Crítica do espetáculo ”Em Nós”, do Coletivo Movasse
– por Clóvis Domingos –
“A ação desejante, neste caso, consistirá num processo de criação que orientado pelo poder de avaliação dos afectos (o saber-do-corpo), irá materializá-los em imagem, palavra, gesto, obra de arte, modo de existência ou outra forma de expressão qualquer. E se essa operação conseguir se realizar plenamente, ela dará uma consistência existencial ao mundo de que tal germe é portador, ao dotá-lo de um corpo sensível”.
(Suely Rolnik. A Hora da Micropolítica).
“Em Nós”, a mais nova criação do Coletivo Movasse, estreou no evento “Percurso – Encontro da Cia. Sesc de Dança com o Coletivo Movasse”, no Dia Internacional da Dança, sendo apresentada no Grande Teatro do Sesc Palladium. Parceria importante do coletivo de dez anos com a jovem Cia. Sesc de Dança, o evento “Percurso” marca um encontro entre diferentes gerações de bailarinos e corpos, movimentos e histórias.
Na primeira parte desse encontro, a Cia. Sesc de Dança apresentou uma releitura de dois solos criados há quase uma década pelos bailarinos do Movasse Esther França e Carlos Arão (condutores do processo de criação). Intitulado “Percurso”, nesse trabalho o que se apreende é o tempo percorrido entre o passado e o presente, isto é, a dança de ontem que se movimenta e dialoga com os corpos de hoje. Num conjunto formado por três partes (um solo, uma coreografia em grupo e um quarteto), um pouco da trajetória do coletivo Movasse ganha corpo e espaço através da vitalidade técnica da Cia. Sesc de Dança. Nessa visita a células coreográficas de trabalhos anteriores, o que se efetuaria: um processo de recriação ou de transcriação (termo criado pelo poeta Haroldo de Campos)? Impossível responder.
A coreografia apresentada a mim sugeriu o percurso solitário e paralelamente acompanhado de nossos corpos hoje, numa vida cotidiana agitada e coletivizada, ainda que estejamos próximos, mas imersos em nossos mundos individuais. O recorte temático em minha acepção é o de se mostrar o excesso de movimento e o pouco contato humano.
Na segunda parte, “Em Nós” o coletivo Movasse explora dramaturgicamente e coreograficamente a expressão “nós” tanto como pronome do plural como substantivo (os “nós” como fios ou amarras). Como se movimentar? Como criar formas para se viver junto? Como resistir em tempos de biopolítica e estado de exceção? O que pode o corpo coletivo? Qual o preço a ser pago quando nossa vida está interligada aos outros? É possível caminhar juntos ou os outros nos paralisam? Essas questões se materializam nos corpos dos bailarinos (Carlos Arão, Esther França e Tuca Pinheiro) a partir de escolhas poéticas (ora densas, ora mais leves) que não abrem mão da denúncia, ainda que indireta e metafórica, do nosso momento político atual brasileiro. Isso abordado sem qualquer tipo de panfletarismo, mas pela elaborada e delicada coreografia que se apresenta.
Ginga e insurgência em corpos micropolíticos. A trilha sonora acerta na proposta de enlaçar corpo e política, conjugando momentos coreográficos nos quais as letras das músicas ampliam essa mirada necessária e a reflexão crítica sobre aquilo que nos impede de prosseguir e nos força a resistir. Posso citar a canção “Não deixe o samba morrer” (na voz de Elza Soares e Marku Ribas), executada num trecho do espetáculo no qual a bailarina, cujas pernas estão presas à uma corda fortemente sustentada por outras mãos (seria uma metáfora dos poderes que nos agarram constantemente?), faz dessa tentativa de paralisação um movimento de reação em forma de dança e movimento rebelde. Não deixar o samba morrer como não deixar a luta desaparecer! Da força autoritária da corda para a potência criativa e flexível daquilo que Acorda! O corpo com suas astúcias e táticas de invenção e renovação. É mais difícil se capturar corpo e pensamento quando esses se movimentam como matéria plástica e em estado de variação.
“Em Nós” há a visita a um país que sofre e resiste. Insiste. Re-existe! Reinventa-se. A pesquisa dramatúrgica e coreográfica, nesse espetáculo do coletivo Movasse, oferece diferentes leituras e respeita a inteligência e a sensibilidade do espectador, não impondo nenhuma chave específica de contato com a obra. Entre silêncio, movimento e som, um Brasil popular, afetivo, contraditório, cordial, violento, religioso e festivo é evocado por meio da maturidade artística e a dança essencial e sintética do coletivo Movasse. Um trabalho sensível cujos corpos se propõem a “construir outras pontes para uma existência sempre dinâmica” – trecho da matéria escrita pela jornalista Joyce Athiê e publicada no Jornal O TEMPO.
Para finalizar: o evento “Percurso – Encontro da Cia. Sesc de Dança com o Coletivo Movasse” confirma a força e a luta da dança contemporânea para ser reconhecida (pelas políticas públicas de fomento) como terreno fértil sempre a semear o corpo conectivo e coletivo como dispositivos políticos e de emancipação social. O encontro entre essas duas companhias colabora efetivamente para a continuidade da pesquisa e história da dança em nossa cidade.