– por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras-UFMG/CNPq
Crítica escrita a partir do trabalho Bother Line, visto no dia 17 de agosto de 2017, no The Tank Theatre – NY.
Fotos de Rafael Acata
Esta noite eu chorei tanto
Sozinha sem um bem!
Por amor todo mundo chora
Um amor todo mundo tem.
Eu, porém, vivo sozinha
Muito triste sem ninguém.
Será que eu sou feia?
Não é, não senhor!
Então eu sou linda?
Você é um amor!
Respondam, então, por que razão
Eu vivo só, sem ter um bem?
Você tem o destino da lua
Que a todos encanta
E não é de ninguém.
Ai, eu tenho o destino da lua,
A todos encanto
E não sou de ninguém.
A atriz-performer já está em cena e permanecerá sentada numa cadeira e diante de uma pequena mesa, enquanto o público adentra o The Tank, um pequeno teatro no 8° andar da rua 46, bem próximo da Time Square e de dezenas de outros teatros da Broadway. O palco é raso e o espaço da sala é bem intimista, com uma ocupação de aproximadamente umas 70 pessoas. Casa lotada para a apresentação do solo concebido pela atriz brasileira Gio Mielle (Giovanna Almeida, conhecida nossa pela sua intensa atuação junto ao Teatro Invertido e pelos trabalhos realizados no Galpão Cine Horto), sob a direção de Debora Balardini, também brasileira, cofundadora e coartista diretora do Nettles Artists Collective.
No pequeno palco, o cenário é minimalista: a mesa com a cadeira, onde a atriz permanece sentada, e, dependurado por fio de nylon nas varas do teatro, um grande quadro vazado, simulando um espelho. A atriz, descalça e usando uma roupa de ensaio preta (calça e blusa de malha), permanecerá sentada, fazendo pequenos exercícios de aquecimento e movimentos gestuais, enquanto os espectadores se acomodam no espaço até que a luz de plateia é retirada e direcionada para ela. No palco, apenas alguns adereços de cena, duas caixas de presentes redondas, brancas e com laços brancos, estrategicamente alocadas do lado direito do palco; mais à frente, quase ao centro do palco, um par de sapatos pretos de festa; do lado da mesa, à esquerda do palco, um rolo enorme de filme plástico de uso doméstico; e, bem no centro do palco, um amontoado de restos (resíduos, dejetos) de plástico, que será fundamental, ao final da performance da atriz, para o entendimento da proposta espetacular.
“Bother Line” pode ser visto como um manifesto feminino-feminista. Esta leitura se corrobora por meio da análise das entrelinhas sensoriais, sígnicas e discursivas que são impressas com muita perspicácia na proposta textual e cênica da atriz-performer e de sua diretora, que buscam referências desde a própria história da atriz e da sua relação com seu corpo, o cotidiano das mulheres e suas vivências na contemporaneidade, até a obra literária de Clarice Lispector.
A Mulher, o espaço da mulher, o lugar da mulher (existe este lugar específico?), o corpo da mulher, a dieta da/e/para a mulher, os produtos de beleza, os cílios postiços, o batom (vermelho), o longo cabelo vermelho, estiloso fahion (Rapunzel), o vestido (sex), ser mulher e sentir-se mulher, sex symbol; tudo isso é “Bother Line”, também é uma resposta às marcas de expressão que tanto assombram as mulheres através dos tempos. Como conviver com elas? Como vivenciá-las e, principalmente, como superá-las e suplantá-las? É de fato preciso? O trabalho não dá respostas aos questionamentos, mas ultrapassa o lugar “das vaidades femininas” e coloca em evidência um olhar para o mais íntimo do feminino, para sua beleza e fraquezas emocionais e sociais, os lugares de trânsito pelos quais o corpo da mulher transita, se transporta e se deixa transportar.
O silêncio, ou melhor, os momentos de silêncio são fundamentais para entrar no clima do trabalho e também para compreender melhor a fluência da cena performativa proposta por Gio Mielle. A performance inicia como já me referi com a atriz em cena calada. Quando a luz sai de plateia e o foco invade a cena, o público começa a ouvir a música “Garota Solitária”, composição de Adelino Moreira na voz e interpretação marcante de Ângela Maria. A performer se ilumina com uma lanterna e dubla a música de forma sincrônica, mas fazendo de seu gesto facial um ato paradoxal que é amplificado com cada verso da letra que vai repetindo. Em alguns momentos, os gestos são contidos e, em outros, caricaturalmente exagerados, mexendo em seu rosto, exibindo as suas linhas de expressão, esticando a pele da face quando entra o refrão, fazendo com que a plateia ria de sua gestualidade. Desde este momento, nota-se que a ironia será um dos motes norteadores da proposta.
A música será recuperada mais adiante na performance, mas merece atenção o fato de sua escolha. Primeiro por se tratar de uma canção não tão conhecida do público brasileiro na contemporaneidade, mas que demarca bem o “lugar de enunciação” da atriz (o de uma brasileira radicada em Nova York, desde 2015) e, principalmente, qualifica o que se pretende discutir com a cena. Em segundo lugar, pela escolha específica desta música para um espetáculo que é apresentado nos Estados Unidos, em princípio, para um público não falante do português, mas aqui também a atriz e a diretora são muito perspicazes, pois entregam junto com o programa do espetáculo a tradução em inglês da letra da canção para que a plateia possa entender as palavras e, por sua vez, decodificar cada gesto que é realizado em cena pela performer enquanto canta e faz “massagem facial” diante do espelho. Neste sentido, o suposto estranhamento da letra e da melodia em português possibilita outro tipo de aproximação da “personagem”, que se dá pelo plano sensorial. Provavelmente, alguém da plateia deve ter feito alguma alusão à clássica frase das histórias dos contos de fadas: “Espelho, espelho meu, existe no mundo alguma mulher mais bonita do que eu?”. Não obstante, também há que se destacar que o conto de fadas aqui também é paradoxo para amplificar as entrelinhas discursivas que aparecem nos gestos e na letra da canção: “Será que eu sou feia? / Não é, não senhor! / Então eu sou linda? / Você é um amor!”
A performer, depois de revelar seu lado de cantora, despe-se de sua “roupa de trabalho” e de calcinha e sutiã pretos se mira ao espelho, puxa as dobras de sua barriga e dos braços várias vezes e irrompe um grito abrasador e ensurdecedor. Os gestos que, em princípio, fizeram a plateia rir, agora, provocam certo desconforto, pois o que se vê é um corpo de mulher que se mostra em suas “imperfeições” diante do “olhar do mundo”, cujo padrão de beleza é aquele em que imperam as curvas esculturais e/ou os corpos magérrimos, esguios prontos para as passarelas.
O exposto reforça que, assim como o silêncio, o humor vai se presentificando na performance da atriz, que, extremamente expressiva, revela uma veia cômica muito interessante. Não se trata daquele tipo de humor “descarado”, mas algo que se revela irônico e reflexivo. Aquele traço de humor que leva parte da plateia ao riso solto, mas, em seguida, de repente, puxa o seu tapete, ou seja, aos poucos, ela – a performer, a atriz-mulher-performer – instaura nos presentes sementes para reflexão, fazendo com que a plateia pense, cada qual consigo mesmo, no porquê de estar rindo “disso” ou “daquilo”.
Na sequência, a atriz toma nas mãos o rolo de filme plástico e começa a enrolar-se com ele, num processo de mumificação corporal; ela cobre o seu corpo da barriga até o rosto, abrindo apenas um pequeno buraco na boca para respirar. Mais uma vez, a ação leva a plateia ao riso. Já enrolada, “plastificada”, a mulher “múmia” (com todas as conotações que os termos aqui possam ter) senta-se, e mirando-se ao espelho (o objeto vazado aqui se transforma, podendo ser interpretado como o duplo da plateia, pois todos estão sentados de forma que veem cada gesto da atriz-performer através do espelho), começa a se maquiar: primeiro a base, depois o batom sob a boca semi-plastificada, logo a sombra sob os olhos plastificados e, por último, os cílios postiços que são colados sobre o plástico. O rosto plastificado vai sendo ressignificado e as linhas de expressão “plastificadas” vão sendo cobertas, delineadas para dar vasão a uma nova face e um novo corpo de mulher. Enquanto a atriz vai se autotransformando em seu processo de maquiagem, ela vai resmungando frases-discursos que o público tenta entender. Como na magia do teatro o ator se veste de uma máscara para dar vida a outras personagens, a atriz-performer se mascara também, mas, aqui, com o objetivo de desvelar as diversas “máscaras sociais” nas quais o ser-mulher se vê implicado.
“Você é “moralmente” tão antiquada a ponto de considerar vaidade feminina uma frivolidade? Você já devia saber que as mulheres querem se sentir bonitas para se sentirem amadas. E querer sentir-se amada não é frivolidade. Se você pensa que “nasceu” assim, e não tem jeito, fique certa de que está é desistindo de alguma coisa muito importante: de sua própria capacidade de atrair. Quer saber de uma coisa? Obesidade tem jeito. Cabelos sem vida têm jeito. Rosto sem graça tem jeito. Tudo tem jeito.
O remédio? O remédio é não ser uma desanimada triste. E o outro remédio é ter como objetivo ser um “você mesma” mais atraente – e não o de atingir um tipo de beleza que nunca poderia ser seu.”
“Você sobe à balança e verifica que ela não é muito camarada. Acaba de apontar 75 quilos e você não tem nenhum pedaço de chumbo no bolso. Que fazer? O desejo de iniciar uma dieta é grande. Muitos são os recortes de jornais e revistas com as informações precisas sobre o caso. O médico já se pronunciou a favor do regime. Resta começar. Por que não começa agora mesmo? Neste instante em que estamos falando? Tome a grande decisão e aja, não espere nem um minuto mais. Não deixe para depois da hora do lanche, que adivinhamos cheio de guloseimas. Para que você se decida realmente a iniciar a dieta, é preciso que se capacite de que está realmente gorda. Adquira um espelho grande, tamanho natural, e coloque num lugar da casa em que você passará por ele pelo menos seis vezes por dia; isto fará com que você se decida de repente, ao ver a criatura rotunda que o espelho insiste em dizer que é você. Um espelho de três faces será ainda “melhor”. Você terá oportunidade de se ver de todos os ângulos e note que você preferiria mil vezes não ter esse prazer! Depois deste acurado autoexame, asseguramos que você terá a maior satisfação em iniciar um regime para perda de peso imediatamente!”i
O texto citado é de autoria de Helen Palmer, pseudômino que Clarice Lispector utilizou para escrever para jornais das décadas de 1950 e 1960 e que foram compilados nas obras “Correio Feminino” e “Só para Mulheres”. Na performance de Gio Mielle, cada frase tomada de empréstimo de Helen Palmer ganha outros novos sentidos, promovendo uma provocação sobre até que ponto as questões sobre o feminismo e sobre a feminilidade foram resolvidas, uma vez que, em pleno século XXI, apesar do “empoderamento” do feminino e de todas as discussões empreendidas sobre o tema, as mulheres ainda sofrem todos os tipos de discriminações e preconceitos.
Já maquiada, a mulher está pronta para sair. A performer cruza o palco em direção as caixas, abrindo cada uma a sua vez. Da primeira, retira um vestido elegante e executa toda uma pantomima para vesti-lo sobre o corpo mumificado de plástico, precisando, inclusive, da ajuda de alguém da plateia. A cena mais uma vez leva o público ao riso. Da segunda caixa, retira, também esbanjando gestualidade, uma peruca enorme e rosa, que combina com a tonalidade purple de seu vestido. São metros de cabelos (Rapunzel) que vão sendo desenrolados e ganhando o espaço do palco. A performer completa o seu look de gala, calçando o par de sapatos pretos também muito elegantes. A mulher está pronta, autofabricada para se divertir, para (en)cantar num desfile em que conclama, para dividir o palco consigo, as vozes e as corporeidades de outras mulheres tops assim como ela se sentia naquele momento: Kim Kardashian, Jenifer López, Coco Austin, Amber Rose, Gracianny Barbosa. A repetição dos nomes destas mulheres e a versão da mulher plastificada em cena é também motivo de humor, cada nome repetido, gera um riso por parte da plateia.
Os gestos da atriz vão se tornando maiores diante do olhar do espectador; ela, como se num vômito, “despeja” o texto clariciano para a plateia, como se agora o público fosse o seu espelho, ou mesmo, o reflexo de seu espelho. Só que, desta vez, o texto não está diluído em murmúrios desconexos, ela o faz com segurança, com uma extrema força, procurando a cumplicidade no olhar de vários espectadores, principalmente as mulheres, fazendo de todos os presentes, testemunhas de sua dor, de seu ato-denúncia, de sua fúria verbal. As ações em link direto com cada palavra vão, num crescendo, ganhando a dimensão de um discurso de tomada de consciência em que o gesto final é de limpeza, de purificação, de catarse, que se dá com a desmontagem da mulher top model-múmia-plastificada, o desmascaramento, a retirada violenta da bandagem de plástico de seu corpo é gesto de limpeza do corpo, de limpeza física e espiritual. Cada trapo do plástico que é extraído do corpo com fúria e em fúria é jogado junto ao amontoado dos restos (de lixo, resíduos, dejetos) plásticos que o espectador já tinha visualizado no meio do palco, desde o começo da performance, mas fora da área de cena e muito próximo das cadeiras da primeira fila do teatro.
A música na voz de Ângela Maria mais uma vez é colocada em diálogo com a performer e sua plateia.
Os signos no teatro nunca são nem estão lançados ao acaso… Vai começar tudo de novo?… “Lines, they bother” – as linhas (as rugas, as marcas de expressões, do tempo, da vida), elas incomodam –, mas tudo é muito mais do que tudo isso que vimos e tentamos recuperar por meio das reminiscências da memória…
Apagão… Aplausos…
Volta a luz de cena. A atriz retoma a posição inicial e, sentada em sua cadeira, diante da mesma mesa, abre o seu estojo de maquiagem, do qual retira um bolinho, encara a plateia, seu espelho, e o come com deleite…
“Are you ‘morally’ so old-fashioned as to regard female vanity as frivolous? (Você é “moralmente” tão antiquado como para considerar a vaidade feminina como frívola?)”. Fica o questionamento de Clarice/Helen Palmer…
Com “Bother Line”, Gio Mielle definitivamente cutuca em várias feridas abertas em relação ao ser mulher no século XXI, ser mulher no Brasil, ser mulher nos Estados Unidos, ser mulher em trânsito (como todos – latinos e latinas – que vivem o entre-lugar de não se sentirem em casa e representado[a]s em outro país), ser mulher no mundo…
Fica e reverbera a questão que tem me perseguido intelectualmente nos últimos tempos: Qual o limite e alcance da performance e do ato performático?
Sem dúvida, inesgotável.
FICHA TÉCNICA:
Atuação e criação: Gio Mielle
Direção: Debora Balardini
Produção: Nettles Artists Collective
Fotografia: Rafael Acata.
Apresentação: The Tank Theatre
Evento: The Tank LadyFest 2017!
Data: 17/08/2017
i Fragmento de Helen Palmer, pseudônimo de Clarice Lispector, trazido para a cena em inglês na tradução realizada pela a atriz: “Are you “morally” so old-fashioned as to regard female vanity as frivolous? You should know by now that women want to feel beautiful to feel loved. And wanting to feel loved is not frivolity. If you think you were “born” like this, and you have no way, be sure that you are giving up something very important: your own ability to attract. Want to know something? Obesity has a way. Lifeless hair has a way. Dull face has a way. Everything has a way. / The medicine? The remedy is not to be a depressed sad. And the other remedy is to aim to be a more attractive “yourself” –not to achieve a kind of beauty that could never be yours.” // “You go up to the scales and see that she’s not a very good friend. It’s just pointed out 75 kilos and you do not have any pieces of lead in your pocket. What to do? The desire to start a diet is great. Many are the newspaper and magazine clippings with the accurate information on the case. The doctor has already spoken in favor of the regime. Let’s get started. Why don’t you start right now? This instant we’re talking about? Make the big decision and act, do not wait another minute. Do not leave for after lunch time, we guess full of goodies. In order for you to really decide to start the diet, you need to realize that you are really fat. Get a large, full-size mirror and place it in a place in the house where you will pass it at least six times a day; This will cause you to suddenly decide upon seeing the round creature that the mirror insists on saying that it is you. A three-sided mirror will be “best”. You will have the opportunity to see yourself from all angles and note that you would prefer a thousand times not to have that pleasure! After this accurate self-examination, we assure you that you will have the greatest satisfaction in starting a regimen for weight loss right away.” (Excerpt from: Clarice Lispector & Aparecida Maria Nunes. Só para mulheres. Rocco Digital. iBooks.)