Crítica a partir do espetáculo “João-de-Barros”
– por Marcos Alexandre –
É incontestável a importância da arte no desenvolvimento da criança. Inúmeros textos espetaculares são produzidos e apresentados anualmente, em teatros de todo o Brasil, para atender ao público infantil e, entre esses trabalhos, do mesmo modo, são concebidas montagens em Belo Horizonte com vistas a atingir esta plateia específica. Não obstante, por sua vez, também é inegável que ainda há uma publicação escassa sobre o teatro infantil e seu alcance tanto no nível teórico quanto em relação à recepção e à análise de propostas espetaculares, aspecto que pode ser observado também na carência de textos e ensaios produzidos sobre o tema em eventos e em revistas acadêmicas e especializadas que publicam trabalhos sobre as Artes Cênicas.
Pensar o teatro infantil na cena de Belo Horizonte se faz necessário, pois a cidade sempre contou com a produção de várias peças voltadas para o universo infanto-juvenil em suas distintas concepções dramatúrgicas e espetaculares, desde os contos de fadas tradicionais (“Chapeuzinho Vermelho”, “Os três porquinhos”) aos clássicos de Hollywood e Broadway (“A Bela e a Fera”, “Aladim”, “Cinderela”, “Peter Pan”) e, recentemente, temos encontrado um aumento de trabalhos autorais que visam a atender a esse público, entre algumas montagens levadas a cabo pela produção local merecem destaque, entre outras, “A Menina que Entra em Livros”, da companhia de teatro O Trem, texto de Lívia Gaudêncio e direção de Juliano Barone; “Memórias de um Quintal”, da Insensata Cia de Teatro, inspirado na obra “O Matador”, do mineiro Wander Piroli, com atuação e direção coletiva de Brenda Campos, Cláudio Márcio, Dário Márques e Keu Freire, que também assumem a dramaturgia, sob a orientação de Raysner de Paula; “Pequeno”, solo de Cláudio Márcio, com texto e direção de Robson Vieira; “Quem Pergunta Quer Resposta”, “O Mistério da Bomba H_______”, e “A Festa do Pijama”1, do Grupo Oriundo de Teatro, com dramaturgia e direção de Antonio Hildebrando, sendo codirigida com Ana Campos.
A presença da estratégia de um contador de história, por meio de um “narrador oral cênico”, é comum em cena nas peças infantis, colocando os atores-intérpretes, muitas vezes, concomitantemente na posição de narradores e de personagens, multiplicando-se em tipos físicos e em papéis que exigem uma autoentrega ao jogo cênico em prol do desenlace da proposta de montagem. Este é o lugar em que encontramos o ator Charles Valadares, sozinho em cena e pronto para se entregar ao jogo, em seu solo “João-de-Barros”:
Imagem: Espaço vazio. Em cena o nada. Pela lateral aparece, tocando uma gaita, uma figura portando uma coroa na cabeça, uma capa da cor do mar que está presa ao seu pescoço e em sua cintura uma corda fixa a uma caixa de papelão que surge arrastada. Dentro dessa caixa, diversos materiais sucatas que serão revelados e utilizados ao longo do espetáculo e um rádio desses de modelo antigo. Ao atravessar o espaço ao toque da gaita o movimento cessa. Como se avistasse alguém, essa figura começa a bradar em busca de um capitão. Se transforma no capitão que procura e, num jogo ininterrupto de ações, constrói um espaço que nos remete a um grande navio e seus tripulantes se preparando para navegar. Logo após isso, decide que dará um mergulho. Pula no mar. Mergulha. Aos poucos se transforma nos peixes que habitam aquele lugar. Transforma-se em um grande tubarão. Ao dar um giro pelo espaço encontra a caixa de papelão e a manipula transformando-a em um grande navio a navegar pelo mar. Aos poucos o mar ganha corporeidade também na boca desse nosso navegante. Ele abre a caixa e a ocupa transformando em seu próprio barco. A cena finaliza quando este navegante avista terra firme, deixa o barco, contorna o espaço montado em seu cavalo e depara com o público. (Valadares, 2016)2
Assim como foi descrito é que a plateia entra em contato com o universo onírico proposto pelo espetáculo, que integra o repertório do grupo Mamãe Tá na Plateia; inspirado na poética de Manoel de Barros, com concepção, dramaturgia e a atuação de Charles Valadares; desenho de cena e direção de movimento de Fabrício Trindade; e orientação dramatúrgica de Raysner de Paula. A sinopse de “João-de-Barros” também revela as particularidades da proposta completamente voltada para a linguagem infantil:
O espetáculo conta a história de João, um menino que brincando no quintal abraçava a sua casa, viveu um faz-de-conta-sem- fim e descobriu como deixar o dia com tempo de lesma. Lá nas bandas do seu quintal, João inventou seu próprio mar e navegando por ele encontrou um povo governado por um grande rei, que em nome da “Ordem e Progresso” vivia criando decretos absurdos. Em defesa desse povo (e por nenhum direito a menos!), João elabora um plano que muda o curso da estória.
Na “pele” de João, o espectador pode apreciar uma ótima atuação de Charles Valadares, que se desdobra em diversos personagens para dividir a história de seu menino sonhador com seu público composto, em sua grande maioria, por crianças, acompanhadas de seus pais e familiares, que, por sua vez, não deixam de entrar na fábula proposta. Desde o início, o espectador cai completamente no jogo proposto pelo ator e viaja com ele pelas águas do oceano, vivendo e, ao mesmo tempo, ressignificando a máxima de que “navegar é preciso”, mas, no caso da cena proposta por Valadares, “viver, também, é preciso”, pois o jogo para a criança se estabelece no ato de viver cada fantasia como se fosse a última “verdade” a ser representada, ou melhor, corporificada. O oceano e todas as suas representações e fascínio são um convite para que todos os presentes possam navegar nas correntes marítimas e imagens trazidas para o palco pelo ator, que inventou o MAR para si mesmo, por meio da concha que recebeu da mãe (da única viagem feita para conhecer o mar), quando tinha cinco anos. O mesmo mar que o ator revela que só pôde conhecer 15 anos depois e, estupefato diante dele, só conseguiu pronunciar a típica interjeição mineira, “NU”. Este mesmo “NU” reproduzido pelo menino-viajante é vivenciado na memória de muitos da plateia que tiveram a mesma experiência e as crianças presentes vibram com o pequeno João, que do quintal de sua casa inventa o mar e segue sua viagem “mariventando gentes, terras, línguas, batalhas, estórias, reinos…” (Valadares, 2016)
Como estudioso e encantado pelo fazer teatral, independentemente de sua linguagem estética, considero fundamental ressaltar a qualidade do trabalho proposto por Charles Valadares. Tenho cada dia mais dificuldade de assistir a peças concebidas como “infantis”, mas que tratam as crianças como “adultas” ou desconsideram a capacidade que todas têm de “pensar”, não estimulando nelas a experiência do jogo cênico, visto aqui como aquele que desvela curiosidade e aviva toda espiritualidade e inteligência que são inerentes a todas as crianças. “João-de-Barros”, de Charles Valadares, apresenta todos os atributos positivos que busco encontrar no teatro infantojuvenil. Assim como o ator se entrega e se diverte em cena, as crianças também se entretêm e são estimuladas a interagir com as cenas e entre si, a se entregarem à fábula proposta sem receios de arriscarem nos comentários “indevidos”, nas respostas que não são programadas e que exigem do ator a autoescuta para manter viva a dinâmica de jogo e para responder sempre a cada intervenção, exercitando-se e fazendo com que o trabalho de jogo teatral funcione e que seja revisto e ressignificado na própria cena.
Merece destaque a importância que é dada na montagem para o uso e a ressignificação de adereços e de pequenos objetos. Da caixa encantada do menino João, pequenos objetos são ressignificados e ganham formas de binóculos, arma, mapas; um potinho de iogurte dá vida ao Grande Rei, um simples carretel de linha se engrandece, enunciando e anunciando a sonoridade de uma corneta, de um cinturão de tampinhas faz-se erguer muros. A manipulação é feita com destreza, fazendo com que a plateia se identifique com a história contada pelo garoto que enfrenta os decretos do Grande Rei que, entre outras barbaridades bem típicas dos ditadores, institui que toda família deverá construir muros em volta das casas, tendo direto a ter apenas um filho:
Mas pensa para você vê que estrupício de ideia. Pois é, minha gente, fui chegando na tal ilha, onde vivia esse tal povo, que era governado por um rei golpista! Que queria tirar os direitos do povo conquistado com tanto suor. “Nenhum direito a menos!”, o povo gritava. Pensei comigo: tá certo isso não, vou dá um jeito nesse desatino.
Aí pensei assim: e se essa baboseira de decreto nem nunca mais existisse?
Como que faz para um desatino decretado desexistir? (Valadares, 2016)
O valor político-pedagógico do texto é inquestionável e também permite que o teatro possa, por meio da visão lúdica, aproximar a criança de seu tempo, de seu contexto sociopolítico e econômico. Qual criança nunca ouviu na contemporaneidade a palavra “golpe” e “golpista”? É interessante observar que todos assumem o discurso de João e com ele querem destituir o Grande Rei de seu governo ilegítimo e ditador. As crianças xingam em coro juntos com João e, com ele, exprimem palavras de ordem, seguindo cada ação do protagonista, que corre, invade um palácio, se disfarça de outras personagens, se transforma em dançarina, enfrenta um exército para livrar todos dos desmandos do Grande Rei. A identificação com as “fantasias” infantis faz com que a peça seja muito bem recebida pelas crianças e pelos adultos presentes.
No seu universo de inventividade e oniricidade, João enfrenta o Grande Rei e “perde”, mas perder aqui não é uma forma de concluir o jogo, pois na dramaturgia e na cena infantil é sempre bem-vindo e esperado o happy end e, no teatro, tudo está passível de renascer. Assim, João também ressurge convidando as crianças presentes para subirem ao palco, ocupando o espaço de cena, ou melhor, o seu quintal, onde é construída uma história coletiva com a participação das crianças e nessa fábula são retomados momentos da peça, a presença do mar, os peixes, seu cavalo etc. O espetáculo termina com um ato coletivo demonstrando para a criança que o melhor do jogo é quando ele é compartilhado com o Outro, uma aula de convívio e de experiência à Alteridade. Com o seu “João-de-Barros”, Charles Valadares ressignifica sua memória pessoal em prol da coletiva e, assim, consegue fazer do quintal que abraçou um dia a sua casa, o maior lugar do mundo, demonstrando que no teatro infantil, e para os olhos das crianças e daqueles que se permitem vivenciar a criança interior que as mantêm vivas, o lugar do sonho é infindável.
1 – Sobre este trabalho, vale a pena conferir a instigante leitura crítica de Diogo Horta, disponível em https://www.horizontedacena.com/mais-que-uma-simples-festa/
2- Texto cedido pelo autor.