Texto a partir da leitura dos manifestos de Dione Carlos e da dupla Elisa Santana e Sabrina Rauta, apresentados na nova edição do Janela de Dramaturgia.
Originalmente publicado na https://janeladedramaturgia.com/edicao-2019/
– Por Guilherme Diniz-
Fotos: Athos Souza
Pensar as dramaturgias contemporâneas a partir da noção de manifesto constitui a tônica estético-política desta edição do projeto Janela de Dramaturgia. Em termos modernos, a produção de manifestos, sejam eles literários, culturais ou políticos, apresenta-se, invariavelmente, como a expressão de uma divergência, um contraponto, anunciando e descortinando conflitos no tecido social. Desta forma, o manifesto é, ao mesmo tempo, um sintoma e uma resposta a um tempo de agudas crises e transformações. Portanto, creio que em suas formulações o manifesto exprime, de modo contestador, a seguinte tríade fundamental: uma presença a criticar o atual estado das coisas, significando que o manifesto pode desvelar, fazer emergir e/ou intensificar corporeidades, sujeitos e vozes invisibilizados ou silenciados (embora possa também fortalecer presenças e visões já hegemônicas); uma posição, isto é, uma tomada de partido – ou partidos – diante dos fatos; e consequentemente uma perspectiva, ou seja, uma ótica, um ponto de vista reflexivo e/ou combativo, diante do que se passa no mundo. Em última análise, toda produção artístico-cultural e intelectual contém em si um manifesto, visto que participa não somente da construção de sentidos na pólis, como também se posiciona, explícita ou implicitamente, ante os fatos sociais.
Luca Somigli (1) tece algumas relevantes considerações, acerca dos manifestos, para esta crítica. Desde as primeiras utilizações do termo “manifesto”, os textos elaborados sob tal molde estavam diretamente ligados a alguma contenda política, funcionando, em grande parte, como uma forma de opor-se a um discurso socialmente dominante, dirigidos, evidentemente, à opinião pública. Além do mais, o manifesto não intenciona apenas informar, mas igualmente mobilizar a ação, intervir e performar uma posição. Ao desejar uma reorganização do sistema social, o emissor do manifesto define um horizonte de possibilidades ao mesmo tempo em que define a si próprio. O historiador afirma que inescapavelmente o manifesto é também uma autodeclaração.
As relações entre o manifesto e a ação prática são inseparáveis, pois o discurso textual visa traduzir o seu programa ou anseios em instrumentos de transformação das relações de poder, abrindo possibilidades para que outros sujeitos escrevam suas próprias histórias. E, ao se inserir em um jogo de contradições e oposições ideológicas, é típico do manifesto definir/identificar um nós e um eles, delineando bem os lados de uma dada disputa.
Para concluir, Luca Somigli atesta a mudança de significado, vivenciada pelos manifestos a partir do século XVII em diante, especialmente durante a segunda metade do século XIX, época na qual visualiza-se uma proliferação de manifestos políticos e a gradual interpenetração entre tal gênero textual e as nascentes vanguardas artísticas. Em uma conjuntura de exacerbadas transformações político-econômicas e culturais, os manifestos simbolizaram, para aqueles grupos vanguardistas, um meio para definir e legitimar novas funções sociais dos artistas. Ao desejarem confrontar (com certos limites, é verdade) os valores socioculturais burgueses, e diante da ausência de uma noção socialmente compartilhada de arte (cada vez mais acentuada), os manifestos atuaram no processo de renegociação da função da própria arte, defendendo programas e perspectivas. Por tais razões, os manifestos se articularam como (precárias) pontes entre o âmbito produtivo/criativo (os artistas) e os postos de mediação e recepção dos trabalhos, como a crítica, as mídias e os públicos.
Em um contexto no qual a censura, o desmembramento de certos aparelhos culturais e o ataque explícito às artes se faz mais intenso, penso que esta edição do Janela de Dramaturgia aponta não apenas para as problemáticas políticas, mas também comunicacionais, visto que o manifesto foi e continua a ser um artifício de diálogo entre artistas e públicos, servindo como um suplemento nos possíveis vãos entre esses dois lados. Diante dessa conjuntura destrutiva, qual o diálogo possível? Se a omissão se mostra cada vez mais insustentável e indesejada, como formular manifestos nos quais a tomada de posição alargue também nossas formas de enfrentamento?
Na primeira noite de leituras, percebi que a ideia de manifesto incorporou-se menos como um formato fechado, e mais como um convite à experimentação textual, ampliando as possibilidades de composição dramatúrgica. A partir da aproximação com o manifesto, é possível encarar a dramaturgia como a escrita e a disputa de narrativas e visões. A peça-manifesto da dupla Elisa Santana e Sabrina Rauta e a de Dione Carlos trazem um pensamento em comum: é inviável (se não impossível) distanciar a escritura político-poética da corporeidade; é do corpo, das suas memórias e das suas texturas que as dramaturgias emergem, como ato de inscrição e expansão do/no mundo.
Vozes Desobedientes: Fendas Poéticas
A peça-manifesto de Dione Carlos elabora um testemunho e uma convocação. Em sua dimensão testemunhal, a voz (ou as vozes) do texto observa e analisa um mundo historicamente em decomposição, incapaz de fabricar ilusões que consigam ocultar uma realidade inóspita, arrasada e dominada por estruturas, sistemas e hierarquias profundamente violentas. Testemunha-se um panorama quiçá apocalíptico, em que a degradação não é extraordinária, mas a própria norma. Para os “corpos da margem”, porém, o mundo é continuamente um estado de exceção. Na qualidade de convocação, a escritura de Dione, por um lado, afirma as potencialidades da escrita como ação no mundo, a voz como agência e reinvenção dos sujeitos marginalizados; por outro lado, imagina possibilidades de encontro, diálogo e a construção de saberes e vivências alternas.
Em seu próprio título, “Manifesta Cabocla”, já se avista um deslocamento na linguagem, uma desestabilização da norma linguística marcada por padrões brancos, coloniais e patriarcais, os quais estabelecem o gênero masculino como universal. O termo “manifesta”, contrariando a normatividade dominante, questiona a língua portuguesa em suas amarras e exclusões. A palavra “cabocla”, por sua vez, é também complexa e repleta de sentidos, por vezes, pejorativos. Em um imaginário racializado/racista, a(o) cabocla(o), como classificação social, pode remeter às pessoas tidas como rústicas, simplórias, oriundas dos estratos sociais mais baixos, frutos de relações interraciais entre indígenas e brancos, e usualmente trabalhadoras da terra. É ainda presente o pensamento de um Monteiro Lobato, para citarmos um caso exemplar, que, ao cunhar o termo caboclismo, descreve, de modo exotificante, as práticas sócio- culturais e os modos de vida de tais pessoas; o caboclo, neste sentido, é um “outro”, definido pelo poder dominante. Ao mesmo tempo, o termo caboclo possui outras facetas semânticas, em termos religiosos, culturais e espirituais. Evocando os ritos do candomblé de caboclo, por exemplo, os caboclos são entidades primordiais, ancestrais, protetoras e conhecedoras da terra – território sagrado – atestando as interpenetrações culturais entre elementos africanos e ameríndios.
Dione Carlos, ao escolher o termo “cabocla”, pode nos indicar uma escolha dramatúrgica de situar a sua perspectiva fora dos corpos hegemônicos autorizados a discursar; os riscos e as potencialidades em optar por uma ótica cabocla dizem respeito à construção de um ponto de vista, identidade, corporeidade opostos aos modelos e sujeitos dominantes. Justamente por se situar na borda do poder, a cabocla textualizada por Dione Carlos é capaz de mirar o mundo por meio de outras lentes, saberes e experiências.
Visualiza-se, na manifesta, uma forte oposição entre duas grandes forças, afetos e modos de relação: aquelas incorporadas pela cabocla, as corporeidades e sujeitos marginalizados historicamente; e o centro, o poder totalitário e destrutivo simbolizado pelas bocas do mundo.
Logo no início do texto, lê-se:
Recentemente, ela aprendeu a falar, dizem que “Agora ela tem voz”.
-Ela também descobriu que ninguém poderia lhe dar algo que ela sempre teve. […]
-A narrativa única decepa línguas, impossibilitando que múltiplas vozes ocupem um espaço de imaginação.
Neste momento é como se ouvíssemos a própria voz de Grada Kilomba nos questionando: “Quem pode falar?” (2). Grada analisa como os mecanismos de validação do conhecimento, controlados por brancos e brancas, reproduzem relações de poder, não apenas inferiorizando outros corpos, mas imobilizando-os, ao serem tratados como corpos que não pertencem a lugar algum, enfim, a nada. Quem fala, nesse contexto, é aquele que possui o poder de ser plenamente sujeito na história, na esfera pública, autorizado, por mecanismos de dominação, a ter a sua fala reconhecida como conhecimento. A cabocla, na peça-manifesto localiza-se exatamente no reverso da HISTÓRIA, a impositiva história única, criticada por Chimamanda Adichie. Ao falar, a cabocla não apenas resiste aos aparelhos silenciadores, mas ecoa outros modos de pensamento, de organização da vida, construindo formas de “conhecimento emancipatórios e alternos”.
Ao longo do texto, a cabocla, esta atuante/persona feminina articuladora e aglutinadora de todo o discurso dramatúrgico, não é um figura fixa, mas multifacetada, movente e dinâmica, associada, no texto, a diversas mulheres, como: Leda Martins, Conceição Evaristo, Lélia Gonzales, Carolina Maria de Jesus, Idylla Silmarovi, etc… O traço comum entre elas: são, cada qual a seu modo, subjetividades insurgentes; pensadoras e criadoras a desafiar as lógicas dominantes, costurando conhecimentos nas frestas. A cabocla textualizada por Dione Carlos é uma figura quimérica, não por ser monstruosa, mas por conjugar em si uma multiplicidade de formas e elementos, desestruturando os discursos homogeneizadores acerca do seu ser.
Do lado oposto estão as bocas do mundo. A metáfora alude aos mecanismos políticos, coloniais e econômicos de poder, incluindo as estruturas históricas de dominação e exploração de seres humanos e recursos naturais. As bocas do mundo podem ser vistos como comensais da necropolítica, de Achille Mbembe, isto é, ferramentas de distribuição da morte, ceifando a existência dos corpos da margem. A imagem do ciborgue, recorrente na manifesta, questiona nosso conceito de humanidade, sobretudo, em um contexto de extrema tecnologização, no qual a máquina – instrumento ultraprodutivo do capitalismo – dita os tempos, os ritmos e as próprias relações humanas. Como na literatura de Isaac Asimov, as interpenetrações entre o orgânico e o mecânico redefinem nossos códigos ético-morais, nossa ideia de liberdade, sendo, paradoxalmente, uma expansão/limitação das potencialidades humanas. Além do mais, a figura das bocas do mundo simboliza o poder de falar, falar sobre o mundo, sobre e pelos outros, como uma prática autoritária. Em minha compreensão, as bocas dizem respeito não somente ao falar, mas igualmente ao ato de devorar, comer, consumir as coisas do mundo, num ato de gula e ganância.
As tensões entre margem e centro estão nitidamente postas por Dione: a cabocla e os corpos da margem em agudo conflito com as bocas do mundo no centro do poder. Contudo, é nas bordas que se desenvolvem outros sistemas culturais, epistemológicos e sociais resistentes aos ditames políticos do centro e, mais do que isso, que se forjam outras maneiras de conceber a vida, produzir saberes e escrever a história:
“Vejo sementes escondidas pelas mães nos cabelos trançados nas cabeças das filhas.
-O urucum na pele em dias de festa, o jenipapo preto em festas de guerra.
-As bendições de mãos pretas em rezas de combate aos quebrantos.
– As coroas, os cocares, os panos de cabeça, as contas dos rosários, os panos da costa, as romarias, o cheiro do azeite de dendê, as velas acesas em batismos e velórios, as orações e os lamentos, os banhos de folha de manjericão, as pipocas que limpam o corpo.”
Nesse sentido podemos, uma vez mais, pensar com Grada Kilomba quando ela nos diz que as margens são também espaços de resistência e de criação de possibilidades, em que novos discursos acontecem, a partir dos quais alternos mundos são imaginados, emergindo aí novos sujeitos e sujeitas.
O texto é quase inteiramente constituído por períodos, frases e sentenças, introduzidas por um traço somente, sem quaisquer rubricas, podendo indicar tanto um monólogo, quanto uma possível divisão das falas entre muitos atores/ atrizes. Na sessão de leitura das peças-manifesto, Dione lera, solitariamente, apoiada por um microfone, modulando com cuidado as nuances vocais e concretizando na própria performance as palavras de seu texto:
“-Voz não se dá, não se empresta, não se representa. Voz se amplia.”
Ao correlacionarmos esta dramaturgia com os demais textos escritos por Dione Carlos, presentes na obra Dramaturgias do Front e na coletânea Dramaturgia Negra, lançada pela Funarte, fica-se com algumas impressões panorâmicas: as mulheres são signos/símbolos estruturantes da poética textual; há uma profunda intimidade entre texto e cena, como se a escrita dramatúrgica só se tornasse realmente vívida ao ser encantada pela carnalidade cênica; e, por fim, são textos que almejam problematizar nosso entendimento sobre a alteridade, sobre o que classificamos como “Outro”, logo, produzindo uma reflexão sobre a multiplicidade e a singularidade das muitas presenças e corporeidades do mundo. Contudo, é impossível não reconhecer que Manifesta Cabocla apresenta recursos formais e textuais mais diretos, uma linha narrativa mais identificável, ao contrário de suas escritas mais estilizadas e dotadas de significados rarefeitos. Esta talvez seja uma qualidade/necessidade dos manifestos, ou seja, comunicar imediatamente um pensamento, com agilidade e precisão.
Por onde começar diante da falência?
O texto proposto por Elisa Santana e Sabrina Rauta coloca duplamente o próprio gênero textual – manifesto – em questão. Em primeiro lugar, interroga-se sobre o que falar em um manifesto, o que cabe ou deve ser dito neste formato, qual o seu sentido em um tempo no qual a ideia de verdade está cada vez mais pulverizada. Em segundo lugar, as autoras questionam a potência do manifesto diante de um contexto de profundas e extremadas opressões, violências genocidas contra as populações negras e indígenas, bem como destruição de direitos histórico-sociais. O que fazer quando algumas formas de reação e manifestação parecem gastas ou impotentes perante o cataclisma político e social do Brasil contemporâneo? Se “o céu a qualquer momento pode desabar sobre nossas cabeças” resta-nos fazer ou dizer o que? Ou ainda, seguindo as trilhas reflexivas de Ailton Krenak: Como adiar o fim do mundo?
A peça-manifesto, estruturada como uma coloquial e aparentemente despretensiosa conversa entre as duas atrizes, parte de seus corpos, identidades e condições, como mulheres negras, para pensar a política, a sociedade e o amor, em um contexto histórico radicalmente caótico. As corporeidades daquelas que escrevem se projetam naquilo que Leda Martins pensa: os corpos negros como portais e inscrições de memórias, histórias e paisagens de afetos. É a partir dessas grafias corporais que todo o texto se construirá, conjugando rememorações pessoais, afetações vivenciadas, desejos e reflexões sociais acerca de problemáticas políticas, raciais e de gênero. Enfim, o corpo como um manifesto expandido, em que a ideia de representação se mostra incapaz de configurar um discurso que abarque os anseios mais urgentes das diversas subjetividades em jogo, assim como, por vezes, dificulta a elaboração de outros modos de falar sobre as velhas questões.
Ao evocarem algumas de suas memórias pessoais, a dramaturgia evidencia, novamente, a inseparabilidade entre a construção do manifesto e as identidades com suas dimensões subjetivas e íntimas. Como já dito, Luca Somigli reconhece que, direta ou indiretamente, os manifestos, ao definirem princípios, objetivos e expectativas, articulam a identidade dos vários grupos de sujeitos. A objetividade e a neutralidade são mitos, construídos por uma branquitude epistemológica dominante, como nos recorda Grada Kilomba. Portanto, a configuração poética desta peça-manifesto não apenas situa as identidades como plataformas do discurso, mas também complexifica estas mesmas identidades: são duas mulheres negras em diálogo, diversas, dotadas de anseios, lastros e vivências distintas, embora possam se aproximar e se interpenetrar em muitos aspectos. Esse dinâmico movimento entre micro e macropolíticas permeia todo o desenvolvimento do texto.
Entre tantas aflições, Rauta e Elisa discorrem sobre o amor, os seus momentos de leitura e deleites individuais. E é neste instante que a sabedoria de Sueli Carneiro (3) transborda: “Eu costumo falar para as jovens negras, quando tenho a oportunidade: nós temos que lutar pelo direito à fragilidade […] e ao cuidado”. Sobretudo o autocuidado como uma prática de afeto e proteção a um corpo tão alvejado por um racismo estrutural. Nesse sentido, abordar o amor, as memórias familiares, no texto, corresponde a afirmar aquilo que de fato humaniza, singulariza subjetividades negras – histórias marcadas também por experiências de júbilo que recusam, com toda sua diversidade, um imaginário fixo sobre vidas de mulheres negras.
Sabrina Rauta evoca algumas memórias de infância para traçar, desde a tenra idade, seus conflitos com a violência racial. Destacam-se os ataques dirigidos ao seu cabelo crespo – elemento identitário ferozmente estigmatizado, como sinônimo de fealdade e descuido estético. As tensões que envolvem o alisamento capilar, no interior de uma sociedade que sacraliza a brancura, são vetores significativos de marginalização de corporeidades negras, cujos cabelos crespos são suportes simbólicos de sua identidade, segundo Nilma Lino Gomes. Relembrar (superar?) e ressignificar algumas das mais dolorosas feridas traumáticas significa construir uma positiva e saudável relação consigo própria e, a partir daí, destruir autoimagens negativas para compartilhar o amor com seus pares. Assim diz o texto:
“Eu precisava mais de força do que dos traumas que a sociedade poderia me causar. Ainda preciso e luto por esta força. Aprendi como mulher negra, a amar outras mulheres negras, sou apaixonada por elas. Em todos os sentidos. Nas conversas, nos abraços, nas trocas e até mesmo nas confidências.”
Elisa Santana apresenta um percurso significativamente diferente. Na peça- manifesto o seu dilema é de outra natureza: por não ser uma mulher retinta constantemente lidara com situações e classificações sociais que a colocaram em um limbo, um entre-lugar conflituoso:
“Eu nunca fui considerada branca o bastante ou negra o bastante para o imaginário das pessoas. Já fui vista em todos os tons considerados pejorativos hoje: parda, morena, mulata. E eu aceitava, talvez porque ser negro ou considerado negro no Brasil de sempre é aguentar e ser o cu.”
Uma breve explicação se faz necessária: na sociedade brasileira, os indivíduos são lidos ou não como negros principalmente com base no fenótipo, na cor da pele, no tipo aparente; o que Oracy Nogueira chamou de “racismo de marca”, ou seja, a marca física. Portanto, corpos escuríssimos jamais estarão imunes à opressão racial, ao passo que corpos negros mais claros poderão, conforme o contexto e o observador, serem lidos como mais aceitáveis, por se aproximarem fisicamente de um modelo branco idealizado. Nesse sentido, a gama de termos depreciativos para denominar a diversidade de tons – dos mais claros aos mais escuros – reflete não apenas as facetas linguísticas do racismo, mas as estratégias que ele opera para hierarquizar os corpos negros segundo seus traços físicos.
De volta à peça-manifesto, penso que grande parte da angústia vivenciada por Elisa Santana se localiza neste campo minado. Porém, o texto não se aprofunda no outro lado da moeda, qual seja; o fato de que não ser “escura o bastante” pode conferir acessos e possibilidades que negros retintos de modo algum possuiriam. Questionar tais tensões é fundamental para situarmos as identidades e suas relações de força, em uma sociedade fundamentalmente racista/racializada.
De um modo geral, a dramaturgia, ao articular as identidades e os contextos de enunciação das autoras, me possibilita pensar na escrita de manifestos contemporâneos como um processo criativo altamente performático, em que as percepções socioculturais do corpo geram outras perspectivas sobre o presente. Discorrer sobre si e rearranjar suas próprias identificações e lugares no mundo pode estabelecer, no plano das discussões políticas, os projetos e alternativas para um outro paradigma social. Como desejar o horizonte ou as “utopias possíveis” sem compreender criticamente o chão que se pisa?
Elisa Santana e Sabrina Rauta conduziram uma leitura marcada por sutis ironias e constante bom humor, transitando por vários assuntos e temas com uma coloquialidade convidativa, longe de quaisquer pedantismos. O tom fortemente cotidiano por vezes dificultava a compreensão desta ou daquela palavra, contudo.
O texto se encerra com uma vigorosa reflexão de Ailton Krenak não apenas sobre os malefícios de uma violência ambiental exacerbada, destruidora e capitalista (as violações criminosas da Vale e as queimadas na floresta Amazônica são exemplos nítidos), mas, sobretudo, Ailton nos convida a pensar nos diversos outros modos de relação com a natureza e seus entes; relação esta baseada no convívio, e não na extração aniquiladora. No derradeiro momento da peça-manifesto, um cântico diz:
Quando olhei Aquele negro / Olhei o começo do mundo
Assim como os saberes de Ailton Krenak, penso que estes outros corpos, culturas e saberes não hegemônicos (e por que não contra-hegemônicos) são capazes de conceber o começo de outros mundos, narrativas e possibilidades de existência.
1 Reflexões presentes em sua pertinente obra Legitimizing the Artist – Manifesto Writing and European Modernism, 1885-1915.
2 Reflexões presentes em sua obra: “Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano”.
3 Em excelente entrevista para a Revista Cult nº 223.