no TU e sua experiência como atriz negra, a experiência traumática de quebrar o nariz e a incorporação deste fato para falar sobre o reconhecimento de suas identidades como mulher negra, as histórias de infância e a relação com a mãe, o vestido de noiva branco etc. As histórias se convertem na montagem em uma forma de reler o passado e, como os espelhos que compõem o cenário e são utilizados o tempo todo pelos atores, de mirar para também para além de seu tempo, é reflexo de um passado que busca ser corporificado no presente de muitos.
Retomando a segundaPRETA para a conclusão destas reflexões que não têm a intenção de serem aqui concluídas, pois estou certo de que ainda temos muito que discutir sobre o teatro negro e a cena preta de BH, retomo as palavras de Zora Santos, a homenageada da 3a Temporada da segundaPRETA, que, na noite do dia 16 de abril de 2018, passou a “coroa”, o “cetro” e suas palavras-alimento para Ana Maria Gonçalves, como já mencionado, a homenageada da 4a Temporada:
A segundaPRETA homenageia Ana Maria Gonçalves, na recepção desta escritora, pensadora e debatedora de coragem, penso na forma que podemos recebê-la, no gesto que convida a estarmos juntas e conversarmos, pensarmos e celebrarmos os nossos avanços neste mundo que parece insistir em se inscrever como um impasse e retrocesso. Tropeçamos, mas continuamos em movimento, em constante invenção, pois é de sabor que também vivemos. E seguindo a lógica da cerimônia do povo preto, a festa já começou. Não podemos parar. Não vamos parar! Vem com a gente Ana! Exu vai nos chamar premiando o nosso banquete lá na encruzilhada segundaPRETA. Desta mesa, compartilhemos deste momento aquilombado: é festa! Separamos nossas melhores especiarias e ervas que aqui foram semeadas pelos nossos para temperarmos o nosso encontro. Passado, memória e o presente sempre atualizado inspiram a receita que segue o saber do meu corpo, a partilha de muitas vozes que me acompanham e a intuição que também me guia. Estaremos lá, corações de manteiga, corpos-pimenta, palavras-gengibre, gestos-dendê, que, em mistura, gera o aconchego, ardência, achados, surpresas, reviravoltas e afinidades. Passo a passo, eu começaria aquecendo uma panela de pedra, que me parece pelo que a presença dela causa em nós, e imediatamente eu colocaria uma pêra, pensando nas palavras dela, e naquele pensamento que se faz matéria viva e fluida, em seguida, a pimenta entraria sem medida porque faz arder as entranhas e coloca em alerta, ela é mestra nesses itens e como é importante não perder, neste prato, perder as ardências, elas fazem a diferença dos nossos estados e desafios. Sigamos com eles, com ela, depois tem o gengibre, né gente, na medida certa, que suaviza a ardência e cura o corpo. Ele desanda nossas almas, pois precisamos sonhar novos sonhos, fortalecer entre os nossos, resistir e criar. No pilão, todas as ervas que os nossos ancestrais deixaram. Não nos esquecemos deles. Não nos esquecemos porque nos dão chão. Eu quero muito servir uma mesa enorme com toalha branca, com Ana na mesa com todo o quilombo junto se alimentando e partilhando saberes e sabores da palavra, dos gestos, da delicadeza e desta força da lenha. Vem com a gente Ana!
FICHAS TÉCNICAS
SEGREDO
Atores: Helvécio Izabel e Lúcio Ventania
Dramaturgia: Lucio Ventania
Figurinos e maquiagem: Maria Ciça
Trilha Sonora: Iberê Sansara
Fotografia: Pablo Bernardo
Luz: Juliano Coelho
Cenário: CERBAMBU RAVENA
Cenotecnia: Walmir Matias
O NEGRO CONTA
Direção: Epaminondas Reis
Dramaturgia: Francisco Falabella Rocha
Atores: Aruana Zamby e Evandro Passos
Músico: Robert Moura
Cenário e Figurinos: Lúcio Honorato
Criação de Luz: Wladimir Medeiros.
Produção: Maria Rita Fonseca
Referências:
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.