— por Mariana Lage —
“Torna-se ele um perturbador da paz intelectual, o que lhe custa tornar-se um peregrino numa Terra de Ninguém procurando um refúgio para descansar, mais afastado da estrada, em algum lugar depois do horizonte. Não são eles um bando de complacentes nem de satisfeitos, esses alienígenas de pés inquietos”
Thorstein Veblen
“Quando morre uma pessoa, perdemos uma biblioteca”
Antigo ditado Kikuyu
Essas duas epígrafes, que figuram na entrada da “Entrevista Completa para a Revista Rolling Stone” que Susan Sontag deu a Jonathan Cott, traz dois elementos da vida e da obra do artista, performer, curador e professor Marco Paulo Rolla. Marco Paulo é uma biblioteca viva, de interseção múltiplas de conhecimentos e linguagens – a qual merece ser melhor conhecida, navegada, consultada –, e é também um “perturbador da paz” da arte contemporânea.
Artista que produz em diferentes linguagens como a pintura, o desenho, a cerâmica, a cenografia, o figurino, a escultura e a performance; que há 25 anos produz performances; que é coordenador da Manifestação Internacional da Performance, a MIP, e do Centro de Experimentação e Informação em Arte, o Ceia, e curador de performance do Memorial Minas Vale; que participou de residências artísticas na Rijksakademie van BeeldendeKunsten, de Amsterdã, e na KOHJ International Artists’ Association, em Nova Dehli; e que expôs em países como Finlândia, Islândia, Inglaterra, Espanha, Portugal, Holanda, França, Alemanha, Estados Unidos, Equador, Argentina, Austrália, Israel e Indonésia, além de participar de mostras nacionais importante como a Bienal de São Paulo e o Festival Video Brasil, para citar apenas algumas. Suas obras figuram nas coleções do Inhotim, do MAM-SP, do Instituto Itaú Cultural, do Museu de Arte da Pampulha (MAP), do Museu de Arte Brasileira da FAAP de São Paulo, e do Dragão do Mar, de Fortaleza. Até a Enciclopédia do Itaú Cultural tem um verbete com seu nome. Enfim.
Essa grande figura e essa grande interseção de saberes e sarcásticos insights está logo ali, ou melhor, justo aqui, atuando firmemente na cidade de Belo Horizonte promovendo a performance como uma linguagem mais do que atual. Uma linguagem, sobretudo, potente na perturbação da paz intelectual, artística e estética, que debocha do gosto vigente, que pensa o absurdo, explora o patético no cotidiano e que esgarça o real e o imaginário. Uma linguagem também que revisita as noções mais tradicionais da arte, que questiona comportamentos, modifica nossa noção corriqueira do possível e amplia o horizonte do experienciável.
Como curador, Marco Paulo fomenta a produção de jovens artistas e potencializa o público da performance por meio de diferentes ações, como, por exemplo, seu trabalho à frente do programa de performance do Memorial Minas Vale (temporariamente, esperamos, em stand-by), da Mostra Perplexa da Escola Guignard (como resultado de sua cadeira/disciplina de performance, por ele, a propósito, criada), a curadoria do “Outra Presença” (exposição inédita exclusivamente dedicada à performance no Museu de Arte da Pampulha, a qual curou ao lado de Ana Luisa Santos e Nathália Larsen), além, claro, do Ceia e da MIP, entre outras coisas.
Por tudo isso, é digno de entusiasmo e celebração a abertura de duas exposições retrospectivas do artista nos próximos meses. A primeira abre neste dia 27 de outubro, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro. “Cotidiano Radical” é o nome da mostra que tem curadoria da Cristiana Tejo e traz desde suas pinturas de 1992 à série Eletrodomésticos, a registros de performances mais recentes e videoperformances, como “Canibal” e “Confortável”. Na abertura, Marco Paulo performa sua “Café da Manhã”, de 2001.“A Cristiana quer lançar luz sobre uma parte do meu trabalho que não foi vista direito”, revela. “Picnic”, de 2001, instalação composta de objetos do cotidiano e restos de comida produzidos em cerâmica (obra que pertence ao acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo/MAM-SP), é um dos destaques em exibição na Caixa Cultural.“Cotidiano Radical” fica em cartaz até 20 de dezembro.
A segunda exposição acontece em Belo Horizonte e abre logo mais, no dia 17 de novembro, trazendo muita documentação em vídeo de performances, instalações, objetos, além do inédito “Tomografia do Pecado”. A exposição “Cama, Mesa e Escada” vai até fins de fevereiro, ficando em cartaz por três meses e meio, no Memorial Minas Vale, com curadoria de Eduardo de Jesus.
O entusiasmo de ver e celebrar essas exposições aumenta quando se lembra que não é muito frequente a oportunidade de (re)ver o trabalho de Marco Paulo num escopo mais abrangente. É verdade que, em 2012 e 2010, pudemos testemunhar uma série de performances, como, por exemplo, com a exposição “Sala de Espera para Lugar Nenhum”, no Palácio das Artes, em que concebeu e apresentou diversos trabalhos nos 25 dias de exposição ao lado de Juliana Alvarenga, Paulo Nazareth, Ana Luisa Santos, Marc Davi, Dudude e Wagner Rossi Campos, entre outros, ou durante a 29ª Bienal de São Paulo, em que realizou 17 performances. No entanto, tratavam-se de trabalhos na maioria das vezes inéditos e exclusivos da linguagem da performance. Na Caixa Cultural e no Memorial Minas Vale, temos registros de performances e videoperformances ao lado de instalações, esculturas, pinturas e objetos.
Nesse ano frutífero (em que apresentou a performance de longa duração “Preenchendo o Espaço” no Sesc Pompeia, dentro da exposição “Terra Comunal” de Marina Abramovic, no Saldo de Performances do BDMG e no BH in Solo, além da apresentação “Homens de Preto” na p.Arte, de Curitiba, entre outras coisas), ele também trabalha na organização geral da próxima Manifestação Internacional da Performance (MIP) – querido e celebrado evento que alcança abrangência internacional e entusiasmo geral entre artistas e público da performance no país. A edição de número 3 da MIP está programada para ter uma primeira jornada em janeiro no entorno da cidade de Belo Horizonte e uma segunda em julho/agosto de 2016. “A MIP foi um evento precursor de difusão da performance no Brasil. Ela resulta das ondas de vontade, por isso chama-se manifestação: manifestação das forças do coletivo, dos artistas e do público”, expõe Marco Paulo.
A apologia do riso e o deboche ao fetiche
Ao navegar pela obra do Marco Paulo, muitas vezes, as palavras deboche, ironia, sarcasmo e exagero vêm à mente. Dessas palavras vem também a evidência de que seu fazer deriva de e provoca um prazer pelos tensionamentos e desvios. Em “Tanque”, de 2003, por exemplo, Marco Paulo e Dudude Herrmann performam, literalmente, uma ópera do sabão e exploram o patético e o absurdo na ação prosaica de lavar roupas num taque. O mesmo acontece com a performance “Café da Manhã”, em que se vê por algum tempo a cena banal do performer comendo seu desjejum. De súbito, o artista salta sobre a mesa, com as pernas para o ar, escorrendo pela parede, enquanto os objetos da mesa e as comidas respingam pelo chão. Essa performance relê um episódio da vida dele, quando o artista tinha 7 anos e participava de um cena teatral na escola na qual precisava apenas sentar-se de forma contida à mesa e tomar seu café da manhã em público. Marco Paulo recorda o episódio em sua dissertação de mestrado como o primeiro momento em que teve consciência de estar em cena – a consciência de estar presente.
O olhar do artista é bem peculiar. O barroco, as cerâmicas e naturezas-mortas de inspiração holandesa, a estética do vanitas memento mori dos séculos XVI e XVII, assim como Courbet, Manet e Pontormo são referências constantes. Elas, no entanto, aparecem sempre desconstruídas ou tensionadas. Como, por exemplo, no objeto-instalação “A Enceradeira”, de 1999, em que uma enceradeira é rodada por um denso emaranhado de cabelo humano e que, apesar da banalidade do objeto, consegue trazer uma arte do grandioso, obscuro e dramático. O mesmo acontece em “Ataque Barroco” (2003), em que se tem a instalação de um criado-mudo do qual sai extensa calda de perucas numa linha espessa e ramificada até o teto.
A proliferação de técnicas e assuntos abordados foi elogiada pelo crítico e curador-chefe do MAM-SP, Tadeu Chiarelli, em texto de 2000 sobre a exposição “Da Volúpia do Desejo à Simplicidade da Morte”. Chiarelli considerou que “se não se percebe no artista qualquer espécie de fidelidade quanto às técnicas e/ou procedimentos, o mesmo creio que seja possível dizer quanto ao endereçamento de seu desejo: corpos femininos, corpos masculinos e corpos andrógenos e sedutores, ora pintados, ora desenhados, ora fotografados… Chama a atenção para uma espécie de desejo difundido a tudo e a todos sem direcionamentos premeditados demonstrando uma complexidade riquíssima”.
No trabalho de Marco Paulo, há uma crítica constante à relação do homem com máquinas, eletrônicos e eletrodomésticos, como, por exemplo, nas pinturas “Eletrodomésticos”, e, ainda, na performance que apresentou em Nova Dehli, em 2004, intitulada “Extensões do Corpo”. Nela, o artista se move verticalmente, desafiando as leis da gravidade, entre duas paredes, tendo uma variedade de fios e cabos lhe interditando o movimento. Em “Canibal”, por sua vez, um fogão regurgita pedaços de corpos humanos, besuntados em azeite de oliva. É a máquina que come o homem. A máquina o limita e o domina. Na série de pinturas de 1992 a 1995, os objetos do desejos da sociedade do pós-Guerra aparecem como protagonistas na crítica que o artista dirige à ilusão de perfeição, adequação e harmonia tão vigente nos anos 1950. Essa fissura em meio a uma beleza ideal aparece também na série “Basta uma Falha para Perder um Grande Amor”, na qual Marco Paulo pinta retratos em que os retratados aparecem sorrindo sem um dente.
A morte, a efemeridade da vida e a decadência, assim como banquetes e piqueniques, as ceias, são outras presenças em seus trabalhos. Na série “Vanitas”, de 2003, tem-se carnes cruas e folhas de alface construídas em porcelana: a imanente e rápida decadência da carne e das verduras são estagnadas em objeto de decoração de gosto, no mínimo, duvidoso; a decadência, inclusive, do gosto.
“Trabalho com materiais malvistos ou rechaçados como a cerâmica, a pedra sabão, a argila. Com a série Vanitas, de carne crua feita em cerâmica, acabei fazendo uma coisa que é rejeitada nos dois lugares: na arte contemporânea e na loja de decoração. O sucesso da série é, na verdade, o seu fracasso”, aposta o artista.
A série Oráculo traz príncipes e princesas em cerâmica, como se tivessem acabado de esfacelar no chão e como se o tombo revelasse o esqueleto do que são feitos tais objetos decorativos. Em “Banquete”, apresentada na MIP de 2003, temos uma ceia servida para os poucos que conseguem se sentar à mesa, enquanto os demais, desprivilegiados, ficam de fora observados os comensais – prática comum na corte dos Médicis. Sobre a mesa, temos pães em forma de braços e pernas humanos, corpos nus e até a galinha viva, que é, ao fim, sacrificada e devorada crua. A estética do deboche cede lugar ao absurdo. “Os privilegiados [de se sentarem à mesa] viram vítimas da performance. Então traz muito a dualidade de quem é que está levando vantagem”, aponta o artista.
O mesmo acontece em trabalhos mais recentes como em “Bancarrota”, de 2012, em que ao lado dos performers Ana Luísa Santos, Inácio Mariani, Noemi Assumpção e Regina Ganz, estão exageradamente bem vestidos e absurdamente postados no alto de uma árvore, rindo compulsivamente e distribuído dinheiro (falso), como se esse desse em árvores.
“O modernismo hoje em dia tem me desiludido muito. Incita o preconceito e a exclusão e pressupõe uma estética da limpeza, uma assepsia. É tudo muito bem resolvido. Eu descobri que a minha imagética vem de uma imagética classe média, por isso trabalho tanto com mau gosto. Não é nem o kitsch que me interessa”, conta o artista.
Com todo tensionamento e transgressão, Marco Paulo não deixa de nos surpreender. Enquanto grande parte de seus trabalhos caminha no traçado do deboche, dos excessos, do mau gosto, daquilo que degrada e decai, em sua obra mais recente “Preenchendo o Espaço”, o performer provoca um deslocamento na medida em que nos exige extrema atenção, sensibilidade e relaxamento. Na época de sua apresentação na exposição “Terra Comunal”, de Marina Abramovic, no Sesc Pompeia, ele cedeu várias entrevistas em que dizia que seu desejo foi o de retornar ao sensível e ao humano, utilizando um acordeon como um corpo acoplado ao seu.
Num mundo inundado em excessos como o nosso, Marco Paulo provoca o tensionamento ao apostar no retorno à experiência sensível e à quietude atenta e relaxada. Em postagem de 2011 para seu blog, em que disserta sobre o tempo na e da performance, escreve: “A manipulação da temporalidade transforma nosso estado de perceber, nos transporta ao transe de uma nova dimensão” e, mais a frente, “dar tempo ao tempo é um segredo antigo da vida e parece ser um segredo novo para o futuro acelerado do homem na era virtual”. Algumas vezes, penso, Marco Paulo consegue se comportar como um feiticeiro das artes: habitando os trânsitos, sempre se deslocando dos lugares onde imaginaríamos que estivesse, provocando reversões na realidade a partir do próprio cotidiano.
“A arte pede essa intromissão para que novos estágios de compressão de nosso espírito possam se revelar. Pois, entre o intuitivo, o racional, o emocional e o cognitivo, se faz o senso da arte”, escreveu no catálogo “O Que Temos Para o Almoço”, de 2014 – frase que eu desloco um pouco do contexto, mas que acredito ser pertinente para o fazer e o pensar do próprio artista. E mais adiante, no mesmo texto, acrescenta: “Sentir antes de explicar. Essa é uma demanda para entrar no campo da arte e é pura porosidade […] A arte pede essa inversão de ordem no senso da sociedade: primeiro o sentir e, depois, o que vier primeiro ao corpo, para o cérebro ou para a pele”.
Essas movimentação e provocações constantes geram, detecta o artista, dificuldades de circulação do seu trabalho, de participar de feiras e/ou ser incluído no círculo dos curadores e colecionadores – vindo daí mais um motivo para celebrarmos as exposição recentes. “Meu trabalho não fica esquecido, mas tem muita ausência de demanda para mostrá-lo. Eu corro atrás. Sou muito proativo. É difícil estar livre para criar e ter ideias arrojadas se você precisa estar preocupado constantemente em criar condições para que o trabalho circule e se sustente “, expõe. E completa mais adiante: “Tem que tomar muito floral pra ser artista”.
Para ver e ler mais:
- “Cotidiano Radical”, na Caixa Cultural, de 27 de outubro a 20 de dezembro. Almirante Barroso, 25, Centro. Rio de Janeiro.
- “Cama, Mesa e Escada”, no Memorial Minas Vale, de 17 de novembro a 28 de fevereiro. Praça da Liberdade. BH.
- Site do artista.
- Textos críticos, disponíveis no site da Galeria Vermelho.
- Catálogos organizados pelo Ceia.
- Catálogo da exposição Outra Presença, no MAP.
- Dissertação de mestrado, defendida em 2006.