Hilda Penha, peça do grupo Mulheres Míticas, com Marina Viana. Fotos de Alexandre Hugo
– Luciana Romagnolli –
A vista está cansada da luz azul dos monitores de notebooks e smartphones que colonizaram nossas vidas com sua incessante produção de imagens. Faz falta o teatro presencial na sua dimensão tátil, um espaço e um corpo habitados, ao alcance do toque. A pele das coisas, quando não pixels. Vivemos um tempo de trauma, em que o real da pandemia se impõe, para além da nossa compreensão, e o recobrimos com o consumo acelerado de conteúdos que nos impeçam de sentir. O excesso é a tampa da falta.
Eis que detenho meu olhar sobre a anatomia de um repolho. Visto assim, tão de perto, enquadrado na tela, a materialidade desse corpo cotidiano convida a um olhar menos apressado, revelando os desenhos únicos de suas dobras, o colorido dual das folhas que se deitam sobre si mesmas, sustentadas por um caule branco, e que se dele se desprenderem, todo o corpo se despedaça. Algo da incidência da luz, da mediação da tela e do enquadramento da câmera cria uma imagem ambivalente, ao mesmo tempo pura concretude e abstração gráfica. Essa é uma das imagens-síntese da peça-filme Hilda Penha para mim: a beleza e a gravidade do banal traçadas no corte, as partes prestes ao despedaçamento. O palpável e o impalpável que não se excluem.
Na atuação crua da atriz Marina Viana, em sua relação com as coisas que compõem o espaço onde essa personagem, Hilda Penha, habita e no olhar da câmera dirigida sobre os corpos dela e do que há ao redor, podemos ver uma construção estética elaborada regida por uma ética semelhante à daquela estrutura sólida que se despedaça.
Neste trabalho do grupo Mulheres Míticas, dirigido por Sara Rojo, a produção de imagens encadeia quadros vagarosos, em que as coisas se mostram como corpos, volumes, texturas, formas quase concretas apesar da mediação digital. Teatro e cinema encontram-se na construção de uma presença intensificada, algo de que se poderia pensar o quanto se aproxima do que Rogério Sganzerla chamou cinema da alma, de densidade psicológica, tanto quanto de uma arte da materialidade audível e visível, que ele mesmo tratou como cinema do corpo.
O luto de Hilda Penha aparece na carne das coisas, ali onde o vivo e o morto se distinguem, ali onde os afetos se ancoram, as contingências deixam traumas e o tempo definha. Ali também onde separar corpo e alma perde o sentido, porque é a ausência de vida em um corpo – o do filho dela, assassinado – que a coloca em estado de suspensão e espanto. Seguir em frente não se apresenta no nível da escolha: estamos diante do impossível.
Penso neste momento do país, da América Latina, do planeta, em que o luto é uma experiência coletiva e, ainda assim, tão irremediavelmente íntima. Hilda Penha encontra o político e o social pela fresta da fechadura que nos mostra a extrema solidão dessa mulher. Todo um coletivo se prisma a partir do seu infinito particular: de seus gestos e de suas palavras deduzimos condições econômicas e culturais em que ela já vivia antes da tragédia, e que interferiram para que o destino trágico se efetivasse, apontando para a inserção social daquela mulher no contexto social, econômico e cultural desigual sul-americano. Outras pistas – tais como as filmagens externas, no ambiente urbano de Belo Horizonte, de nomes de ruas em línguas de povos originários, citados por Clóvis Domingos em sua crítica – sugerem as articulações macroestruturais implicadas na história de Hilda, ou a partir dela, e que dizem das especificidades políticas do contexto da dramaturga e do projeto artístico das Mulheres Míticas.
Em seu texto, Clóvis destrincha significações e afetos que decorrem dessas condições, considerando o lugar de subalternidade ocupado por mulheres latinas e outras vidas marginalizadas. Esta dimensão da experiência estética está operante na peça-filme.
O que particularmente me interessa destacar aqui é esse movimento para dentro da casa, que lança o olhar para uma coreografia cotidiana do sofrimento, no modo como aquele corpo oscila entre a imobilidade e o movimento, em busca de um ritmo para a vida, uma maneira de experienciar o tempo do trauma. Algo da leitura de mundo que a crítica social contida nesse projeto artístico almeja pede passagem pelo estado melancólico de uma mulher abismada pelo encontro com o real do corpo morto do filho, com o não simbolizável da experiência da morte de um outro amado. Esse outro a partir de quem algo da própria identidade dela e de sua função no mundo se definiram e agora definham.
A morte violenta do filho escancara o ilógico do tecido social. Esgarça as costuras que sustentam a vida comunitária. Um corpo morto sem a veste da linguagem (porque silenciado por um crime, porque os rituais comuns de simbolização do luto se subtraem) desvela a fantasia que nos sustenta nos discursos capitalista, positivista, cientificista. Expõe a insuficiência da racionalidade para abordar a experiência humana. No desamparo de Hilda, vemos mais que o nosso desamparo projetado especularmente. Vemos o desamparo social e cultural sobrepor-se ao desamparo do ser, que também está lá, na existência dela, desconexa do mundo.
Em um território atravessado por discursos racionalmente estruturados que delimitam identidades e empossam-nas como coordenadas geográficas de luta social, a desorientação de Hilda, sua insistência, seu desejo decidido, permitem-nos entrever outra ética do contrato social. Sobretudo, na sua recusa a um tratamento do luto domesticado pelas normas que o despatologizariam de acordo com os manuais psiquiátricos de nosso tempo. Uma recusa desse tempo do cronometro e desse corpo da normalidade. Uma radical política subjetiva.
FICHA TÉCNICA
Direção: Sara Rojo
Dramaturgia: Isidora Stevenson
Atuação: Marina Viana
Assistência de Direção: Felipe Cordeiro
Direção de Fotografia e Montagem: Alexandre Hugo
Direção de Arte: Sara Fagundes
Concepção de Figurino e Dramaturgismo: Jéssica Ribas
Trilha Sonora: Juan Rojo
Preparação Corporal: Lucas Resende
Tradução: Jéssica Ribas, Luísa Lagoeiro, Sara Rojo
Assistência de Direção de Arte: Raquel Junqueira
Captação de Áudio: Jéssica Ribas, Luísa Lagoeiro
Legenda: Luísa Lagoeiro
Seminários Teóricos: Bruna Kalil Othero, Cátia Maringolo, Edmundo Araújo Neto, Laura Gomes, Louraidan Larsen e Maraíza Labanca
Confecção de Vestido: TTeresa Texto Tecido por Jonas Samudio
Peças de Figurino: Camaleoa Brechó por Thiago Flores
Coordenação de Comunicação: João Santos
Projeto Gráfico: Luiz Gustavo Santos
Produção executiva: Luísa Lagoeiro
Gestão do Projeto e Prestação de Contas: Érica Hoffmann
Realização: Mulheres Míticas
Apoio Cultural: Sesc MG