– por Clóvis Domingos –
Crítica a partir do espetáculo “A mulher que andava em círculos”, do Mayombe Grupo de Teatro (MG).
“A urgência de uma política de memória. Somos educados por segredos altissonantes que conhecemos, mas não dizemos. A reconstrução dos fatos a partir de diversos pontos de vista dos sobreviventes do terror e de familiares que viveram experiências desumanas de dor e de perda colaboram potencialmente para que os crimes praticados pelo Estado e a impunidade de seus perpetradores sejam julgados. Desgraçadamente, nossa história ainda parece seguir sob os signos do silêncio e da amnésia, quando grupos conservadores saem às ruas pedindo intervenção militar e torturadores são tratados como heróis. (…) Saber como aconteceram as práticas sistemáticas de tortura e desaparecimento consentidas pelo Estado pode nos ajudar a tomar uma posição crítica diante da barbárie para que ela não se repita, reativando nossa memória histórica, a poder dizer que essa violência é inaceitável”.
André Mesquita.Esperar Não É Saber: Arte Entre o Silêncio e a Evidência.
A mulher que andava em círculos é o novo espetáculo do Mayombe Grupo de Teatro, que em sua trajetória de vinte anos trabalha com a cultura latino-americana em suas múltiplas vertentes articulando memória, estética e política. Mais uma vez esse importante coletivo belo-horizontino vem tocar nas feridas abertas de uma América Latina ainda marcada por violências, governos ditatoriais e práticas de esquecimento.Um trabalho solo, com atuação vibrante e bem construída de Marina Viana, tecido por diferentes camadas discursivas: o íntimo e o coletivo, o ficcional e o documental, o passado e o presente, a palavra e o silêncio, o afetivo e o histórico, a memória e o esquecimento.
Ao adentrar o espaço cênico tem-se a impressão de um início de visita a uma exposição dolorosa e poética, aos lugares híbridos e fragmentados de memórias e esquecimentos de uma mulher. Circulamos por essas diferentes estações habitadas por objetos, roupas, fotografias, documentos (configurando uma dramaturgia do espaço), cujas instalações em sua plasticidade e apelo histórico convocam e tensionam nossa sensorialidade e capacidade reflexiva. Tal espacialização materializa a fragilidade de uma memória dispersa e, nessa visitação, experimentamos o percurso circular que depois a personagem intitulada Mulher (numa alegoria das mais variadas mulheres de luta) irá fazer.
A cenografia instigante de Rafael Bottaro soma-se à iluminação precisa de Marina Arthuzzi, usando o claro-escuro como luminosidades e apagões da memória, na construção dessas sessões de lembrança. Tanto a cenografia – que ocupa diferentes nichos do espaço reforçando uma memória desconjuntada e apresentando objetos como, por exemplo, porta-retratos com rostos em branco, numa provocativa alusão a uma ausência presentificada ou até, talvez, nos convidando a depositar ali nesse vácuo a imagem de alguém específico – , quanto a iluminação – em alguns momentos tornando difusas algumas expressões da atriz – se relacionam com as outras dimensões da cena e reforçam essa memória feminina embaçada.
O texto de Éder Rodrigues (que contou com intervenções da atriz) se apresenta como uma dramaturgia rapsódica que passeia e cartografa as marcas e fios soltos de uma narrativa que tenta insistentemente fazer uma costura delicada e ao mesmo tempo indignada do relato de uma mulher guerreira, mãe cujo filho foi desaparecido (como nos casos das Madres da Plaza de Mayo na Argentina e as Mães de Maio no Brasil) e que, em sua busca por reparação e justiça, agora enfrenta o drama de uma doença que vai lhe roubando a memória. Nesse ponto o poético e o político se encontram, os grandes e pequenos fatos dialogam e possibilitam aos espectadores um ato de testemunho comovente que toca pela sinceridade da intérprete e foge de qualquer forma de sentimentalismo e didatismo histórico.
A montagem aposta numa conjugação entre texto e cena na qual o tom dramático se desvanece pelo intimismo da personagem e pela proximidade e interação com o público-visitante-participante, criando assim uma camada épica. Há também momentos de um possível lirismo, e ainda que fatos históricos e sociais sejam evocados, é pela lente e voz singular da Mulher que se estabelece o que a Ana Longoni chama de politicidade do íntimo.
Entre a omissão da história oficial e a resistência de uma história pessoal, a memória circula ainda que a passos imprecisos, e um dos méritos da encenação (destaca-se a direção de Sara Rojo e Fabrício Trindade) é ter nos espectadores uma presença indispensável para a escuta de uma mulher idosa, solitária e ao mesmo tempo rodeada de fantasmas, a colocar seus interlocutores em movimento, inclusive experimentando as incansáveis andanças pelas praças, ruas e delegacias do mundo em busca de um filho roubado. Há uma diferença significativa entre não poder lembrar e ser forçado a esquecer.
Não bastasse a força de se atentar para temáticas tão urgentes do ponto de vista político e histórico, numa camada mais profunda e existencial, esse trabalho do Mayombe também se debruça sobre as passagens do tempo e suas consequências para a condição humana:
“MULHER: (comendo biscoito) Desculpa, na falta de ter o que dizer, a gente sempre se repete. Nada mais constrangedor que o tempo. Ele faz com que fiquemos constrangidos diante de nós mesmos. Já ouvi tanta coisa por aí sobre as formas de ultrapassá-lo, de fingir que ele não existe. Os velhos engravatados se negam a morrer e se repetem com suas panças e cabelos acaju; mas o estrago já está feito, o estrago será feito… O novo sempre vem. Como chama mesmo esse cantor? Eu não tenho mais idade prá fazer de conta. Já ouvi tanta coisa por aí sobre esse momento. Não sei se devo. Provavelmente eu já me esqueci de tudo o que ocorreu ontem, a não ser um detalhe. Mick Jagger, Keith Richards, Charlie Watts, Ron Wood… Belchior. Pena que essa coisa de detalhe a gente descarte sem o menor pudor quando o tempo acelera. Nada passa a ser importante. Belchior. Desculpe, mas uma mulher da minha idade não confia mais no destino, nem na simpatia, devoção, corrente, auto-ajuda, declaração de amor, frase de caminhão. O tempo é um companheiro sincero. A gente é que trai o que todo dia ele confessa sem cerimônias. Eu vou contar antes que você esqueça. Vou contar porque talvez em troca você me leve para um passeio no jardim, um solzinho no vão das pernas ou uma surpresa qualquer. Ontem eu não consegui vestir a blusa. Eu sempre passei primeiro o braço direito no buraco e depois acertava as costas para depois levar o braço esquerdo. Então abotoava a parte da frente. Eu sempre fiz isso sozinha, como uma série de outras coisas. Mas ontem eu não consegui. O braço não me obedeceu e eu desisti logo. Depois foi aquele espelho. Quantas vezes eu disse que não queria espelho. Que já não me importa estar penteada, arrumada ou pronta. Ninguém nunca está pronto. A não ser o tempo, com o seu terno impecável e o andar preciso. (Pausa).Vou deixar um pouco no chão para o cachorro levar depois. (Como se contasse uma novidade) Cachorro é o nome do cachorro lá de casa. Não fui eu que pus esse nome. Foram as crianças. Achei tão original chamar uma coisa pelo nome mesmo”.
A vulnerabilidade física e psíquica da personagem revela a precariedade nossa de cada dia ameaçada constantemente pelos imperativos de uma temporalidade ora vertiginosa e ora vagarosa; e nesse entrelaçamento entre arte e vida todos nos irmanamos. Somos filhos do tempo! Aqui a potência do fazer teatral nos aterra no mais sensível e imponderável do existir humano. Nesse trecho textual por mim destacado, A mulher que andava em círculos me remete a outra personagem: Winnie de Dias Felizes, de Samuel Beckett (guardadas as devidas distâncias e concepções estético-filosóficas). Ambas pouco a pouco engolidas pelo tempo, pelo esquecimento e pelas artimanhas do poder; apegadas a pequenos objetos (escova de dentes, uma sombrinha, fitas K7 e agulhas de tricô) que possam contar/tecer/resgatar alguma coisa que as mantenha vivas; fraturadas em sua solidão, mas resistentes pela força da linguagem. Cada uma circula pela existência com os restos que lhe sobram.
Em tempos de tamanha complexidade política em nosso país, A Mulher que andava em círculos talvez metaforize nossa situação atual: de um lado nossas tentativas de ocupar e resistir mobilizando táticas e ajuntamentos micropolíticos. Na outra margem: uma pátria fragilizada por tantos esquecimentos e injustiças, desnorteada em seus caminhos democráticos repletos de idas e voltas, assolada por intermitentes golpes, despedaçada de sua memória histórica, a correr grave risco de repetir os mesmos círculos.