* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
– por Diogo Horta –
(Fotos de Nana Moraes)
Crítica a partir do espetáculo “Sem palavras” da companhia brasileira de teatro.
Você vai ao médico e ele atrasa uma hora para sua consulta. Você se atrasa. Você corre. Você engole uma coisa rápida com uma amiga para dar tempo de se deslocar. Você vai ao teatro. Você vai ao teatro para ver teatro. Um espetáculo de teatro. Sexta-feira à noite, aquele movimento da cidade e você corre para assistir à uma peça de teatro. Você corre para viver teatro.
Você fica com um sentimento misto após presenciar o espetáculo “Sem palavras”, da companhia brasileira de teatro, com direção de Márcio Abreu. Você se sente feliz por ter visto um espetáculo consistente. Você pensa em escrever uma crítica sobre esse trabalho. Você levanta dúvidas sobre sua capacidade de escrever uma crítica a partir desse espetáculo. Mas, antes…
Pausa.
Você assiste a um espetáculo de teatro.
Você está na plateia, sentado, olhando para o palco à sua frente. Um plástico branco cobre o palco. Os refletores estão todos à mostra e você pensa: eu estou no teatro. Ninguém pretende esconder de você que você está em um teatro e você gosta disso. Nas próximas duas horas algo vai acontecer na sua frente e você não faz ideia do que é. Alguém dirá alguma coisa? Você não sabe… espera que sim… Faz silêncio na sala de espetáculos. A espera é silenciosa mas os pensamentos surgem constantemente. Você vê alguém entrando em cena.
Silêncio.
Você vê alguém entrando em cena. Alguém nu entrando em cena. Você vê um corpo transgênero em cena. Você olha e percebe os elementos presentes na primeira cena. Você acredita que a proposta do espetáculo vai te interessar. Você agradece por ter corrido para chegar ao espetáculo e ter ficado em silêncio. Você escuta um latido. Você escuta a atriz dizer uma palavra. Muitas palavras. Um grito. Uma gargalhada. Um latido. Você escuta. Você vê e escuta. Você vê, escuta, sente cheiro, sente seu corpo pesando na poltrona do teatro e sente o gosto do protetor labial na boca. Você vê a atriz falando do corpo, vê o corpo e percebe o seu corpo.
Um movimento: rápida cambalhota frontal no solo.
Você vê outros atores entrando em cena. Você vê diferentes corpos em cena. Você vê uma diversidade de pessoas em cena. Você vê oito atores em cena cheios de energia e… eles dançam? Você tem certeza que eles dançam. Você vê direção nos movimentos e se pergunta se é mais teatro ou dança. Pouco importa. Eles dançam, falam e não cantam. Eles soam. O som grave faz tremer as estruturas do teatro. O som grave te faz tremer. Reverbera. Cada solo, de cada ator, reverbera. Uns mais, outros menos. E você observa. Você se identifica. Você observa. Você acha curioso. Você sente vontade de vomitar. Você admira a capacidade de mudanças de registro corporal e vocal dos atores. Você vê um trabalho sólido. Você respira. Você ri. Você se ajeita na poltrona do teatro. Você se inquieta na poltrona do teatro.
Há dor. Há paralisação. Há dúvida. Há um cenário apocalíptico por trás daqueles textos ditos em cena. Nada lá fora. 2 mil pessoas morrendo lá fora. O quadro da enfermeira com o dedo na boca fazendo silêncio. O apartamento. Nada lá fora, eles dizem. Você lembra da pandemia de Covid-19. Você sabe que vocês todos na sala, no palco e no mundo viveram isso. Você já elaborou sobre isso, reelaborou e ainda está elaborando. Você faz conexões de sentidos. Conecta as várias informações que recebe e os vários estímulos que te atravessam. Você vê coragem.
Você passa a repetir a palavra “VOCÊ” na sua cabeça antes mesmo dos atores dizerem “VOCÊ” porque essa palavra se repete. Você se vê. Você assiste a um espetáculo em que os atores repetem. Você acha um pouco curioso que eles repetem, mas percebe que você também se repete: repete a fala, repete o trajeto, repete o pensamento, repete você mesmo. Você se repete.
Dois movimentos: queda brusca no chão seguida de rolamento para direita.
Os atores afirmam que você fez várias ações, falou várias coisas, tomou várias decisões e mesmo você não tendo feito, você pensa que poderia ter feito porque eles afirmam que você fez. Você ri quando você realmente fez o que disseram que fez. Você estranha, mas aceita que fez o que não fez. Você entra no jogo. Você joga. Você lembra que teatro é jogo. Você lembra que para você teatro é jogo, teatralidade, convívio e diálogo.
Você faz parte de algo. As pessoas ao seu lado fazem parte de algo. As pessoas ao seu lado riem, quase sempre de nervoso. Um riso fechado. Um riso sem palavras. De repente uma festa. As pessoas se agitam. Há uma festa no palco. Há uma drag queen. Há uma tendência ao otimismo. Uma tendência. Você escuta uma das atrizes dizer algo relacionado a tendência e otimismo. E há realidade… densidade… a festa dá lugar a um último relato. Dá lugar a ausência de palavras diante do caos. Você busca sentidos e entende fragmentos. Mas o que importa é você.
É sobre você. Todos falam de você. Todos falam você. Você continua a repetir a palavra “VOCÊ” na sua cabeça mesmo quando os atores já não dizem tanto “VOCÊ”. Você é inundado pelas palavras e pela performance da atriz. Você vê intensidade. Você vê a ausência de luz. Você aplaude.
Você fica com um sentimento misto após presenciar o espetáculo “Sem palavras”, da companhia brasileira de teatro, com direção de Márcio Abreu. Você se sente feliz por ter visto um espetáculo consistente. Você pensa em escrever uma crítica sobre esse trabalho. Você levanta dúvidas sobre sua capacidade de escrever uma crítica a partir desse espetáculo.
Três movimentos: tira o celular do bolso, abre as notas e escreve um rascunho.
Você sai para tomar uma cerveja após o espetáculo. Você toma uma caipirinha ou uma cerveja. Você tem uma ideia. Você escreve um rascunho de texto que você pretende escrever sobre o espetáculo que você assistiu. Você se sente minimamente capaz de elaborar algo sobre o espetáculo que assistiu. Você rascunha palavras. Você faz o seu exercício crítico. Você relê o que você escreveu. Você envia seu texto para os editores do Horizonte da Cena. Você recebe uma devolutiva. Você repensa algumas coisas. Você vê seu texto publicado. Você espera que o que você escreveu faça algum sentido para alguém e que alguém te mande uma mensagem curta dizendo que leu, pelo menos, e que embora tenha se cansado um pouco do excesso de você no texto, entende que, tanto o seu texto quanto o espetáculo, não é sobre você, mas, sim, sobre você.
Ficha técnica:
Direção e Texto: Marcio Abreu
Dramaturgia: Marcio Abreu e Nadja Naira
Elenco: Fábio Osório Monteiro, Giovana Soar, Kauê Persona, Kenia Dias, Key Sawao, Rafael Bacelar, Viní Ventania Xtravaganza e Vitória Jovem Xtravaganza
Direção de produção e administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e assistência de direção: Nadja Naira
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Felipe Storino
Direção de Movimento: Kenia Dias
Cenografia: Marcelo Alvarenga | Play Arquitetura
Figurinos: Luiz Cláudio Silva| Apartamento 03
Co-Produção no RJ: Miriam Juvino e Valéria Luna
Vídeos | instalação “Antes de tudo”: Batman Zavareze
Captação e edição dos vídeos | instalação “Antes de tudo”: João Oliveira
Fotos: Nana Moraes
Programação visual: Pablito Kucarz
Captação de imagens do espetáculo: Clara Cavour
Teaser – criação e edição: Aristeu Araújo
Colaboração artística: Cássia Damasceno, Grace Passô, Helena Vieira, José Maria e Rodrigo Bolzan
Técnico de Palco e luz: Ricardo Barbosa e Giu Del Penho
Técnico de som: Chico Santarosa e Luan Casado
Distribuição Internacional: PLAN B – Creative Agency for Performing Arts
Uma produção da companhia brasileira de teatro
Em co-produção com Künstlerhaus Mousonturm Frankfurt am Main/GE, Théâtre Dijon Bourgogne – Centre Dramatique National/FR, A Gente Se Fala Produções Artísticas – Rio de Janeiro/BR, Passages Transfestival Metz/FR.
Espetáculo assistido no dia 04 de agosto de 2023 no Teatro Sesiminas em Belo Horizonte.