Entrevista com Rodrigo Jerônimo e Marcos Fábio de Faria
– por Guilherme Diniz-
Entre os dias 8 e 19 de maio, o teatro Francisco Nunes sediou mais uma edição da Mostra Aquilombô – Fórum Permanente de Artes Negras. O projeto, como um caleidoscópio, lança um vasto e multifocal olhar sobre a pluralidade de produções artísticas elaboradas por artistas negros e negras de Belo Horizonte, de cidades do interior e além das fronteiras de Minas Gerais. Em sua estruturação, a diversidade de linguagens e expressões artísticas se interpenetram, construindo um contexto permeado por trânsitos estéticos e interlocuções reflexivas, nas quais as artes cênicas, a música e a literatura se atravessam. O diálogo entre gerações distintas de artistas, na programação da Mostra, afigura-se como mais um elemento relevante para o adensamento das reflexões estético-políticas, pois encara as transformações artísticas, as novas urgências e discursos, ao lado de um lastro histórico que contextualiza e alimenta as criações contemporâneas. Na qualidade de Fórum, a Mostra Aquilombô, projeta-se não apenas como instância agregadora de sujeitos e olhares, mas vem afirmando-se como um território produtor de pensamentos; pensamentos acerca das artes negras, suas ressonâncias e desafios, dilemas e devires, desejos e formas.
Nesta edição em especial, a Mostra lançou uma série editorial, almejando criar (e disputar) espaços no mercado de livros no Brasil, especialmente no que tange à publicação de autores e autoras negros. A escritora Conceição Evaristo pondera seriamente, em uma de suas entrevistas: “É preciso questionar as regras que me fizeram ser reconhecida apenas aos 71 anos”.
A dificuldade com que escritores negros e negras se deparam para publicarem suas obras reflete o racismo institucionalizado nas grandes editoras, cujos catálogos, embranquecidos, valida e legitima seletas literaturas, pensamentos e enunciações, solidificando há muito um quadro de verdadeiro epistemicídio, isto é, o assassínio simbólico de saberes, significados e compreensões do mundo. Como Nilma Lino Gomes nos alerta[1], racismo e capitalismo se encontram e se reforçam, alargando ainda mais o abismo das desigualdades. Faz-se, pois, urgente contestar as lógicas capitalistas e racistas que, a um só tempo, explora, hierarquiza e exclui especialmente escritores e escritoras negras em seus circuitos.
A dramaturgia de Cristiane Sobral – Uma Boneca no Lixo – inaugura o selo editoral Aquilombô, que representa, desde já, uma alternativa, uma possibilidade de operar criativa e politicamente para além das grandes instituições e suas imposições mercadológicas, construindo com independência (e evidentes dificuldades) uma vereda artística que, em si própria, desfere uma dura crítica à hegemonia branca e capitalista no universo editorial deste país. Com efeito, rasurar o presente estado de coisas e demarcar uma presença são atitudes fundamentais para que negros e negras possam se efetivar como autores, formar novos quadros intelectuais e literários, experimentar textualidades e, enfim, construir carreiras profissionais. Nesse sentido, tal selo editorial vem, ao lado de editoras, tais como Malê, Nandyala e Mazza Edições[2] (para citarmos apenas algumas), desmantelar uma histórica lacuna.
Em entrevista realizada por e-mail, conversei com Rodrigo Jerônimo – Coordenador Artístico da Mostra Aquilombô; e com Marcos Fábio de Faria – Coordenador da Série Editorial. Ambos discorrem sobre os conceitos e pensamentos que fundamentam as iniciativas, sobre a cena negra e a crítica teatral em Belo Horizonte.
Rodrigo Jerônimo. Foto de Flavio Patrocinio
Como foi desenvolvida a concepção do projeto Aquilombô? Quais são seus principais referenciais e/ou pilares teórico-críticos?
Rodrigo: O Aquilombô como fórum surge em 2018 a partir da percepção que não existe uma empregabilidade preta na arte, principalmente no que tange a etapa de criação artística. Em 2018 quase 80% dos projetos aprovados na Lei Municipal de Cultura de BH foram aprovadas por pessoas brancas, festivais, mostras e projetos de fomentos são ocupados majoritariamente por pessoas brancas, quando tem negros são negros que não dá prá ignorar no cenário nacional. E nós, os outros? Como ser remunerado para colocar nossa arte e nossa estética em cena?
A partir dessa percepção e a partir da minha experiência como artista preto, percebi que até conseguimos criar nossos espaços de exibição, mas é muito difícil parar para criar artisticamente com a atenção necessária que nosso trabalho exige. Então pensamos em um espaço onde as residências artísticas poderiam ser esse lugar da criação.
Em 2018 começou então uma grande tentativa e esforço do Grupo dos Dez de viabilizar esse ambiente criativo. Não nos consideramos um espaço fechado e sim em permanente construção. Aliado à questão da empregabilidade era necessário também criar um espaço combativo, político e militante. Não nos interessa estar em cena de qualquer maneira, com qualquer discurso, nossa escolha é consciente e organizada, pensamos a política esteticamente, não somos um coletivo de produtores de evento e sim artistas militantes. Queremos e estamos tentando construir um espaço questionador da ordem social vigente. Olhando para as nossas antigas questões com mais cuidado histórico, fazendo reflexão a partir de marcos teóricos não artísticos, por exemplo o Marxismo Leninista. Acreditamos em uma arte revolucionária. Aquela que opera no sentido de mudar o mundo. Sim! Militância política na arte, é o que o Aquilombô pretende fazer é o que o que esse Fórum pretende ser.
Não queremos apenas estar no palco, queremos modificar mentes e corações através das diversas narrativas presentes no país e no mundo e mobilizá-las pras lutas sociais. Nossa militância política artística parte de experiências reais cotidianas, se debruça na realidade de cada artista participante. Não acreditamos no inovador ou no inédito, acreditamos no que está ativo e vivo, pensando as questões reais da população negra e indígena. Nosso grande debate da edição 2019 foi justamente esse: Como a arte vai interferir no nosso cotidiano efetivamente? Estamos diante de um dos momentos mais difíceis do mundo, a extrema direita avança no norte do mundo fazendo se eleger seus capachos no sul mundial, e no Brasil não é diferente, se nós artistas que dialogamos tão diretamente com o povo não nos empenharmos em combater efetivamente a violência de Estado, se não colocamos nossos corpos para o combate diário o que será do povo negro e indígena?
Nesse sentido se olharmos as tecnologias quilombolas e indígenas de luta e existências, poderemos colocar esse como principal marco teórico do Fórum, até porque não há possibilidade de coexistência entre colônia e quilombo. Se o quilombo não opera no sentido de travar uma luta anticolonial, então ele se insere naquela lógica de morte, onde protejemos quem está nesse território físico e afetivo, mas quem está fora desse território pode morrer com 80, 111 ou 240 tiros em praça pública. Acreditamos a partir da leitura de Angela Davis e Fanon, não basta que nós, profissionais pretxs das artes, entender sobre como o racismo opera em nossas mentes, precisamos ter uma militância consciente para derrotá-lo e isso se dará no âmbito político direto.
A estética e a arte são uma contribuição para a destruição da colônia e para uma revolução que olhará para as diferenças como potências revolucionárias, pensando sempre a partir da unidade política, onde todas as narrativas estéticas podem ser inseridas e valorizadas.
Qual a relevância artístico-cultural de um Fórum de Artes Negras? Por que pensar especificamente em um Fórum, isto é, quais seriam as potencialidades deste formato, em particular?
R.J: Não tenho distanciamento para discorrer sobre a importância nem relevância do que estamos propondo. Só estamos propondo e tentando construir algo, que honestamente não considero inovador. Sei que nosso Fórum sempre vai olhar para continuidade de pensamento. Então uma vez em criação o artista será provocado a pensar no que está sendo realizado para além do resultado final, o chamado produto artístico, questões como: sustentabilidade de carreiras, questões estéticas presentes no trabalho, empregabilidade e formação de público para seus trabalhos, e lógico com o seu trabalho opera e faz militância pra mudar o mundo. Depois de apresentar o resultado ao público o que pode ser registrado em imagens e textos críticos? O Fórum é um espaço de reflexão e ele é permanente porque nossa reflexão precisa se fazer diariamente. Como disse é um espaço que está sendo construído, em constante movimento. O que pretendemos não é criar fissuras e sim movimentos tectônicos que irão deslocar efetivamente nosso olhar para o mundo. É o que estamos tentando criar, tentando, tentando!
A noção de arquipélago se configura como marco conceitual operadora e articulador das ações desta última edição do Aquilombô. Poderia nos explicar as razões desta escolha terminológica e de que maneira ela se reflete no pensamento artístico-curatorial do projeto?
R.J.: O conceito de arquipélago foi trazido pelo Anderson Feliciano em 2018, um dos artistas curadores da edição 2018 que acabou se desdobrando pra 2019. A partir do teórico Édouard Glissant, que enxergava a multiplicidade das estéticas negras no Caribe, a ideia trazida por Feliciano opera nesse sentido de unir várias ilhas (artistas criadores que estão pesquisando em diferentes fontes e se aprimorando em diversas estéticas) que se reúnem em um grande arquipélago para construir uma unidade sócio-política. Nesse sentido, em 2019 tentamos construir uma programação onde os corpos e corpas se unem pra criar uma opção a uma arte embraquecida e europeizada que configura as grandes programações brasileiras. Conseguimos reunir intelectuais, artistas da dança do teatro, performers, artistas visuais, escritoras, circenses, musicistas. Mulheres cis, trans, travestis, bichas pretas e homens negros que atuam efetivamente no combate das mazelas do país.
Estamos em criação, independente de editais, mas essa criação vai versar sobre nossas questões mais urgentes, não ignorando nossos afetos, que podem ser revolucionários, desde que eles contextualizem essas questões no agora, sem ignorar o processo histórico em que estamos inseridos. Dessa forma, dialogar, a partir de outras gramáticas estéticas que não a européia e estadunidense. Se valendo sim de nossa religiosidade, nossas culturas tradicionais, e nossas tecnologias de luta, com um permanente reconhecimento de que a cultura afrobrasileira é atravessada por diversas culturas e que falamos de outro lugar que não apenas do continente Africano.
A curadoria se guiou por apresentar artistas que não tem espaço nessa cidade. Conseguimos capilarizar para cidades do interior de Minas (Araçuaí, Teófilo Otoni e Juiz de Fora) e trazer artistas de outras capitais (São Paulo e Brasília). Foi um processo curatorial intenso e muito enriquecedor. Foi a primeira edição que artistas apresentam trabalhos criados para o Aquilombô. A construção desse espaço continua e vamos seguir adiante com quem reconhece essas iniciativas que tentamos realizar como importante. Nossa legitimadade vem desse lugar, onde artistas e públicos irão reinvidicar sim o Fórum como algo público e aberto a qualquer pessoa que tenha uma ideia na cabeça.
Marcos Fábio de Faria. Foto de Annelize Tozzeto
Em 16 de maio de 2019 aconteceu o lançamento da Série Aquilombô com a presença da artista Cristiane Sobral, cuja obra “Uma Boneca no Lixo” inaugura a iniciativa no âmbito do Fórum. Conte-nos sobre os processos de criação desta série. E o que, em sua visão, ela representa no campo editorial, especialmente em se tratando de autores e autoras negras.
M.F.F: A série editorial Aquilombô foi uma proposta, a princípio, de ser uma residência. Quando sugeri que repensássemos o conceito de residência, tornando-o, nesse caso específico, permanente, portanto, como uma ação que se determinaria como um braço do Fórum, estava apostando em um espaço possível de escoamento da produção artística e intelectual escrita por negras e negros. Ao mesmo tempo, essa proposta era uma reivindicação natural para um intelectual e artista das letras, cujo trabalho, assim como de milhares outros sujeitos na mesma condição, não encontram espaço nas casas editorias, mesmo nas que determinam como nicho editorial a produção negra.
Diversos são os motivos, mas, acima de tudo, havia, enquanto profissional do texto e com um vasta, porém pausada, experiência na produção de livros, o desejo de pensar uma estrutura menos mercadológica possível para essa produção. Hoje, existem diversas editoras que vivem da exploração exacerbada dos autores, que além de arcar, na maioria das vezes, pela edição de seu trabalho, torna-se, ainda, responsável pela distribuição, ou seja, ela paga um valor altíssimo para ser membro de uma espécie de clube editorial, cujo trabalho é, na maioria das vezes, o de somente estampar sua logomarca e acrescentá-lo em seu catálogo.
Primeiramente, as editoras que são estáveis, que podem sobreviver da suposta parceria entre artista ou intelectual (digo suposta, pois as práticas contratuais sempre oneram o produtor de conteúdo e geram lucros para a editora, que, na maioria das vezes, praticam o valor de mercado sobre a obra do autor que, por sua vez, só consegue sobreviver do seu trabalho quando alocado em uma condição de celebridade), são inacessíveis e praticam a política mais perversa em arte que é a do privilégio de acessos. Assim, o trabalho escrito passa a ser como uma espécie de terceirização em que as casas editoriais se valem de uma espécie de uberização, para usar um termo contemporâneo, do trabalhador. Algumas vezes, sobretudo se tratando de escritores negros e, em sua maioria, graças às escassas aparições acadêmicas ou reivindicações de acadêmicos específicos conseguem um espaço mais relevante dentro do mercado literário, como o caso da obra Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, que, após ser indicada para o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais, logrou um êxito e, por extensão, a própria Evaristo se tornou um escritora completamente destoante da história literária nacional, sendo somente alguns casos que se comparem à ela, a exemplo de Machado de Assis, Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus, ou de Auta de Souza, que teve sua relevância reconhecida postumamente por intermédio da doutrina espírita.
Uma pesquisa coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, junto ao Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da UNB, ressalta uma hegemonia no perfil do romancista brasileiro e que, por extensão, segue para outros gêneros escritos. Esse perfil aponta que maioria absoluta tanto de escritores como de personagens, seguem um padrão, o do homem, branco e classe média do eixo Rio-São Paulo. Autores e personagens negros representam apenas 2 e 6%, respectivamente, da produção literária brasileira. Tais dados são extremamente alarmantes no que se refere à representatividade e, por consequência, à empregabilidade de profissionais negroas e negros da escrita no Brasil.
A pretensão da Série Aquilombô é trabalhar na implosão dessa realidade e, por isso mesmo, ela não pode ser visualizada como uma editora. Quando convidamos a Cristiane Sobral para publicar sua obra Uma boneca no lixo, já estávamos operando nesse sentido. O texto, de extrema importância para a literatura teatral brasileira, sobretudo por ter sido a primeira peça com a temática e parte da equipe majoritariamente negra a ser apresentada como trabalho de conclusão de curso na Universidade de Brasília, além de ter ficado anos em cartaz, foi relegada, durante 20 anos, por diversas editoras, mesmo a Cristiane sendo uma das mais importantes escritoras negras brasileiras da contemporaneidade. O resultado, foi um livro com uma notória qualidade estética e de preparação, além de, dentro do que acreditamos, fazer um livro acessível em relação a livros com a mesma qualidade disponíveis no mercado livreiro.
Enquanto escritor e intelectual que produzo tanto conteúdo artístico, quanto crítica, teoria e estudos, não consigo, apesar do espaço privilegiado que os professores universitários encontram, não consigo escoar nenhum material por mim elaborado, com algumas exceções de textos em coletâneas etc. via a possibilidade da Série em ser um espaço para meu trabalho, independente das condições atuais de produção editorial que são vigentes. Ao mesmo tempo, enquanto um militante da empregabilidade de sujeitos negros, cis e trans, não poderia pensar essa residência como um espaço exclusivo para os meus trabalhos. Por isso, essa residência existe, para garantir que haja uma mudança nas formas de produção editorial no que tange o ingresso da população negra no mercado editorial.
Outro ponto que me leva a proposição dessa Série é referente à estrutura falha das políticas culturais no que tange ao financiamento da produção escrita. No caso da literatura propriamente dita, há uma escassez de editais que se voltam especificamente para essa arte. Além disso, os diversos concursos literários não dão conta de absorver o que é produzido, além de criar premiações completamente injustas, ou seja, muito dinheiro para somente poucos escritores que concorrem. Casos como os prêmios literários mais conhecidos premiam um escritor com valores que poderiam ser remetidos à produção de diversos livros, além de permanecer naquela antiga ideia de que a qualidade literária está submetida às premiações. Os grandes prêmios, aqueles que são voltados para obras já publicadas, são ainda mais excludentes, já que, devido ao perfil dos escritores brasileiros que acessam as casas editoriais, eles acabam, também, sendo tendenciosos nas suas premiações.
Na apresentação de alguns princípios da Série Aquilombô, foram mencionadas duas coisas significativas: primeiramente que a pretensão é desenvolver um selo; e em segundo lugar foi dito que o termo “editora” não seria o mais apropriado para esta iniciativa, mas sim laboratório ou até mesmo espaço de acesso. Poderia nos explicar melhor estes dois pontos?
M.F.F.: Quando eu menciono que a ideia não é fazer uma editora, mas mais um laboratório editorial, ou um espaço de acesso, primeiramente, é importante, nos voltar para o que é a propostas aqui. Não estamos em busca de escritores que paguem para publicar, menos ainda estamos dispostos a adotar as práticas liberais de exploração dos autores como é típico no mercado editorial. Isso quer dizer que os parceiros da Série são completamente livres para propor a melhor forma de trabalho, cujo resultado será um livro. Para isso, o investimento financeiro tem sido por parte do Aquilombô e temos assumido, também, as formas de distribuição.
Além disso, pretendemos trabalhar com a residência de escrita, em que autoras e autores negros apresentam um projeto criativo, cujo desenvolvimento será financiado pelo Fórum. A prática da criação artísticas e intelectuais, assim como qualquer outra, precisa ser encarada como trabalho e, no caso da arte escrita, necessita ser retirada da condição de hobby. A pretensão é ser um espaço de promoção profissional de escritores sem que haja a afiliação exclusiva da autora ou autor com o Fórum. Por isso, a única contrapartida que pedimos é a publicação da obra escrita durante a residência criativa via a Série. Não se trata, de forma nenhuma, de uma prática original, isso já acontece com diversas editoras, mas o que queremos mudar é a perspectiva da empregabilidade bem como repensar os valores atualmente aplicados sobre os direitos autorais, que revelam uma prática exploratória.
É sabido que um livro enquanto um objeto artístico, com qualidade, é possível de ser realizado com economia, resultando em um produto de preço acessível. Não pretendemos ser uma casa editorial que vive do lucro exacerbado, pretendemos que os próprios livros se paguem. A experiência da nossa primeira publicação tem nos provado que é possível, assim como outras casas editoriais com a mesma ideologia, que são poucas, têm apresentado resultados semelhantes. É claro que tentaremos recursos de diversas fontes para que possamos, cada vez mais, ampliar o nosso catálogo. Porém, temos um compromisso ético quanto pensamos que a Série não é uma empresa, mas uma residência permanente, cujo objetivo é a produção. Além disso, estaremos, de acordo com a nossa realidade financeira, abertos a trabalhos de escritoras e escritores negros que queiram submeter originais inéditos. Somente esse recorte, já é uma mudança imensa na realidade editorial do Brasil.
Pensando na presença do Fórum Aquilombô na cidade, como você analisa, de modo geral, o panorama das artes negras em BH? Seria possível apontar ou identificar seus traços estético-políticos mais marcantes, recorrentes ou expressivos?
R.J.: Em Belo Horizonte acontece um fenômeno que é reconhecido nacionalmente, por sorte não estamos na dependência das Leis de Incentivos e curadorias para estar presente na cena. Aos poucos conseguimos por nós mesmos desbravar essa terra tão árida pra nós artistas pretxs. Mas mesmo assim tenho uma análise pouco otimista já que vejo muitos colegas se deprimindo, ora pela dificuldade de arrumar trabalho remunerado, ora por não serem entendidos e assim excluídos sistematicamente dos palcos, galerias e outros espaços de exibição.
Em 2015, o Coletivo Mulheres Criando estabeleceu uma dinâmica diferente para a ‘seleção’ de artistas que se apresentariam ao longo do ano. Todas elas poderiam se inscrever até mesmo via áudio de whatsapp. O que aconteceu foi que várias compositoras começaram suas carreiras ali, pois não houve uma curadoria como antes: não era necessário comprovar experiência, apenas era necessário demonstrar interesse em construir uma carreira. Esse “ não critério” foi inserido no Aquilombô por Bia Nogueira, e nos foi revelado uma cena pouco frequentada pelos curadores e críticos.
Honestamente acho que Belo Horizonte uma terra muito criativa, mas também muito difícil de se trabalhar, eu como profissional do teatro e da música vejo com muita preocupação nosso futuro, o que tem me movido para dar continuidade ao Fórum é justamente isso, como criar condições de trabalho para essxs artistas? Como valorizar o processo e não o produto? Como dar visualidade as diversas estéticas sem o juízo de valor quase imposto pela crítica especializada, curadorias e afins? Acho lamentável nós enquanto profissionais determinarmos o que pode e o que não pode na arte, lamentável porque isso reproduz a lógica da exclusão, determinar o que deve ser visto é quase dizer para aquelas pessoas que se valem dos mais variados pontos de partida que a arte dela é menor e ultrapassada.
Trabalhamos em outra perspectiva: todas as narrativas são importantes e não gastamos nosso tempo versando acerca do que é bom e ruim, porque entendemos que até esses conceitos meritocráticos podem ser racistas, mesmo que quem o faça seja preto ou preta. Determinar o que é aceitável é quase que reinvidicar a colônia e não acreditamos nela pois estamos na luta tentando destituí-la de poder. Por todas essas questões acho que todos os traços estéticos – políticos são marcantes e expressivos. Não parto desse pensamento pra pensar a arte preta. Se existe um preto em cena, uma corpa travesti ou trans, se existe uma literatura feminina, se existe uma narrativa cinematográfica periférica, pra mim ela pode partir de qualquer marco teórico, pra mim ela é existência e ela vale muito, pois sei o que é um corpo preto se colocar nessa área tão racista que é a arte. Iremos sim criticar, pois se trata de um produto artístico, mas a crítica não partirá do bom e ruim, mas do que tecnicamente funciona ou não funciona naquele trabalho. Não deveríamos dizer ao artista que o que ele faz já está vencido e que precisamos partir de outra perspectiva. Fazendo isso estamos ignorando sim toda a história daquele indivíduo com a arte, e não é essa nossa função.
Visto que o Fórum pretende ser uma instância de pensamento sobre as poéticas negras, de que maneira você enxerga a interlocução entre a crítica e as artes negras? Parece-me que as reflexões acerca das expressões cênicas vêm paulatinamente se afirmando com mais força na cidade. Como se dá esta questão na música, sendo você um profissional desta área também.
R.J.: Temos poucas escolas de crítica no Brasil e aqui em Belo Horizonte não é diferente, por isso é difícil determinar uma cena de críticos, já que a fazemos partindo de poucos conhecimentos técnicos. Vejo respiros sim de pessoas que não são necessariamente formadas na crítica, mas que tentam elaborar algum pensamento crítico acerca da cena., mas também vejo o pensamento crítico reproduzindo uma dinâmica bem academicista que não dialoga com a realidade de produção, nem dialoga com o público de nossos trabalhos.
Leio todos os críticos que consigo, falando sobre diversos trabalhos das mais variadas estéticas e sempre vejo uma fórmula que reproduz esse pensamento acadêmico que não dialoga com a população. No fim esse pensamento crítico vira quase artigos acadêmicos e não atinge o público em geral. Vou analisar partindo do contexto mais genérico: existe uma dificuldade da crítica de reconhecer as linguagens pretas no caso da crítica branca, e uma dificuldade em valorizar nossas diversidades determinando o que pode e o que não pode na arte preta, no caso da crítica preta. É quase uma negação das escolhas dos grupos, operando no sentido de censor de nós mesmos. O que pode e o que não pode no Teatro? Gostaria de ver críticas que se valem do trabalho técnico, independente das escolhas estéticas do grupo.
Tendo como base críticas de trabalhos que faço parte e que estão presentes em jornais de grande circulação, sinto falta de falarmos mais sobre o cenário, sobre o figurino, sobre a luz, sobre o trabalho dos atores, sobre erros e acertos da direção e da dramaturgia, discorremos sempre sobre o mais genérico, o mais subjetivo ou apenas sobre formas discursivas, não acho que a crítica deveria se valer apenas do subjetivo. No caso da música nem comento, pois nós somos ignorados, na verdade os críticos não alcançam a música preta, pois eles estão olhando pro que há de vendável. Acho que não cabe a gente analisar questões pelo que é pontual, mas sim pelo que é sistemático. Reivindico todas as formas de expressão, e vejo que é sistemático que a crítica está relegada a portais independentes, que se tornaram muito importante para nós artistas, mas há de se pensar nossas plataformas e a quem está nos lendo. Será que meu interlocutor está entendendo esse texto? Se achar que está entendendo, o que é relevante numa crítica? Queria ler uma opinião especializada.
Acho que acaba que o texto crítico como forma ficou mais importante que o trabalho a ser criticado, precisamos entender a ordem das coisas: a crítica só é importante se ela vai refletir aquele trabalho como um todo, por mais negativa que ela seja, os leitores, e eu falo agora no lugar de leitor, queremos entender, se ainda não assistimos de onde parte aquela peça, o que podemos esperar daquela temporada? Não me importo com citações de teóricos, independente quem seja, quero saber é da apresentação que o crítico assistiu, preciso alcançar o que é um problema na encenação e o que foi erro daquele dia que o crítico assistiu. Deixemos os artigos acadêmicos pros canais especializados em pesquisas acadêmicas.
Gostariam de acrescentar qualquer outra informação ou discorrer sobre algum tema não perguntado?
(Nenhum dos dois se manifestou)
[1] Pensamento proferido em sua Conferência: O compromisso da Universidade na superação do racismo, ocorrida em junho deste ano.
[2] Maria Mazzarelo foi a homenageada da 7ª edição da SegundaPRETA.