Por Julia Guimarães :::
Criado pelo grupo equatoriano Contraelviento Teatro, o espetáculo “La Flor de la Chukirawa” – que se apresentou ontem (6) no Centro Cultural São Paulo, pela Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo – traz consigo características emblemáticas dos traços de identidade que o teatro latino-americano tem construído nas últimas décadas.
Se, por um lado, articula uma importante herança ética, técnica e estética vinculada ao pensamento de encenadores como Jerzy Grotowski e Eugenio Barba – visível, por exemplo, através do foco no trabalho do ator, na busca por uma ação física artesanalmente lapidada e pela valorização de tradições populares – por outro, se propõe a discutir temas muito caros ao nosso contexto geográfico, como a dificuldade de se descolar da perspectiva colonizada e a ideia de resistência em situações de adversidade.
Com texto e direção de Patricio Vallejo Aristizábal, “La Flor de la Chukirawa” se baseia em fatos verídicos para fabular sobre o encontro entre uma camponesa equatoriana pobre que perdeu o filho na Guerra do Iraque e uma entrevistadora de TV que deseja noticiar sua história.
Através de uma estrutura mais épica do que dramática, o espetáculo oscila entre os pontos de vista dos personagens e as relações que estabelecem entre si. Herdeira também do pensamento dialético brechtiano, a dramaturgia evidencia paradoxos ao construir essas relações, sob uma ótica distanciada que aposta num equilíbrio entre lirismo e ironia para estruturar seu discurso.
Os emblemas de uma mentalidade colonizada ainda tão persistente na América Latina perpassam a relação entre a mãe camponesa e o filho jovem, que decide migrar para os Estados Unidos, seduzido pela possibilidade de conseguir uma cidadania americana em troca de alistamento militar.
Enquanto a mãe vislumbra a aquisição de bens de consumo rudimentares a partir da estabilidade financeira do filho no exterior – como um telefone e uma televisão maior para a casa – o jovem enxerga no alistamento a chance de livrar-se, de vez, do passado pobre equatoriano. Assim, vai para a guerra receber ordens numa língua que não fala, para defender uma pátria que não é a sua, por razões que ele igualmente desconhece. Morre dois dias depois. Sem dinheiro para trazer o corpo e sem direito a indenizações, a mãe vela o filho em memória.
Aqui, a dimensão superlativa da tragédia é contrastada pelo tom ácido com que a personagem materna enxerga sua própria condição, no qual a dramaticidade do sentimento de injustiça de algum modo transmuta-se em um deboche catártico de indignação. Através de uma narrativa intercalada por momentos em que canta, dança e realiza delicadas ações cênicas, num trabalho sofisticado da atriz Verónica Falconi, a personagem materializa a metáfora contida na flor que dá nome ao espetáculo, a Chukirawa, que cresce em contextos climáticos desfavoráveis dos charcos andinos e cuja beleza contrasta-se com a dureza dos seus espinhos.
O tom de ironia ácida é também o que estrutura a personagem da entrevistadora, figura que traduz em suas ações artificiais e quase robóticas – em alguns momentos tecnicamente frágeis – a hipocrisia do seu discurso. Em sua fala, tenta distorcer e abafar injustiças políticas e sociais em nome de um suposto “progresso”, ao enxergar a guerra como mal inevitável, a espetacularização da desgraça alheia como “jornalismo investigativo” ou a defesa dos interesses neoliberais como “modernização”.
Mais uma vez, o que aparece nas entrelinhas desse discurso são as contradições de uma América Latina que traz em seu presente, de maneira ainda muito impregnada, resquícios do passado colonial, que, se antes mirava nos moldes europeus de “civilização”, hoje contenta-se com o ainda mais refutável modelo estadunidense.
O espetáculo aproxima-se ainda de certa identidade das criações teatrais latino-americanas ao primar por uma poética que valoriza elementos das tradições populares. Aqui, são as aproximações com a cultura andina que perpassam diversas camadas do espetáculo, como a trilha sonora, o figurino, a presença da personagem camponesa e o uso da língua indígena quéchua.
Por todos os motivos elencados, o espetáculo “La Flor de la Chukirawa” serve, de algum modo, para se pensar na maneira como determinados aspectos comuns à realidade latino-americana têm sido tratados artisticamente, não só pelo Contraelviento, mas também por vários outros grupos teatrais da região.
Se, por um lado, é possível enxergar um desejo de resistência e de impulso anticolonial a partir de uma poética que articula artesania técnica com valorização das culturas locais, por outro, o tratamento romantizado com que essas culturas e seus impasses sociais são levados ao palco por vezes incita o questionamento sobre a ingenuidade de um pensamento que problematiza as contradições, mas o faz de maneira simplificadora.
Além disso, a própria recorrência com que esse tipo de estratégia apareceu em propostas estéticas de inúmeros grupos latino-americanos nas últimas décadas sugere, de algum modo, certo enfraquecimento de sua potencialidade crítica, certo desbotamento de uma premissa cênica que, de tão consolidada, precisa reinventar-se.
Porém, a própria situação destacada no espetáculo – de um filho que vai à guerra defender um país que não é seu em troca do sonho (da ilusão?) de um futuro melhor – traz consigo questionamentos e atualizações tão emblemáticas para os recorrentes problemas latino-americanos, que levá-la à cena já é, em si, um gesto necessário de problematização das nossas condições.
A questão mais ampla que se coloca nessa discussão, e arrisco dizer em todo o teatro atual que intenta ser crítico e resistente, consiste em investigar possíveis modos de lidar hoje, através da poética cênica, com determinados aspectos da realidade cuja complexidade parece dificultar e, em alguns casos, desautorizar simbolizações, sob o risco de empobrecê-las. E é aqui, onde tenho que acabar, que poderíamos começar.
.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Valmir Santos, do Teatrojornal, aqui.
.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.