— por Daniel Toledo —
Crítica a partir do espetáculo “Memórias de Bitita – O Coração que não Silenciou”, do grupo Circo Teatro Olho da Rua (Belo Horizonte/MG).
Nascida em 1914, menos de três décadas após a abolição da escravidão no Brasil, a mineira Carolina Maria de Jesus é frequentemente apontada como uma das primeiras e – também por isso – mais importantes escritoras negras do país. Cronista da vida nas emergentes favelas brasileiras, assim como da desigualdade que desde sempre marcou nossa estrutura social, Carolina viu sua primeira obra, “Quarto de Despejo”, alcançar grande reconhecimento no início da década de 1960. Pouco tempo depois, ao que parece, tal sucesso seria interrompido por certa incompatibilidade entre o teor de seus escritos e de sua personalidade e a forte onda conservadora que surgia no país, àquela altura, reduzindo em muito o “interesse geral da nação” por manifestações culturais ditas “populares”.
Embalado pelo centenário de nascimento da autora, assim como pelo nítido empoderamento da população negra no Brasil e em outras partes do mundo, o espetáculo “Memórias de Bitita – O Coração que não Silenciou” convida o público a um mergulho na obra da artista, levando à cena um generoso apanhado de reflexões, narrativas e canções que integram a obra da artista. Para tanto, a montagem reúne três atrizes de diferentes perfis e idades – Carlandréia Ribeiro (também produtora e dramaturga), Eda Costa e Juliene Lelis – para interpretar a mesma personagem, alternando-se entre registros narrativos e dramáticos de atuação, entremeados a números musicais acompanhados por uma pequena banda sempre presente no palco e breves participações do diretor da montagem, Jacó do Nascimento.
Foto de Victor Maestro.
Logo na primeira cena do espetáculo, umas das questões centrais ali tratadas já se coloca: a opressão e a precariedade das condições de vida como um possível obstáculo à poesia e a beleza, representada por uma crise de tosse que interrompe a canção que abre a montagem. Para Carolina, no entanto, esse obstáculo acaba servindo como impulso, e é justamente a precariedade da vida do pobre, do negro e, sobretudo, da mulher negra que serve como alimento à criação de uma obra literária e musical bastante singular e contundente. O que temos, ali, afinal, é a afirmação de uma voz que, por muito tempo, não teve lugar na arte, na política ou na sociedade: a voz da mulher negra e pobre.
Somos convidados, então, a enxergar nas Carolinas que vemos em cena também outras Carolinas, outras pessoas sem voz que habitam ruas, barracos e casas de cidades contemporâneas, pessoas igualmente silenciadas pela dureza e a precariedade da vida. Temos acesso a um mundo cindido entre pobres e ricos, entre aqueles que são tratados como inimigos por instituições como a polícia e o Estado e outros, cujos privilégios tais instituições são orientadas a proteger. Testemunhamos, a partir dos olhos da personagem, a uma realidade social cuja rotina é permeada por violências de múltiplas naturezas, estendendo-se a ambientes domésticos, escolas infantis e também às relações de vizinhança. “Vou colocar tudo no meu livro”, avisam as Carolinas, em tom de ameaça, a quem quiser ouvir.
Também a noção de escravidão é problematizada no espetáculo, sendo encarada a partir das faces que adquiriu após a abolição de 1888. Carolina nos apresenta, então, os “escravos do custo de vida”, a partir de uma lógica em que a existência se converte em luta diária pela própria sobrevivência. Constitui-se, ali, uma história marcada por recorrentes migrações entre campo e cidade, entre centro e periferia, um clima de permanente instabilidade, permanente “movida” em busca de melhores condições de vida.
Percebemos, então, que é através de uma atitude observadora, reflexiva, crítica e poética que a escritora – catadora de papel, mãe solteira e moradora de favela – converte em cruas palavras as experiências vividas pela própria pele e testemunhadas pelos próprios olhos, deixando ver sua consciência crítica em relação à sociedade que habita. “Pobre é que tinha que ler”, exclama a personagem, em certo ponto do espetáculo, defendendo, a partir da própria experiência, a leitura, a informação e a educação como instrumentos de consciência social e fortalecimento político de toda a classe oprimida.
Criada como teatro musical, a montagem combina momentos narrativos e dramáticos que produzem climas densos e relativamente solenes; os números musicais por vezes alcançam outras notas, igualmente potentes, porém nitidamente mais leves que as demais. Em vez de uma progressão narrativa ou cronológica, o que se vê em cena é uma sequência de quadros distintos – e quiçá independentes – em que diferentes elementos da obra e da vida de Carolina são compartilhados com a plateia.
A esse respeito, inclusive, parece que “Memórias de Bitita” mais compartilha a obra da artista do que efetivamente comenta ou traz uma visão crítica sobre sua trajetória. Cabe, então, mais ao público do que aos criadores do espetáculo, identificar paralelos e persistências entre o momento social descrito pela escritora e a sociedade que experimentamos hoje.
Em certo sentido, portanto, é a produção literária e musical de Carolina que ganha destaque na montagem, ainda que a obra e a vida da artista certamente se misturem. Por conta dessa escolha, outros aspectos de sua existência, tais quais a maternidade, as relações amorosas e o próprio contexto político e social que experimentou, atravessam o espetáculo somente de relance, deixando ver que, caso haja interesse dos criadores ou mesmo do espectador, claro, há muito espaço para se aprofundar em elementos que compõem a dramaturgia da peça.
Ainda que os escritos de Carolina e o próprio espetáculo nos conduzam a um quadro social grave, cuja violência e desigualdade se reproduzem até os nossos dias, “Memórias de Bitita” encontra na música e na poesia a possibilidade de um desfecho festivo – e afirmativo – para a história que compartilha com o público. Se, por um lado, esse desfecho corre o risco de atenuar o peso e a densidade dos fatos e críticas ali apresentados, por outro, serve como estímulo a que outras Carolinas, seja como aquela nascida em 1914 ou mesmo de outras cores e outros gêneros, encontrem e afirmem, nos dias de hoje, seu orgulho, sua força e sua voz.
Programação: “Memórias de Bitita – O Coração que não Silenciou” | Quinta a domingo, 20h. Até 21 de fevereiro. | R$ 5 (preço único nos postos SINPARC ou pela internet: sinparc.com.br)