— por Julia Guimarães —
Crítica das missas patólicas do bufão Leo Bassi (Madri, Espanha)
Na última crítica que escrevi para o HdC, me perguntava sobre como analisar acontecimentos cênicos que estariam no meio do caminho entre uma prática artística e uma atividade social. A pergunta parece servir para uma série de criações contemporâneas que se propõem a “importar” dispositivos presentes na sociedade para o contexto teatral.
Operação visível na já citada performance-palestra da croata Vlatka Horvat ou nos espetáculos participativos do catalão Roger Bernat, é também ela que aparece nas entrelinhas do projeto mais recente do bufão italiano-espanhol Leo Bassi. Presença constante nos festivais cênicos pelo mundo (em Belo Horizonte, se apresentou no Festival Mundial de Circo em 2001 e no Galpão Cine Horto em 2002), Bassi criou, há três anos, uma ‘religião’ própria, o Patolicismo. Desde então, se dedica a celebrar casamentos e missas dominicais em sua Igreja Patólica, que ganha esse nome por substituir a adoração a Deus pelo louvor aos banalíssimos patinhos amarelos de borracha usados para decorar banheiras.
Situada em Lavapiés, emblemático bairro da cultura dissidente de Madri, a Igreja Patólica de Leo Bassi é herdeira dos valores iluministas, defensora do ateísmo e da dimensão sagrada do riso. Embora a teatralidade barroca que adorne a capela seja um ponto comum com o catolicismo, os “santos” presentes no altar não deixam dúvida quanto ao projeto político-artístico do espaço: seus ícones são pessoas que, na visão de Bassi, colaboraram para a humanidade, como Chaplin, Voltaire, Gandhi, Nietzsche, Mae West.
A crítica às igrejas, em especial à Católica, é elemento que acompanha a trajetória do bufão, expoente da sexta geração de uma família de palhaços. Por conta dela, Leo Bassi já foi alvo de polêmicas, agressões, boicotes e tentativa de um atentado terrorista por parte de religiosos fundamentalistas.
Sobre o assunto, já havia criado o espetáculo “A Revelação” (2005), no qual criticava religiões monoteístas. Contudo, o projeto da Igreja Patólica sinaliza um caminho em que os hibridismos de linguagem projetam novas potencialidades críticas.
Nesse contexto, gostaria de retomar a pergunta que abre o texto: como analisar um espetáculo que é também uma missa? De que maneira a importação desse dispositivo interfere na percepção do público e projeta uma dimensão crítica? São perguntas com as quais pretendo fazer dialogar minha própria experiência de ter frequentado duas missas dominicais.
Em primeiro lugar, há um fator que talvez distinga a atividade de outros trabalhos cênicos: o projeto de Leo Bassi pressupõe uma dinâmica de continuidade. Trata-se de um espaço aberto à visitação periódica, no qual – assim como uma missa – embora haja repetição do rito, há um novo assunto a cada semana. Até a data, foram realizadas 113 missas patólicas.
No formato explorado por Bassi, a primeira parte da missa dialoga com a trajetória dos homenageados e a segunda aborda temas atuais. Na missa realizada em 6/12, por exemplo, o feriado nacionalmente celebrado na Espanha dedicado à Imaculada Conceição (e também em Belo Horizonte) é desconstruído para atentar-nos aos valores presentes em suas entrelinhas: exaltação à “pureza” da mulher, o ato sexual como sacrifício e a condenação do prazer.
Em contraposição a esse modelo católico, Bassi homenageou, na mesma missa, a escritora francesa Amandine Aurore Lucile Dupin, que viveu a Paris do século XIX e assinava suas obras com pseudônimo masculino George Sand, como ficou conhecida. Considerada uma das percussoras do feminismo, gostava de usar trajes masculinos pouco habituais para a época e, segundo conta Bassi, colecionou amantes famosos, como Chopin, Liszt e Victor Hugo.
Nesse contexto, a possibilidade de frequentar semanalmente a ‘igreja’ parece funcionar tanto como ação direta, mas também como projeção simbólica. Se, de um lado, privilegia um devir comunitário de pessoas que se encontram em torno da exaltação do espírito crítico-cômico-humanista, por outro, se oferece como contraponto ao fortalecimento da intolerância e dos conservadorismos verificados nos últimos anos em escala mundial.
Do ponto de vista simbólico, a importação do dispositivo-missa dá visibilidade a uma operação simples, porém polêmica: se durante tantos séculos a reunião de pessoas em torno da transmissão cristã esteve presente como um dos principais pilares das sociedades ocidentais, por que não valer-se de estrutura semelhante para gerar a defesa de valores muitas vezes condenados/sufocados por essa mesma igreja?
Por outro lado, a proposta de Leo Bassi opera sob uma teatralidade discursiva, racionalista e ensaística que parece muito pertinente como estratégia artístico-ativista em um momento no qual a partilha de informações e reflexões em um contexto de presença parece ser resposta potente à urgência dos acontecimentos atuais.
Sobre esse aspecto, é curioso observar inclusive que o projeto artístico do bufão o desloca, de certa forma, da teatralidade observada em espetáculos anteriores, como os trabalhos aportados em Belo Horizonte. Neles, o caráter anárquico de Leo Bassi e a provocação sensorial do público, no intuito de ativar experiências como medo, crueldade e catarse, configuravam-se como aspecto dominante, assim como o privilégio da comicidade.
Já no projeto atual, o viés do humor parece transferir-se para o espaço em si da igreja, ou para a ideia mesma de uma celebração “patólica”, enquanto as palavras de Bassi operam em um sentido crítico mais sóbrio, o que novamente pode ser entendido como uma teatralidade que deseja afirmar-se numa lógica de ação mais direta. No limite, o projeto patólico acentua a liberdade radical do bufão, a quem é permitido tudo dizer e fazer.
Daí surgem outras perguntas: se, afinal, o objetivo das missas é fomentar esse espírito crítico-humanitário a um coletivo de espectadores que, possivelmente, já trazem consigo tal perspectiva, haveria então uma efetiva potencialidade política nesse formato? Ou ainda, de que maneira é possível aproveitar-se da estrutura da missa sem importar também o viés doutrinário?
É aí que parece entrar novamente a dimensão da experiência. Há uma transformação que diz respeito à performatividade do acontecimento ‘missa patólica’. Que está relacionada ao fato de existir um espaço aberto – ainda que pequeno e talvez com pouca visibilidade no contexto geral da cidade – onde se pode, a cada domingo, experienciar a reafirmação pública e presencial de determinados valores. Nesse sentido, a importação do dispositivo missa revela a potencialidade contida na ação de “escutar juntos”, em um sentido comunitário de reconhecimento mútuo.
Talvez seja esse o potencial político de operar a crítica a uma instituição através da importação de sua estrutura. E ainda que junto com o dispositivo surja também a relação de poder característica da igreja – ‘padre’ no plano alto, detentor único do discurso – Bassi explora alguns recursos que colaboram para desconstruir a perspectiva doutrinária.
Uma de suas primeiras afirmações ao iniciar as missas, por exemplo, é de que ficaria contente se as pessoas saíssem dali criticando o que acabaram de ouvir. Nesse sentido o humor, embora presente numa escala menor que em trabalhos anteriores, é outro mecanismo que colabora para subverter tais representações. Durante a missa, Bassi põe em prática a clássica premissa clownesca de cair no ridículo e perder a dignidade em público: na sua igreja, o ‘nome-do-pai’ transforma-se no gesto coletivo de imitar um pato e seu característico ‘quá-quá-quá’.
Além disso, ao que parece, a hibridez do formato também favorece uma desestabilização perceptiva muito fértil para estranharmos as estruturas que nos cercam, na missa e fora dela. Dessa forma, o dispositivo cênico opera politicamente ao colocar o público nesses espaços fronteiriços tão explorados pela arte contemporânea, que, no limite, tangenciam as reiteradas imbricações entre arte e vida.
Assim, o trabalho aponta para uma perspectiva da teatralidade como campo expandido. Pois tanto contribui para ampliar o horizonte da própria linguagem cênica quanto faz dialogar a noção de teatralidade com outras atividades da esfera social.