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Crítica a partir do espetáculo Isidoro, um Negro de Quilate, assistido no dia 06 de maio de 2023.
– Por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras-UFMG/CNPq
O som de tiros ecoou pelas serras diamantinas.
Fez estremecer os mais distantes lugarejos.
Os corações se fizeram aflitos,
tanto dos quilombolas ocultos nas entranhas do espinhaço,
quanto dos brancos que ostentavam títulos de nobreza.
Muitos mais tiros ribombaram nas brenhas…
e o silêncio após.
O Arraial do Tejuco contrito,
mal respirava aguardando o porta voz:
-Sim, prenderam Isidoro!
-Prenderam Isidoro?
E lá veio ele arrastado pelos becos e vielas
sob os olhares orgulhosos dos seus algozes.
Foi açoitado, martirizado em praça pública.
-Morre negro maldito!
Gritava a soldadesca.
-Vive Isidoro, pelo amor de Deus!
Maio é um mês extremamente importante para população negra brasileira, sendo o dia 13 marcado como uma data de reflexão e de luta contra a discriminação (econômica, racial, social), para não esquecermos a “mentira cívica” que tanto foi propagada historicamente como lembrança em “comemoração” pela abolição da escravatura. Portanto, para pretos e pretas não há o que se comemorar em tal dia. A revisão da data tem sido pensada como um momento propício para discutir a constante necessidade de criação de novas políticas de comprometimento e proteção aos negros e negras, a fim de que todos e todas possam sobreviver com dignidade, com acesso à educação, à cultura, à moradia, à saúde etc.
É neste contexto, em pleno mês de maio de 2023, que acontece, em Belo Horizonte, a 7ª Edição da Mostra Benjamim Oliveira, um movimento que potencializa as vozes negras divulgando suas ações artísticas, espetáculos e saberes (re)produzidos. Como nas Mostras anteriores, a atual edição foi idealizada por Maurício Tizumba, com realização da Cia Burlantis, e contou com a curadoria de Julia Tizumba e Rui Moreira. Na presente Mostra, são apresentados espetáculos concebidos por artistas negros e negras, que tratam dos diversos temas relacionados às linguagens estéticas plurais vinculadas aos Teatros Negros. São as criações Isidoro, Um Negro de Quilate, de Evandro Passos; Círculo Ancestral, do grupo Circo Ancestral; Abre caminho, do Grupo Identidade; Campo Minado, de Luscas Gonçalves, Rainhas, da Coletiva Preta de Teatro; Benzimento, de Meibe Rodrigues; e Negro Drama, de Mascote.
Também são oferecidas ações formativas e oficinas que investigam expressões outras associadas aos inúmeros campos de saberes inerentes às poéticas pretas, a saber: “Palhaçaria Negra”, com Juliana Lellis; “Poéticas do Tropeço: Dramaturgias e Negritudes”, com Anderson Feliciano, “Introdução à Crítica Teatral”, com Guilherme Diniz; “Intérprete Urbano Criador”, com Vic Alves; e “Música e Tecnologia – Iniciação à Produção Musical para Trilha Sonora de Espetáculos”, com Dj Black Josie; ou seja, um mosaico de possibilidades de experienciar as encruzilhadas da cultura negra, encontros possíveis de aquilombamento como práticas pedagógicas de disseminação e circulação de conhecimentos afrorreferenciados.
Para estas breves considerações, entre os espetáculos da programação da 7ª Edição da Mostra Benjamim de Oliveira assistidos por mim, no 06 de maio de 2023, no espaço da Mimulus Escola de Dança, convoco a peça Isidoro, Um Negro de Quilate, a partir do fragmento acima transcrito e que integra o poema “Isidoro um Homem de Quilate!”, de Marcial Ávila. O poema[1] é o mote utilizado na construção da proposta espetacular idealizada pelo ator/bailarino/performer Evando Passos, que divide a cena com o multiartista Léo Santos. Juntos, retomam cenicamente um percurso da história de Isidoro Amorim, homem negro reconhecido por conseguir sua alforria, a de várias outras pessoas escravizadas, e por buscar faíscas de ouro em minas lavradas na região de Diamantina. Por sua condição negro e de ex-escravizado, Isidoro é acusado de contrabandista, tendo sido arrastado pelas ruas do arraial de Tijuco para que a população tivesse nele um exemplo de subjugação a seguir e, assim, não levantar nenhum tipo de ação insurgente contra o sistema opressor vigente.
Fotos de Pablo Bernardo
A performance de Evandro Passos não apenas traz elementos da cultura negra para serem discutidos em nossa contemporaneidade, como também dá visibilidade à história de vida do homem Isidoro Amorim. Na descrição fornecida pela sinopse do trabalho, o espetáculo “traz elementos da tradição dos Vissungos – tronco Bantu presente em Diamantina e região”. Não obstante, o que me parece mais relevante é como a trajetória da “personagem” – do sujeito negro mitificado – é retomada na performance, evidenciando a sua importância no imaginário social da região. Isidoro é lido por Passos como uma figura que transcende o seu tempo e espaço, assumindo a categoria de mito, de persona cuja representatividade ultrapassa a memória circunscrita a uma enunciação específica.
Mal sepultaram seu corpo no burgalhau.
Ouviram gargalhadas na serra.
Na serra do Isidoro!
Ele era novamente livre,
como sempre o foi em seu coração.
Os elementos de uma tradição negra são exaltados por Evandro Passos e Léo Santos desde o início do espetáculo. Simbolicamente, a personagem é apresentada a partir do som de um riso forte e potente que irrompe o silêncio do espaço de representação, antes mesmo de que o performer-personagem se apresente em cena diante do olhar do público. Assim, a figura de Isidoro, mediada pela corporeidade negra de Passos, como um Zé Pelintra – uma entidade, um corpo brincante – surge na cena atravessando as encruzilhadas do tempo e do espaço, driblando, com passos sincopados o limiar da história oficial, do rito, da palavra e da cena performativa. Diante do olhar da plateia, a música de Léo Santos e o corpo dançante de Evandro Passos se coadunam na formação de um sentido maior, ocupando uma dimensão espetacular que, pautada em atos factuais vivenciados por Isidoro, oferece aos espectadores sonoridades múltiplas que flertam com outros ritmos – das congadas e dos tambores do candomblé e da umbanda, aos passos da dança afro – acionando os compassos e riscando o espaço com as corporeidades-presenças de deidades como Ogum/Oxum/Xangô, convocando nos presentes suas afetividades, memórias e sentimentos.
Soraya Martins inicia as reflexões de seu livro Teatralidades-aquilombamento – várias formas de pensar-ser-estar em cena no mundo argumentando que “Há tempos os Teatros Negros feitos no Brasil querem desmistificar a imagem negativa da/o negra/o”[2], salientando ainda que “A reflexão sobre essa questão se tornou recorrente nos palcos e se abriu como forma de analisar criticamente os efeitos devastadores do racismo na constituição do indivíduo”[3]. A divulgação das escrevivências de Isidoro Amorim por parte de Evandro Passos contribui para o reconhecimento de uma personagem negra que por meio de sua trajetória fortaleceu a construção da memória coletiva da população afrodescendente da Diamantina do século XVIII, contribuindo para a denúncia de atos de racismo tão comuns cometidos pelos senhores que detinham o poder e comandavam a região. A partir da performance de Evando Passos, Isidoro não apenas passa a ser reverenciado pelas Irmandades pretas das cidades históricas de Minas Gerais, mas se torna referência para as pessoas que entram em contato com sua memória histórica.
O espetáculo de Evandro Passos é performance, é dança-teatro, é ato de resistência, é teatro negro como agenciador de estratégias de aquilombamento; aqui, entendendo aquilombar a partir das contribuições teóricas de Soraya Martins, no sentido de “juntar para criar e transformar, ir além, contar e recontar, recarregar os signos de sentidos e produzir histórias e genealogias da diáspora negra dentro de uma ‘História do Brasil ainda a ser feita’ (NASCIMENTO apud RATTS, 2006, p. 97)”.[4] Isidoro, Um Negro de Quilate é arte preta que não dá lugar e espaço para o silenciamento dos corpos e das vozes pretas, é arte preta que não acata o aniquilamento advindo do historicismo, é uma possibilidade efetiva para que sujeitos negros e negras se constituam como protagonistas de suas próprias narrativas, afetos e subjetividades.
Ficha Técnica:
Direção: Evandro Passos
Atores: Evandro Passos e Leo Santos
Dramaturgia: Evandro Passos
Iluminação: Ryan Bernardes
Produção: Neuzy Cirino
Apoio: Associação Sócio-cultural Bataka
Inspiração: Poema Marcial Ávila
[1] Transcrevo abaixo versão do poema, fornecida pelo autor na íntegra, para que possa ser apreciada: “Isidoro um Homem de Quilate!”
O som de tiros ecoou pelas serras diamantinas.
Fez estremecer os mais distantes lugarejos.
Os corações se fizeram aflitos,
tanto dos quilombolas ocultos nas entranhas do espinhaço,
quanto dos brancos que ostentavam títulos de nobreza.
Muitos mais tiros ribombaram nas brenhas…
e o silêncio após.
O Arraial do Tejuco contrito,
mal respirava aguardando o porta voz:
-Sim, prenderam Isidoro!
-Prenderam Isidoro?
E lá veio ele arrastado pelos becos e vielas
sob os olhares orgulhosos dos seus algozes.
Foi açoitado, martirizado em praça pública.
-Morre negro maldito!
Gritava a soldadesca.
-Vive Isidoro, pelo amor de Deus!
No entorno, preces confusas subiam aos céus.
E velas foram acesas em oratórios particulares,
uns pediam vida outros morte para ele.
Afinal, muitos destinos estavam nas mãos amarradas de Isidoro.
Seus olhos, mesmo que embaçados pela dor
ainda podiam ver através das treliças,
velhos amigos de negócios ocultos nas sombras.
Ninguém ousou defendê-lo.
Detrás dos arvoredos rostos negros como o seu
choravam pela sua dor.
Apenas em pensamentos diziam…
-Ele é inocente,
-Deus o acuda!
-Valha Nossa Senhora do Rosário, mãe dos pretos!
-Fala escravo galé!
-Entrega de uma vez!
-Com quem contrabandeava as pedras?
Mas nem uma palavra,
Nem uma palavra saía dos seus lábios ensanguentados.
-De quem eram os diamantes?
-Com quem os negociava?
Ele sabia de onde vinham os calhaus,
os tirou com as mãos, dos grotões da serra
e das veias dos rios.
Se a terra teve a confiança de entregar a ele
as mais belas pedras…
-Eram seus!
-Os diamantes eram seus,
não os roubou de ninguém.
Era um homem honrado.
Podiam ter escravizado seu corpo,
mas nunca sua alma.
Ninguém tiraria seu título.
Ele era o maior batedor dos sertões,
tinha faro pras riquezas,
era o senhor dos diamantes!
E na sua honradez,
não delatou ninguém.
Nem brancos e nem pretos,
Nem justos e nem ímpios.
E mais chicotada!
-Morreu Isidoro!
-Morreu Isidoro?
Morreu o inocente,
levou consigo muitos segredos do Tejuco.
Com ele muitos perderam o lucro fácil.
Outros tantos respiraram aliviados.
Mas muitos que foram libertos por ele
prantearam sua morte.
Negros cativos ou forros das mais diversas línguas e crenças,
se uniram em oração.
Todos os sinos repicavam uníssonos em agonia,
Talvez chorassem as lágrimas que não caíram dos olhos dele.
Parece que aquele burgo se tornou em instantes
uma imensa irmandade cristã.
Mal sepultaram seu corpo no burgalhau.
Ouviram gargalhadas na serra.
Na serra do Isidoro!
Ele era novamente livre,
como sempre o foi em seu coração.
Mas muitas almas do tijuco se tornaram cativas,
Sob o julgo dele.
Sobre seus tesouros enterrados ele gargalhava.
Com olhos despertos, podia ver a ganância pairando sobre o arraial.
Ri Isidoro!
Ri Isidoro!
De quem será sua fortuna enterrada?
Quem herdará sua estrela?
E depois dele, mais ninguém…
Ninguém teve seu faro pra diamantes, sua sabedoria.
Ele entendia da terra, sabia onde procurar.
-Isidoro o mártir.
-O mártir?
-Não! Não!
-O escravo Isidoro?
-Não!
O homem honrado de coração nobre,
Que tinha alma livre!
Que não morreu como delator
e não traiu a confiança dos seus.
Levou a verdade trancada em seu coração flagelado.
Ele foi o maior garimpeiro das gerais.
Senhor do distrito diamantino.
Virou intocável, virou lenda, é imortal!
Dizem que ainda hoje anda pelo beco.
O Beco do Isidoro!
Que tem poder de manipular as almas gananciosas
que ambicionam seus tesouros enterrados.
E até lhes aponta falsos caminhos.
Mas ele sempre soube onde estavam os diamantes.
Sempre soube!
Afinal ele era Isidoro,
O grande garimpeiro,
o maior!
Aquele que com diamantes libertou corpos e almas do seus iguais.
Um homem nobre, um homem de quilate!
Isidoro!
[2] MARTINS, Soraya. Teatralidades-aquilombamento – várias formas de pensar-ser-estar em cena e no mundo. Belo Horizonte: Javali, 2023. p. 19.
[3] Idem.
[4] Idem. p. 44.