Crítica do espetáculo O museu sem fim de 1976 (Sala 1: uma erótica da crítica)
Por Julia Guimarães[1]
Não é muito habitual que a crítica – esta atividade que eu exerço aqui enquanto você me lê – seja tomada como assunto para a construção de um espetáculo. No caso da palestra-performance O museu sem fim de 1976 (Sala 1: uma erótica da crítica), da artista carioca Daniele Avila Small, a crítica é pensada simultaneamente como uma espécie de maldição e uma prática desejante. Um ato que se relaciona sobretudo ao desejo de posicionar-se e produzir sentido diante das coisas do mundo, a despeito de sua remuneração escassa e de seus vínculos a uma posição envelhecida de autoridade. Um modo de tecer relações, de melhor enxergar, de construir territórios de sensibilidade.
Na criação de Daniele, que também atua como crítica teatral, curadora e pesquisadora, é a pergunta em si sobre as razões para dedicar-se tantos anos a essa paradoxal atividade crítica[2] que motiva as investigações costuradas na dramaturgia. Ao basear-se na astrologia como oráculo para responder à sua pergunta (apesar de considerar essa uma “péssima ideia”), a artista tece uma série de relações entre o ano em que nasceu, as obras de arte e de pensamento crítico produzidas por mulheres naquele período e a posição dos astros no momento de seu nascimento.
Desse método nada ortodoxo surge não apenas a estrutura do projeto Museu sem fim de 1976, como também sua primeira versão: uma sala dedicada à erótica da crítica. Dirigido por Felipe Vidal e Tainah Longras, o espetáculo foi apresentada em setembro na programação do 37º Festivale.
Uma das primeiras perguntas que surgem ao acompanhar Daniele pelos espaços desta sala é sobre como o teatro tem se modificado para abrigar, no espectro de suas poéticas, formas cada vez mais amplas e indefinidas de relação entre teoria e prática. Em cena, a artista assume uma persona palestrante que, literalmente, lê um texto disposto em uma prancheta enquanto caminha pelo espaço e triangula com a plateia. Embora haja, naquela sala, uma iluminação que lembra a de um estúdio fotográfico, além de alguns projetores – tão característicos da estética documental –, assim como retratos e trabalhos das mulheres abordadas na criação, o que parece estar em primeiro plano são as palavras ditas por Daniele, o modo como elas se articulam e o fato de que estamos ali, pessoas da plateia, em uma situação pública e coletiva de escuta. Em certa medida, a experiência se aproxima mais a de uma palestra que de uma performance, embora prevaleça a indefinição.
Foto: Paullo Amarall/Festivale
Assim como em algumas criações do libanês Rabih Mroué – uma importante referência para a artista nessa linguagem – ou de tantas outras relacionadas a vertentes conceituais da arte, a dimensão poética da cena associa-se não ao impacto visual da obra ou à atuação em si de Daniele, mas, preferencialmente, ao modo como a montagem estabelece conexões aos contextos com os quais dialoga. A despeito de uma provável falta de opacidade que esse tipo de poética pode produzir, já que sua dramaturgia externaliza o próprio percurso do pensamento, o que está em jogo aqui parece ser uma outra busca, relacionada à qualidade e singularidade dos elos estabelecidos entre os diferentes elementos propostos em Museu sem fim…
Nessas articulações, a crítica é pensada/experimentada em suas diferentes funções. Ela é, por exemplo, o modo de aproximação da artista carioca com as obras da performer cubana Ana Mendieta e da fotógrafa estadunidense Francesca Woodman. Por um lado, Daniele performa, em diálogo com o gênero ensaístico, sua própria atividade crítica. Usualmente confinada ao signo da palavra, a crítica aqui se especializa, adquire timbre e materialidade poética. Por outro, as fotografias de Woodman e Mendieta são igualmente tomadas como gestos críticos. São pensadas como tensões reflexivas – sob a forma de imagens/performances – sobre a própria História da Arte, a fim de expor suas posições dicotômicas e patriarcais, características do pensamento moderno ocidental.
As famosas silhuetas propostas nas fotografias da cubana Ana Mendieta são vistas, por exemplo, como índice desse posicionamento; uma criação na qual a forma final é também invenção do acaso e da natureza, o que Daniele chama de “epistemologia participativa”, em que humanos e cosmos não se separam. Nesse sentido, a dramaturgia de Museu sem Fim… é tecida como duplos que se endereçam mutuamente: a arte pensada como crítica e a crítica pensada como arte.
Esse jogo de remissões, por sua vez, se conecta à própria lógica do mapa astral, objeto que confere – na função de um oráculo – os recortes curatoriais daquela sala de museu. Mais do que revelar alguma sorte de verdade, o mapa funciona como um tipo de anteparo do olhar. Um significante vazio, cujos sentidos latentes só se completam com a percepção e sensibilidade de quem o lê.
Com suas linhas e conexões infinitas, o mapa astral como método e como imagem poética de Museu sem fim remete a essa qualidade de produção de sentido que parece ser o próprio tema do espetáculo. Atua como síntese conceitual desse modo de conhecer característico tanto da arte quanto de certas vertentes da crítica, relacionado à valorização de muitos aspectos que o conhecimento científico tradicional deliberadamente excluiu de sua lógica de funcionamento. As livres associações, os afetos, a subjetividade, em resumo, os lugares do corpo e da experiência possuem, nessa palestra-performance, assim como nas obras abordadas, a condição de uma episteme. Funcionam como um conjunto de princípios e metodologias usados para conhecer algo.
Além de assumir os papéis de crítica, palestrante e artista, Daniele brinca também com o ato de historiografar[3]. Nesse museu infinito (sendo infinitas as possibilidades de tecer relações entre coisas), as obras expostas, como dito, são escolhidas de acordo com a “fotografia do céu” na hora do nascimento da artista. A curiosidade pelo conhecimento, a coragem e até mesmo a vontade de correr riscos, características do signo de sagitário, justificam, por exemplo, a escolha da historiadora brasileira Beatriz Nascimento e da ensaísta estadunidense Susan Sontag como interlocutoras desta primeira sala do “museu”.
Aqui, o objeto da historiografia é o próprio pensamento crítico de ambas, os modos encontrados para se posicionarem no mundo. O de Beatriz Nascimento, sob a mirada de Small, teria relação tanto com a chamada “coragem da verdade” – pressuposto da fala franca associada aos métodos filosóficos de Sócrates na Grécia Antiga – quanto com a aproximação da crítica a uma “forma de cuidado”. Lidos em off pela artista Laís Machado, trechos da crítica feita em 1976 por Beatriz Nascimento ao filme Xica da Silva, de Cacá Diegues, não apenas trazem problemáticas extremamente atuais sobre o tratamento da escravidão e da personagem negra no cinema brasileiro como servem de gancho para uma metarreflexão sobre a ideia de uma “crítica negativa”.
Refutada e recalcada justamente pela geração de críticos teatrais da qual eu e Daniele fazemos parte, a “crítica negativa” é aqui entendida e reposicionada não mais como expressão da verdade proferida por uma autoridade (tal como praticada por alguns críticos de gerações anteriores à nossa) e sim como um gesto simultâneo de “cuidado” e de “combate” no terreno público das disputas de sentido – esse espaço que é a morada por excelência da atividade crítica.
Já na interlocução com Sontag, aparece a operação crítica destacada no início deste texto, relacionada ao “desejo de ver bem”, de “enxergar as coisas a ponto de alcançar o lençol freático por baixo delas”, ou de “desconfiar das coisas” que mais se ama a fim de conseguir vê-las “por inteiro”. Ou seja, um modo de tornar mais complexas, profundas e intensas nossas trocas com aquilo que nos circunda. Não por acaso, o contraponto estabelecido na dramaturgia a esse lugar da crítica é justamente o “nada” (em alusão ao filme História sem Fim), como aquilo que empalidece a existência, tornando-a desbotada e desprovida de sentido.
A considerar esse contraponto, o Museu sem fim de 1976 pode ser lido como uma espécie de carta de amor ao ato crítico. A despeito de todas as dificuldades encontradas para se praticá-la, a crítica é aqui experimentada e defendida em sua dimensão libidinal. Vejo o erotismo no espetáculo associado, em alguma medida, ao próprio desejo de atuar/interferir na esfera pública, esta que historicamente foi relegada apenas aos homens. Nessa investigação, interessa compreender as formas com que outras artistas mulheres forjaram esferas públicas por meio da arte. No limite, este poderia ser também o convite feito a quem assiste: exercer a crítica como prática pública e desejante. Que venham as próximas salas.
[1] Este texto foi originalmente publicado na página da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, como parte da cobertura crítica do 37º Festivale, realizado em São José dos Campos, a convite do festival.
[2] Em 2023, a revista eletrônica Questão de Crítica (www.questaodecritica.com.br), criada por Daniele Avila Small, completa 15 anos.
[3] Daniele Avila Small pesquisou, em seu doutorado na UNIRIO, o conceito de “historiografia de artista”, em tese que pode ser lida aqui: Historiografias de artista – Escritas da história no teatro documentário contemporâneo.