— por Luciana Romagnolli –
Crítica escrita a partir dos trabalhos vistos na 10ª Mostra Novos Repertórios, em Curitiba. Parte 1: “A Maldita raça humana” (Teatro de Breque), “Coreografia estudo #1” (Michelle Moura), “Clouds” (Carmen Jorge) e “Princesa: Justo a mim me coube a explosiva tarefa de ser eu” (Ricardo Marinelli)
“Onde queres família, sou maluco/ E onde queres romântico, burguês/ Onde queres Leblon, sou Pernambuco/ E onde queres eunuco, garanhão/ Onde queres o sim e o não, talvez/ E onde vês, eu não vislumbro razão/
(…)
Onde queres o ato, eu sou o espírito/ E onde queres ternura, eu sou tesão/ Onde queres o livre, decassílabo/ E onde buscas o anjo, sou mulher/ Onde queres prazer, sou o que dói.”
O Quereres, Caetano Veloso
Acompanhar uma semana da 10ª Mostra Novos Repertórios, realizada em Curitiba de 24 de julho a 02 de agosto deste ano, é confrontar-se com uma cena de teatro e dança que mobiliza linguagens diversas, nas quais o corpo ora se esvazia de palavras para retraçar os caminhos urbanos ou para narrar uma parábola de nosso processo civilizatório, ora se entope de discursos alheios, em convulsão, ou encontra nas matrizes africanas outras vozes, ou ainda se agita entre representações alheias e depoimentos pessoais para encontrar voz própria; ora a cena se arma para estranharmos o familiar, desfigurado pelas desconexões; ora busca a adesão pelo riso e pela música para uma matéria mais contraditória do que aparenta.
Em 2007, a primeira edição aconteceu dentro do Festival de Curitiba, como espaço para que quatro jovens companhias de teatro (Armadilha, Pausa, Provisória e Silenciosa) pudessem chamar a atenção para os ecos e dissonâncias de suas pesquisas de linguagem. A Mostra tornou-se rapidamente um reduto da produção curitibana no Fringe (a mostra paralela do festival), no qual se pôde ver trabalhos significativos do que foi a produção teatral curitibana na última década, como “Os Leões” (direção de Nadja Naira, com Diego Fortes e Alexandre Nero), “Menos Emergências” (encenação da Pausa para o texto de Martin Crimp), “Jesus Vem de Hannover” (Silenciosa), “Henfil, Já” (Cambutadefedapata), “[…] Roteiro Escrito com a Pena da Galhofa e a Tinta do Inconformismo” (de Fernando Kinas com a Pausa), “Circo Negro” e “Obscura Fuga da Menina Apertando em Seu Peito um Lenço de Renda” (CiaSenhas), “Um Carvalho” (Teatro de Breque), entre outros tantos.
Neste ano, a curadoria (feita em conjunto por Fabio Kinas, Henrique Saidel, Laura Haddad e Nina Rosa Sá, com coordenação artística de Giovana Soar) expandiu o olhar para a dança e manteve as relações com muitos dos artistas que fizeram a história da Mostra – tanto aqueles que formavam as quatro companhias do início (já desfeitas), quanto outros que se apresentaram nesses últimos anos em que a produção foi executada por Michele Menezes. Agora que se desvincula do Fringe e assume uma ambição de autonomia e representatividade no cenário teatral curitibano – concretizada também na ação Mi Casa Su Casa, que promoveu a aproximação entre grupos locais e curadores de outros estados –, os critérios afetivos cada vez mais hão de ser balanceados pelas qualidades estéticas dos trabalhos.
Algumas faltas foram sentidas, como “Os Pálidos”, da CiaSenhas, espetáculo que não cabia nos espaços delimitados para o evento: Guairinha, Mini-Guaíra e Praça Santos Andrade. Se a concentração nesses teatros oficiais e suas imediações diretas certamente contribuiu para garantir um público abundante para a Mostra neste momento de restabelecer suas bases; acoplar outros espaços que possam melhor abrigar formatos mais diversos de encenação será um ganho para as edições vindouras. Esta décima edição – com desafios de primeira – comprovou, sobretudo, a demanda de artistas e público por um momento de olhar para o teatro da cidade fora do Festival de Curitiba (quando centenas de espetáculos de outras origens geográficas dividem as atenções), o que abre muitas possibilidades de desenvolvimento das interações entre curadores, artistas, espectadores e críticos para os próximos anos.
Das fricções entre os trabalhos apresentados, saltam algumas questões recorrentes. Destaco, aqui, duas: a desconstrução de identidades normativas e o recurso à ironia e ao cinismo. Para refletir sobre elas, empresto algumas ideias propostas por Vladimir Safatle no livro “Cinismo e Falência da Crítica” [1], e percorro brevemente a dezena de espetáculos vistos para estabelecer a discussão em duas partes. Eis a parte 1:
O que se move
Nos três trabalhos que considero os mais maduros desta 10ª edição (não cheguei a tempo de assistir a “Não Contém Glúten”, do Teatro de Breque, nem “A Quase História da Televisão Brasileira”, do Antropofocus), o movimento é o que sustenta a criação de sentidos: o teatro físico de “A Maldita Raça Humana”, também do Teatro de Breque; a inscrição dos corpos em fluxo no espaço urbano em “Coreografia Estudo #1”, de Michelle Moura; e os espasmos de Carmen Jorge sob efeito do jorro verbal em “Clouds” – a significação vem do ato, muito mais que das palavras.
“A Maldita Raça Humana” marca uma mudança na poética da diretora Nina Rosa Sá (sobre a qual ela reflete aqui) A apropriação da linguagem cinematográfica e o humor, que haviam caracterizado trabalhos do Teatro de Breque, como “Em Breve nos Cinemas”, são abandonados em favor de um discurso cênico mais crítico quanto às relações em sociedade. É um deslocamento de uma posição anterior de certa adesão à cultura pop, para uma postura mais distanciada e interessada em desarticular as “distrações” que nos seduzem a manter o status quo.
No processo criativo de “A Maldita Raça Humana”, livremente inspirado no livro “Dicas Úteis para uma Vida Fútil”, de Mark Twain, o Breque destituiu a fala do lugar de campo de conflito, onde as tensões se estabelecem. Assim, busca algo do que move as relações humanas anterior à inscrição na língua e à disputa discursiva. Escapa das guerras de narrativas vigentes para adentrar um território imagético onde o espectador é instado a ouvir o silêncio antes de atribuir sentidos. Dessa brecha que se abre, espreita algo de nossas pulsões que se recusa a ser domado pela linguagem. Daquilo que faz, do bicho, humano. Da crueldade mascarada no processo civilizatório de domesticação.
Impressiona o trabalho corporal de Gabriel Gorosito. Especialmente no manejo de objetos com uso mais restrito do polegar opositor (o que teria diferenciado os sapiens dos outros hominídeos no processo evolutivo). Um efeito de estranhamento é produzido por esse corpo, que já não é só símio: aos poucos começa a se humanizar na relação de uso (nem sempre funcional) com objetos, como o espremedor de laranjas e um quadro de borboletas espetadas. A lógica estranha à natureza que essas coisas trazem simboliza o nascimento da cultura e(talvez até mesmo) da dimensão estética da experiência, mas também de uma organização social que precipitaria a de consumo.
O espetáculo cria uma cronologia de acontecimentos reconhecíveis por meio da narrativa das imagens. E embaralha a temporalidade e a noção de evolução. Os animais representados em cena (além de Gorosito, Rodrigo Ferrarini e Pablito Kucarz estão no elenco, mascarados) executam ações condizentes com o que nos habituamos a chamar de “progressso”, enquanto o corpo nu de um homem é subitamente revelado ao abrir da pia ou da geladeira. Diante dessas imagens, nos situamos num passado histórico ou num futuro (pós)apocalíptico? O tempo é outro, distanciado. Arisco à concepção de evolução como progresso em direção a uma forma idealizada de humano. Nisso reside um comentário crítico bastante pertinente aos tempos políticos que vivemos, de modo que a fábula se reconecta à vida além do teatro.
A contundência das imagens criadas pelos atores sobre nossa percepção é tamanha, tão hábil em conduzir a narrativa, que as entradas de palavras (em off ou numa música) podem soar como ruído: isto que destoa da radicalidade da experiência do silêncio. A inserção do áudio gravado por Claudete Pereira Jorge (in memoriam) guarda significados exclusivos para quem reconhece a voz da atriz, morta em 2016, a anunciar: “que nossos passos sejam do tamanho dos nossos mortos”. A utopia militante dessa fala contrasta com o destino nada idealizado daquelas personagens e de suas paixões. Soma uma camada desviante de linguagem, que deposita outro estranhamento sobre a encenação, lançando grãos de uma ação política real sobre a fábula.
Na parte final, menos por obra das palavras do que do desenho das ações, reduz-se a crueza e a abstração que permitiam atribuir às personagens leituras mais livres. Sobressai certo modelo de construção da feminilidade e da rivalidade entre mulheres que circunscreve a crítica a estereótipos. Algo nessa atribuição de identidades aos corpos estreita suas potências, de um modo que nossa construção cultural de subjetividades nos permite ainda apenas intuir.
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A artista Michelle Moura convoca o distanciamento do olhar do espectador para melhor perceber nossos modos de nos movemos em “Coreografia Estudo #1”. Quatro performers cumprem uma partitura de movimentos a partir do ato de andar. Estetizam nossos passos, trajetos e formações grupais. Redesenham no espaço e no tempo os percursos cotidianos pela cidade, condensados no perímetro da calçada em frente à escadaria da UFPR, na Praça Santos Andrade, feita palco quase sem diferenciações para sinalizar o espaço cênico.
Esse modo de inscrição dos performers na paisagem proporciona uma visão panorâmica do cenário urbano onde a dança é (mais) um dos elementos humanos da composição visual, atravessada por uma multidão de outros corpos e passos. Alguns transeuntes atravessam a cena tão imersos em si que não se dão conta do acontecimento que se desenrola. Esse automatismo, com seu quinhão de descolamento da realidade social em torno, faz-se visível sem que o trabalho artístico precise arvorar discursos. Antes, opera no campo do sensível, das sutilezas, do que demanda tempo, atenção, disponibilidade e presença não somente de quem dança, mas de quem olha.
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“Clouds”, o solo de Carmen Jorge, forma um duo interessante com a coreografia de Michelle Moura. No palco de um teatro, agora dançam não nossos passos, mas esses enunciados que nos atravessam. Músicas reconhecíveis, textos diversos, palavras que caem em falso, que engarrafam o trânsito dos nossos pensamentos e movimentos sãoditas vertiginosamente pela performer como parte de seu corpo que convulsiona.
O próprio ato da fala também se faz dança: as palavras articuladas significam cada vez menos. Sua potência performativa (de agir sobre o mundo e transformá-lo) vai se esvaziando numa ladainha monocórdia. Nossa atenção já não é mais capaz de apreender-lhes os sentidos. Restam como imagens sonoras num arranjo melódico estranho, que já não distinguimos se é causa ou consequência dos espasmos.
O movimento remete a uma dança doente – para citar o nome de outro espetáculo, do performer piauiense Marcelo Evelin, interessado na “alteração da percepção subjetiva do corpo infectado pelo mundo e atravessado por forças que o esvaziam e o destituem”. A coreografia de Carmen Jorge se constitui como um padrão de movimento repetido incessantemente, espécie de reação física de processamento desses discursos culturais que se acumulam e embotam a percepção de um corpomídia.
Acontece – como explicam Helena Katz e Christine Greiner [2] – que o corpo não é um processador. “Quando informação e corpo se encostam, a informação se transforma em corpo em tempo real” (dizem ambas). E o corpo, ao contrário do processador que se mantém inalterado, se transforma conforme o tipo de informação com que tem contato. Ou seja, é transformado à medida que transforma a informação em corpo.
Por essa via, não se concebe mais o corpo como um recipiente: ele está implicado no mundo, em deslocamentos dentro-fora. É “mídia de si mesmo” exatamente porque se constitui nessa troca de informações com o ambiente. Em “Clouds”, esse processo de transformação no contato do corpo com nosso ambiente cultural molda a coreografia -se assim se pode chamá-la, pois se constrói na radicalidade da tensão entre palavras e carne, como um trabalho de potencial altamente disruptivo.
A apresentação na Mostra Novos Repertórios não ocorreu nas melhores condições físicas da performer (que estava gripada) e, embora ela tenha conseguido chegar ao fim sem interrupções – ao contrário do que havia previsto numa fala prévia para o público –, algo do tensionamento crucial para o máximo efeito da forma proposta se debilitou, como é inevitável quando o corpo se transforma por obra de uma enfermidade. Com isso, não se alcançou todo impacto final pretendido, e que também já havia sido “anunciado” por Carmen na conversa pré-apresentação, gerando uma expectativa que foi contraproducente para a fruição.
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Percalços maiores afetaram a estreia de “Princesa – Justo a mim me coube a explosiva tarefa de ser eu”, solo de Ricardo Marinelli, outro artista identificado à dança e à performance. É incerto supor o quanto do desgaste físico mostrado por Ricardo ao longo da apresentação seria proposital ou seria descontrole sobre os tempos, ações e objetos. Se o corte aberto no pé pareceu acidente, provocado pela falta de cálculo sobre como os cacos de uma xícara lançada contra o chão afetariam a movimentação posterior, a ação literal de dar murros em ponta de faca dá indício de que o trabalho se inscreve em certa tradição da performance de automutilação e degradação do corpo, a evocar o “real” do sofrimento (e do sangue escorrendo) para impactar o espectador.
Entre consecutivas trocas de roupas e sucessivas tarefas a serem cumpridas de cena em cena, o desempenho variou com o cansaço aparente e faltou fôlego para a canção final. Seria essa uma performance do desgaste de um corpo programada ou não? Ou, ainda, talvez, apenas parcialmente intencional? (O relato que ouvi da apresentação seguinte é diverso: outra vez houve cortes, mas o desempenho teria mantido seu tônus). Caso é que, na estreia, o sofrimento físico percebido como “real” e não totalmente intencional distraiu da construção simbólica, enfraquecida pela perda de vitalidade na execução, conferindo ao discurso cênico de denúncia de violências homofóbicas um aspecto paródico.
A paródia, como uma recriação desmedida a destituir algo de seriedade ou gravidade, seria um artifício para marcar posição diante de uma realidade constrangedora e de uma organização social ilegítima?
“Princesa” desfia processos de construção e desconstrução de identidades. Quadros criados com procedimentos de simulação (como a dublagem ou as fantasias usadas) contrastam com ações que causam o efeito de real (os cortes e os depoimentos pessoais). O processo de constituição de identidades é parodiado no pot-pourri de fantasias de de ícones guerreiras, tais quais Mulher Maravilha e Xena, vestidas pelo performer, estabelecendo contradições entre as ideias de masculino e feminino: o “masculino” estaria na anatomia dele e na postura guerreira delas, o “feminino”, na anatomia delas e no gestual dele. Também contraditória se mostra uma crítica às normas estritas para os gêneros que se faz com heroínas, pois não deixa de reiterar a narrativa do herói vendida pela cultura pop americana.
A esta cena, soma-se outra sequência em que se monta [3], item a item, uma masculinidade “normal” (dentro da norma): a do homem sertanejo, que é o avesso da imagem que Ricardo Marinelli cria para si. Num tempo em que proliferam os esforços de desnaturalização dos estereótipos do ser-mulher, faltam mais olhares como este, dispostos a manipular os clichês da masculinidade, em contraponto complementar.
Essa capacidade de sustentar contradições distingue o trabalho de Marinelli dentre outros vários que se embrenham pelas questões identitárias. A escolha da canção “O Quereres”, de Caetano Veloso, entre as dublagens feitas pelo performer, dá o tom dessa desobediência às demandas alheias de conformidade às expectativas sociais. Abre os sentidos para que possam emergir outros corpos e ações, sem reforçar uma afirmação da identidade que seja aprisionadora (por restringir o sujeito a se manter idêntico a uma ideia de si mesmo).
Na conversa de encerramento da Mostra, Marinelli falou do deboche presente em seu solo como modo de “positivação”: estratégia de sobrevivência num contexto político de esmagamento de subjetividades e direitos. Quando ele conta histórias íntimas de bullying, a gravidade do assunto retorna e faz-se acompanhar por discursos motivacionais de transformação de si mesmo, direcionados aos espectadores seus interlocutores de modo que se estabelece uma relação de convencimento entre cena e plateia.
Entre o deboche e a seriedade, ou entre a paródia e o efeito de real, Marinelli reinstaura o paradoxo do artista, posto em versos por Fernando Pessoa: “finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. Deixa-nos entre a liberdade de sentir e o ser convencidos, entre a desconfiança e a cumplicidade, entre a adesão e a crítica.
FIM DA PARTE 1.
[1] SAFATLE, Vladimir Pinheiro. Cinismo e falência da crítica. Boitempo Editorial, 2015.
[2] Katz, H., & Greiner, C. (Org.) Arte & Cognicação: Corpomídia, comunicação, política. São Paulo: Annablume, 2015.
[3] A propósito, Nina Caetano, performer mineira, costuma ministrar um workshop chamado Como se fabrica uma mulher?.